Ao fim de três meses e de forma diária, tenho conversado com muitas pessoas, desde psiquiatras a artistas, enfermeiros a jornalistas, que me têm dado uma perspectiva pessoal e profissional sobre a forma como agiram passado um ano de pandemia.
São as M-Talks 4ALL, pequenas conversas que podem ver através do canal Youtube do Festival Mental (Youtube.com/festivalmental) e que já fazem parte do espólio deste evento agora numa segunda edição.
É quase um estudo de impacto que aborda várias vertentes: como se sentem agora, o que perderam ou ganharam, quais as ideias, fórmulas e estratégias que usaram, quais os maiores sacrifícios, e como grande questão, se acreditam que o mundo acordou para a necessidade de uma alteração de hábitos e comportamentos ou se vai tudo ficar da mesma forma quando este pesadelo terminar.
Há quem seja optimista e acredite que as pessoas entenderam que a Natureza está no seu último fôlego e que é preciso, aliás, é obrigatório travar já. E esse abrandamento tanto pode ser a nível do consumo, evitando continuar a custear a produção em massa que tanto custa a tantos, inclusive a própria liberdade, como, numa outra perspectiva, a alteração dos hábitos alimentares.
Há quem seja realista e adivinhe que pouco vai mudar, mas os sinais estão aí e as pessoas, talvez alguns governos, percebam que estamos no limite dos recursos naturais e que não podemos continuar assim.
Por fim, os pessimistas que, mesmo não querendo mostrar que perderam a esperança, ou mesmo a fé no seu sentido mais lato, não acreditam em qualquer mudança. O ser humano é como é, assusta-se quando está aflito, mas assim que o problema é ultrapassado, volta a ser como era.
A verdade é que todas estas pessoas perderam algo e/ou alguém, num ano nefasto para todo o mundo que continua a sofrer a diferentes compassos. Nem falo da liberdade e dos direitos, pois cada um encara como deve ou pode essa alteração do quotidiano, sabendo que estes irão ser readquiridos brevemente. Mas perderam “vida”, tacto, carinho, alegrias e ritmos. Os mais novos, mais ansiosos porque estão na idade de todas as descobertas, são quem mais sente a falta dos dias, das paixões, das brincadeiras e de toda a aprendizagem e crescimento social.
A falta do abraço, do toque, que é mais sentido, profundamente sentido, nos povos do sul, habituados que estão a esse tipo de comportamento, foi um assunto abordado por quase todos com quem conversei. E como vai ser a partir do momento em que nos podemos abraçar? Continuará o receio de ser contagiado ou contagiar alguém? Será um ano o tempo suficiente para mudar comportamentos seculares?
Esta é já uma grande mudança social, pois a pandemia obrigou a mudanças brutais e sem aviso, como, por exemplo, deixar os locais de trabalho e ficar confinado em teletrabalho num apartamento com mais dois filhos e um cão, 24/7 sobre 24/7. Quem estava preparado para isto? E como foram as relações familiares afectadas? E agora, que toda a harmonia se alterou mas que também criou novas dinâmicas familiares, como desfazê-la e regressar ao “antigo normal”?
E, já agora, que designação encontrar para o futuro próximo visto que “o novo normal” é um conceito tão errado como foi “afastamento social”?
O normal seria uma mudança de status quo, agora que fomos avisados de forma tão brutal que uniu o mundo (ou parte dele) na busca de uma solução. Uma mudança de políticas reais e possíveis, sem promessas e assinaturas de grandes dossiers que caem sempre em saco roto ou são abandonadas por superpotências que deveriam dar o exemplo.
O normal seria ficarmos cientes que esta pandemia pode ter repetições, como as ondas de um tsunami ou as réplicas de um tremor de terra.
Se o entendermos, mudaremos comportamentos por autoiniciativa, tal como nos começámos a proteger e a ficar em casa, a quem foi possível, antes do primeiro estado de emergência.
E, muito sinceramente, só assim poderemos acalentar alguma esperança para o mundo que iremos deixar.
*Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico
-Sobre Ana Pinto Coelho-
É a directora e curadora do Festival Mental – Cinema, Artes e Informação, também conselheira e terapeuta em dependências químicas e comportamentais com diploma da Universidade de Oxford nessa área. Anteriormente, a sua vida foi dedicada à comunicação, assessoria de imprensa, e criação de vários projectos na área cultural e empresarial. Começou a trabalhar muito cedo enquanto estudava ao mesmo tempo, licenciou-se em Marketing e Publicidade no IADE após deixar o curso de Direito que frequentou durante dois anos. Foi autora e coordenadora de uma série infanto-juvenil para televisão. É editora de livros e pesquisadora. Aposta em ajudar os seus pacientes e famílias num consultório em Lisboa, local a que chama Safe Place.