A natureza é a grande protagonista da mais recente exposição fotográfica de Pedro Medeiros. A Science Photo Gallery d’O Exploratório - Centro Ciência Viva de Coimbra acolhe 18 fotografias de grande formato do artista, que descreve a mostra como “uma representação fotográfica das formas originais da natureza”. O fotógrafo convoca o público para “uma reflexão sobre a sexualidade, a vida, a morte, a mutação e a manipulação, sobre a consciência do que é efémero e do que é perene”, lê-se no site do Exploratório.
O trabalho constitui também uma homenagem a William Henry Fox Talbot, um dos pioneiros da fotografia. The Pencil of Nature, nome atribuído à exposição, é, aliás, o título de uma das obras de Talbot. Medeiros confessa que desde que começou a fotografar os primeiros elementos da natureza que fazem parte desta mostra, possuía já a intenção de homenagear o escritor e cientista inglês.
Pedro Medeiros nasceu em Coimbra, em 1969, e, entre 1993 e 1999, foi membro da associação Encontros De Fotografia, com sede na mesma cidade. Estudou na MauMaus Photography School, em Lisboa, e na London College of Communication, em Inglaterra. Já viveu em Tóquio e em Quioto, no Japão. É autor de livros e monografias e tem trabalhado como fotógrafo freelancer desde a década de 1990.
Portugal, Inglaterra, Japão, Espanha, Ucrânia e Grécia fazem parte da lista de países em que o artista já viu o seu trabalho exposto. Em entrevista, Medeiros fala-nos de si e assume “o risco de levantar o véu sobre algumas possibilidades de leitura dos elementos fotografados” para esta nova exposição.
Gerador (G.) – Sobre a tua ligação com a fotografia e carreira como fotógrafo. Quando te apercebeste ou decidiste que querias dedicar-te a esta arte?
Pedro Medeiros (P.M.) - Numa fase inicial devo essa perceção às várias idas ao cinema que na infância e adolescência realizava com o meu pai. Disse recentemente numa entrevista que vi o Barry Lyndon, do Stanley Kubrick, no velho cinema Avenida, em Coimbra, e fiquei deslumbrado com a luz que incidia sobre a tela. Ficava seduzido com os argumentos e os atores, mas lembro-me que quase sempre o que mais retinha na memória era a fotografia dos filmes. De forma mais ou menos consciente estava sempre atento à composição de cada uma das cenas, à disposição dos personagens e dos objetos e, acima de tudo, à luz que os envolvia. Como era possível captar a luz de forma tão bela através de uma lente?
Ainda em miúdo e adolescente lembro-me que o meu tio Miguel Ângelo tinha uma máquina fotográfica Minolta e alguns álbuns com fotografias que trouxe da Guiné, do período da Guerra Colonial. Contava-nos algumas experiências da guerra, mas também da cultura guineense. O poder da fotografia “eternizar” pessoas, circunstâncias, momentos históricos, perturbava-me e ao mesmo tempo exercia sobre mim um enorme fascínio. Adoro álbuns de viagem ou álbuns de família. A fotografia é um exercício de memória e uma sedutora ficção sobre a (i)mortalidade.
Mais tarde, no final dos anos 80, início dos 90, vi as exposições do Robert Frank e do Joel-Peter Witkin na Casa das Caldeiras, em Coimbra, e, em 1993, comecei a trabalhar no Centro de Estudos de Fotografia/Encontros de Fotografia. A partir dessa altura nunca mais tive dúvidas de que era à fotografia que me queria dedicar.
G. - Como caracterizarias a tua arte e o teu “estilo fotográfico”?
P.M. - A fotografia é o reflexo da minha personalidade, é a forma como traduzo o meu pensamento e interpreto o que vejo. É uma escrita que partilho com os outros.
Ao longo dos anos fiz vários tipos de fotografia, desde fotografia de cena, palco, teatro, música, performance, fotografia de rua, de viagem, documentário social na área dos direitos humanos, fotografia de arquitetura, fotografia de produto no sentido comercial, fotografia de estúdio, retrato, um sem número de temas. Fotografei padres, músicos, bailarinos, toxicodependentes, arte sacra, trabalhadores do sexo, fadistas, pugilistas, reclusos, cientistas, presos políticos, com a mesma paixão que fotografo plantas e flores.
Vejo a fotografia como uma arte em que está tudo em aberto. Pode ser direta ou conceptual. É um constante processo de interrogação e de experimentação.
G. - É comum artistas afirmarem que existiu um período nas suas carreiras em que solidificaram o seu estilo próprio e que, antes disso, tentavam reproduzir e absorver ideias das pessoas e artistas que admiravam. Consegues rever-te nesta ideia?
