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Pessoas invisíveis, ainda

Fotografia da cortesia de Ana Catarina Correia

Tenho 30 anos. Sou mulher, caucasiana. Cresci e fui educada numa família humilde onde os recursos financeiros e de educação formal nunca foram abundantes. Juntamente com tudo isto, tenho uma deficiência que faz parte da minha identidade.

A mensagem que vos quero deixar é que todas estas coisas (e outras) condicionaram as minhas escolhas e uma boa parte daquilo que sou hoje. Ser português, neste caso mulher, viver em Portugal e nascer com ou adquirir uma deficiência ao longo da vida é tudo, menos fácil. Não pela deficiência em si, não pelo diagnóstico aparentemente "trágico" e complicado. É difícil pela opressão a que estamos sujeitos; pela maior exposição à pobreza; por vermos os nossos direitos e dignidade violados e ignorados todos os dias; é difícil porque o espaço público não nos pertence (muitas vezes não podemos sequer usufruir dele); é difícil pela ausência de oportunidades com que nos deparamos e que vem embrulhada num discurso de "a realidade é o que é"; é difícil por tudo isto e a lista é extensa, muito extensa. Mas é difícil, é duro, sobretudo pela forma como a sociedade nos vê e considera (ou desconsidera?).

Na generalidade, quando se pensa nas pessoas com deficiência - particularmente deficiências mais significativas e visíveis - há sensações/pensamentos comuns por parte de quem não vive esta realidade. Por um lado, é uma tragédia e algo negativo que nos assaltou a nós e à família. Quem nunca ouviu ou pensou na célebre frase "condenado(a) a uma cadeira de rodas?"; num outro extremo somos uma espécie de fonte de inspiração gratuita porque "apesar das dificuldades conseguiu" ou "que exemplo, eu não conseguia viver assim!". Somos também uma espécie de "pessoa que não existe" porque para muitos depararem-se connosco é lembrar a fragilidade e vulnerabilidade humanas. E isso custa, é desconfortável. Para muitos, a nossa existência começa e termina num assombroso diagnóstico. Por isso, enfrentamos micro agressões todos os dias: olhares indiscretos de espanto, pena e compaixão; pessoas que falam connosco como se tivéssemos 5 anos ainda que tenhamos 30 ou 50; que não se dirigem diretamente a nós sobre assuntos que nos dizem respeito; pessoas desconhecidas que perguntam indiscretamente "o que é que tu tens?" ou "em que instituição estás/vives?"; que nos dão esmolas na rua e ficam desconfortáveis com a nossa presença; que dizem aos nossos amigos(as) sem deficiência que são espetaculares porque estão connosco num bar a beber uma cerveja. E estes são apenas alguns exemplos, muitos mais haveriam. Mostram bem como se tornou natural e aceitável que devemos estar um pouco “à parte”. Isto é fruto de um Portugal que nos vê se como seres frágeis, vulneráveis e que necessitam de proteção e abrigo. De um Portugal que coloca nas nossas famílias a total responsabilidade das nossas vidas e dinâmicas diárias, levando-as à exaustão extrema e depauperação completa. Ou que nos empurra para espaços “especiais” e preparados para nós. Espaços onde somos apenas os “outros” e não parte de um todo comum.

E é aqui que está o grande problema. Precisamos urgentemente de um Portugal que nos olhe realmente: como cidadãos(ãs), como pessoas dignas de direitos. Que não têm que estar eternamente gratas por serem mantidas à margem. Que não têm que ser sujeitas a uma invisibilidade atroz. Que merecem respeito. Merecem viver e não apenas existir.

Poderão dizer-me, e com razão, que esta é uma visão demasiado pessimista. Que em Portugal avanços houve nestas matérias. E é verdade, reconheço-o. Temos bastante legislação que nos confere direitos, temos mentalidades mais avançadas, é facto. Observa-se uma melhoria significativa das prestações sociais que nos estão destinadas; existem respostas inovadoras como o atual Modelo de Apoio à Vida Independente; conquistamos um respeito notável no movimento paralímpico internacional... Estes são apenas alguns exemplos. De facto, temos mais visibilidade hoje do que tínhamos há 10 anos. Contudo, muito ainda há por fazer. Uma parte considerável do plano legal e compromisso social e político são letra morta.

Acredito que uma força fundamental será um ativismo na deficiência cada vez mais forte e consolidado. E faço um apelo: precisamos com urgência que as pessoas com deficiência e as suas famílias tomem consciência – coletivamente – da opressão e exclusão a que continuam expostas. Que se organizem enquanto motor de mudança desenvolvendo e acreditando no seu poder transformador. E que todas as pessoas que possam e queiram se juntem a estas lutas. A mudança mais forte é feita no coletivo! E as sociedades mudam por força de todos aqueles(as) que dela fazem parte. Certamente construiremos um Portugal melhor.

-Sobre a Ana Catarina Correia-

Licenciada e mestre em Sociologia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto com interesse particular na problemática da deficiência. Foi doutoranda na mesma escola e área disciplinar, num projeto de investigação que versa sobre as políticas para a deficiência em Portugal e na Europa e que dá enfoque à filosofia da Vida Independente e que ainda não foi finalizado.
Atualmente, é técnica no Centro de Apoio à Vida Independente Norte da Associação Centro de Vida Independente. Na mesma organização é dirigente e coordena a delegação do Porto. Colabora, ainda, com outras organizações representativas de pessoas com deficiência. É ainda atleta federada de Boccia pelo Sporting Clube de Espinho e membro da seleção nacional da modalidade desde 2016.
Grande motivação na vida: a crença de que a construção de sociedades justas e inclusivas depende de cada um de nós e que esse será um dos grandes sinais de desenvolvimento humano. E qual é uma das grandes bases para este desenvolvimento? A educação e uma consciência global de Direitos Humanos.

Texto de Ana Catarina Correia
Fotografia da cortesia de Ana Catarina Correia
A opinião expressa pelos cronistas é apenas da sua própria responsabilidade.

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