P.M. - Todos os artistas têm outros autores que admiram, é muito importante conhecer a história da fotografia e os seus protagonistas, ler, ver, conhecer o trabalho dos outros, faz parte do processo de aprendizagem. O percurso de cada fotógrafo vai fluindo e amadurecendo em função de muitos fatores e influências, mas o que realmente distingue um autor é quando consegue criar a sua própria linguagem, um tipo de escrita que o público começa a diferenciar e a identificar. Essa análise e validação competem a quem vê. A consolidação de uma obra é um processo moroso, de auto conhecimento e de muito trabalho.
G. - Ainda sobre o teu estilo. Os trabalhos que temos visto seus são a preto e branco. A que se deve essa escolha?
P.M. - Nos últimos anos tenho vindo a fotografar a preto e branco. Não é um imperativo, acontece intuitivamente em função do trabalho que estou a desenvolver naquele momento. Acaba por ser cada um dos trabalhos que me diz qual o suporte que devo utilizar.
No passado fotografei muito a cores, utilizei negativos cor em médio formato para diversos projetos, nomeadamente sobre a temática da prisão social e das prisões políticas. Voltamos ao facto acima referido de não ver a fotografia como uma disciplina estanque. Passei anos a fotografar em negativos preto e branco e cor 35mm, depois passei para o formato 120. Tenho algumas coisas em polaroid. Atualmente tenho utilizado a fotografia digital, mas continuo a fotografar em negativo 6x7cm. Irei certamente voltar a fotografar a cores. Tenho um projeto em mente para realizar em filme grande formato.
G. - O Pedro é de Coimbra, mas já estudaste em Lisboa e em Londres, e já viveste também em Quioto e em Tóquio. Esta diversidade de experiências e de realidades que já vivenciaste influenciam de forma significativa a arte que produzes?
P.M. - O espaço onde vivemos e a diversidade de realidades tem uma enorme influência no trabalho que produzimos. O tempo em que vivi em Inglaterra e no Japão resultaram na exposição Sherwood (2002) sobre Londres e num livro e exposição sobre Quioto - Hikari (luz,light), editado em 2018.
O conhecimento e a imersão em outras cidades e culturas enriquece-nos. A mudança é um magnífico alimento para a alma e para o corpo. A atividade criativa vive dessa adrenalina, que está na novidade e no desconhecido. A rotina e a normalidade são a morte da arte.
G. - Em relação à exposição The Pencil of Nature. No site d’O Exploratório - Centro Ciência Viva de Coimbra é possível ler que, desde 2013, tens vindo a recolher materiais relacionados com a natureza. A mostra contém fotografias que captaste desde esse período?
P.M. - Sim, os elementos da natureza representados na exposição foram recolhidos entre 2013 e 2022. É um ritual que continuo a manter.


G. - No site d’O Exploratório - Centro Ciência Viva de Coimbra, lê-se que recolhias elementos da natureza, levava-los para casa e, depois de os fotografar, devolvia-os ao local onde os tinhas encontrado. Podes falar-nos um pouco acerca desse processo criativo? Como decidias que querias fotografar certos elementos e não outros, por exemplo?
P.M. - A recolha dos elementos da natureza começou de forma instintiva, como um exercício independente da vontade, uma procura que funciona por impulso. À medida que este ritual se foi repetindo percebi que no meu subconsciente estava a ideia de explorar os aspetos antropomórficos e zoomórficos existentes na natureza. A necessidade de interrogar o poder de vida e de morte que a natureza contém e a forma como nós humanos nos relacionamos com ela.
Dos muitos elementos que recolhi fui selecionando aqueles que queria fotografar, que serviam o meu pensamento. Fotografei-os em casa num estúdio improvisado com fundo negro e luz artificial, mais tarde tornava a depositá-los no seu local de origem.
As fotografias são suscetíveis de várias interpretações. Regra geral parece-me sempre que não devo falar sobre as minhas fotografias pois estou a condicionar o olhar dos outros. De qualquer forma, assumo desta vez o risco de levantar o véu sobre algumas possibilidades de leitura dos elementos fotografados.
A casca de nogueira preta pode representar uma máscara de sabedoria ou uma máscara fúnebre, o lápis pode representar a floresta destruída ou os desastres ambientais causados pelos humanos. A espiga de trigo é o pão, base da nossa sobrevivência e cultura alimentar. A fotografia da papoila (papaver somniferum), da qual é obtido o ópio, representa a capacidade que a natureza tem em produzir substâncias, neste caso opiáceos ou opióides, de uso farmacológico e médico, mas que ao mesmo tempo podem ser utilizadas para produzir outras substâncias com os efeitos adversos que todos conhecemos. Algumas das fotografias pretendem criar uma reflexão sobre a sexualidade que existe nas formas da natureza e que nos remete para a genitália feminina e masculina.


A natureza tem o poder de nos fazer parte dela, de nos alimentar, de nos curar, mas também o poder de nos infetar, envenenar ou destruir.
Há nesta exposição o uso propositado de um ideário simbolista, de um diálogo entre ciência e espiritualidade, que pretende transmitir mensagens e desafiar a perceção de quem vê a transmutação de elementos naturais de pequena escala em fotografias de grande formato.
G. - No site do Exploratório, lê-se também que a exposição é uma homenagem a William Henry Fox Talbot e à sua obra, que tem o mesmo nome que a tua exposição. Soubeste, desde logo, que querias dar este nome à exposição e fazer esta homenagem?
P.M. - William Henry Fox Talbot (1800-1877) foi um físico Inglês, químico e inventor do processo negativo-positivo de fotografia, a calotipia. Foi também um linguista, arqueólogo e estudioso de botânica. Talbot é considerado um dos principais pioneiros da fotografia, em conjunto com Louis Jacques Mandé Daguerre (1787—1851).
Nos seus diversos estudos, Talbot revestiu folhas de papel com uma solução de sal e de nitrato de prata. Desta forma produziu cloreto de prata que tornou o papel fotossensível. Percebeu também que podia colocar objetos naturais, folhas ou outros elementos, sobre esse papel expondo-o à luz, e assim criou o que chamou de desenhos fotogénicos. Neste processo era a própria natureza que se auto desenhava sem a intervenção do pincel ou do lápis do artista. Estava criado o “lápis da natureza”, a capacidade da natureza através da fotografia se auto representar.
A imagem revelada no papel era depois fixada em hipossulfito de sódio e lavada em água. Este primeiro negativo da história da fotografia podia depois ser reproduzido noutras imagens positivas por impressão de contato em outro papel sensibilizado. Estes seus desenhos fotogénicos, e outras das suas fotografias, foram publicados de 1844 a 1846, na obra The Pencil of Nature, que veio a ser o primeiro livro ilustrado com fotografias.
Quando comecei a fotografar os primeiros elementos que ia recolhendo da natureza tive desde logo a intenção de intitular o meu projeto com o mesmo nome da obra de William Henry Fox Talbot. Se por um lado esta é uma clara forma de homenagem ao pioneiro da fotografia, por outro senti que as imagens que eu estava a produzir eram, de certa forma, igualmente desenhos fotogénicos que interrogam o processo de representação ou auto representação da natureza através da fotografia e qual a interferência do fotógrafo nesta ação.


G. - Até 30 de novembro, a tua exposição vai estar n’O Exploratório - Centro Ciência Viva de Coimbra. Como foi estabelecida esta articulação?
P.M. - O Exploratório - Centro Ciência Viva de Coimbra é uma entidade de divulgação e promoção de cultura científica com 25 anos de história. Está localizado no Parque Verde, junto ao rio Mondego, num dos locais de lazer mais agradáveis da cidade. Tem realizado um excelente trabalho disponibilizando o conhecimento da ciência através de inúmeras iniciativas junto de públicos de todas as faixas etárias.
Ciência e fotografia estão intimamente ligadas desde o uso que os pintores faziam da câmara escura no século XVI, passando pelas experiências de vários cientistas até ao aparecimento da primeira fotografia que conhecemos, realizada em 1826 pelo francês Joseph Nicéphore Niépce.
A fotografia é o resultado de vários estudos científicos da física, ótica, da química. Os primeiros fotógrafos que conhecemos tinham obrigatoriamente que possuir conhecimento de várias disciplinas científicas. A tecnologia evolui em função da evolução da ciência. A ciência e a arte são expressões da vida.
Recebi um convite da direção do Exploratório para realizar a exposição The Pencil of Nature na sua galeria de exposições Science Photo Gallery. Aceitei este convite com o maior prazer. Agradeço ao Professor Paulo Trincão, à Arquiteta Ana Rita Paiva e a toda a equipa do Exploratório o seu apoio e empenho na produção e organização deste projeto.
G. - Quais vão ser os próximos destinos da exposição?
P.M. - A exposição irá realizar itinerância pelo país. O Exploratório - Centro Ciência Viva tem um conjunto de parcerias com outras instituições com as quais estamos em contacto. Neste momento ainda não nos é possível disponibilizar a informação do calendário e dos locais de apresentação.
G. - Quais são as tuas principais expectativas para este projeto e o que gostavas que o público retivesse?
P.M. - Gostava que o público retivesse o poder regenerador da natureza e da fotografia, da ciência e da cultura. Que não fique indiferente, que sinta comoção e prazer ao ver esta exposição.
A entrada para a exposição The Pencil of Nature é gratuita e podes consultar mais informações, ao clicar, aqui.