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Pode um bom advogado ser uma boa pessoa

Nas Gargantas Soltas de hoje, Noa Brighenti fala-nos sobre as responsabilidades de um advogado.

Opinião de Noa Brighenti

Fotografia da cortesia de Noa Brighenti

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Há um sabor amargo na palavra advogado que condiz com a figura. Quando penso muito nela vem-me ele à mente e, por mais anos que passe na Faculdade de Direito (e o tente apagar), ele continua a ser um homem assertivo de queixo levantado e nariz muito comprido que me olha de soslaio e pergunta o que queres? enquanto ajeita um lenço de seda à volta do pescoço; o lenço é magenta, o cabelo é preto e o bigode é quase inexistente. Aqui está! nesta esquina da Avenida da Liberdade! o verdadeiro génio da lâmpada (que tudo dá, à custa de um preço). 

Baseando-nos nesta imagem (bastante difundida pela sociedade) diríamos, à primeira vista, quando confrontados com uma das grandes perguntas da Ética Legal: pode um bom advogado ser uma boa pessoa? que não — afinal, como pode ser bom quem defende qualquer coisa e qualquer pessoa mediante certa quantia monetária? —, contudo tal é mentira. Um bom advogado pode ser uma boa pessoa, mas apenas se estiver inserto num sistema cuja forma de abordar a Ética Legal o permita.

Os diferentes modelos de abordagem distinguem-se conforme a sua resposta a duas perguntas: primeira, devem os advogados reger-se pela ética geral ou reger-se por uma ética especial derivada do seu papel na sociedade (role morality)?; segunda, devem os advogados ser ou não ser pessoalmente responsáveis pelas regras morais que desrespeitem na sua conduta profissional?.

Os dois principais modelos de conduta — o Adversarial Advocate e o Responsible Lawyer — têm na sua base as mesmas respostas: consideram que os advogados devem obedecer a uma ética especial e que não devem ser responsabilizados pessoalmente. Diferenciam-se, porém, por um sustentar que o fim último da profissão deve ser prosseguir os interesses do cliente (Adversarial Advocate) e o outro sustentar que o fim último da profissão deve ser prosseguir a obediência à lei (Responsible Lawyer)

De entre os dois, o primeiro é o mais difundido (e o que se aplicaria à personagem atrás descrita). Este modelo surgiu no âmbito do Adversarial System — um sistema que se carateriza pela separação entre a entidade que julga e a entidade que acusa e investiga, de modo a que a decisão tomada seja a mais justa por ser tomada apenas pela pessoa competente para o fazer (o Juiz). Como dita George Sharswood, “the lawyer who refuses his professional assistance because in his judgment the case is unjust and indefensible, usurps the function of both judge and jury1".

Assim, o Adversarial Advocate é um advogado amoral, que procura satisfazer os interesses dos seus clientes com o máximo vigor e pondo de lado os seus próprios ideais morais: "where the attorney-client relationship exists, it is often appropriate and many times even obligatory for the attorney to do things that, all other things being equal, an ordinary person need not, and should not do2”. Desta forma, desde que o que o advogado e o cliente fazem se encontrar dentro da moldura legal, a responsabilidade moral recai sobre o cliente e não sobre o advogado.

Em suma, os interesses daquele são colocados acima de tudo, embora seja ainda necessário respeitar a lei. Já no modelo do Responsible Lawyer ocorre o oposto: a lei é colocada acima de tudo, sendo necessário respeitar os interesses do cliente (que não são prosseguidos a todo o custo).

Este segundo modelo parte da ideia que “the wellspring of a lawyer's duties to clients and to the public flow from the legal profession's unique role in society as the trustee for the forms of social order3”. Ou seja, os advogados são agentes do sistema jurídico e por isso o seu papel é maior do que representar os seus clientes: têm, um dever primordial de manter a integridade “of the legal system in the public interest4".

Assim, neste modelo, os advogados são também amorais: as suas ações não se baseiam na sua moral nem nos interesses do cliente, mas antes no interesse e respeito pelo sistema jurídico existente. Esta abordagem “does require that lawyers pursue those actions that seem likely to promote legal justice, that is, the basic values of the legal system. It sees the lawyer’s role as helping clients to pursue justice according to law, no more and no less5”.

Ambos os modelos — ainda que de formas diferentes — procuram prestar a cada um o que lhe é devido. Um procura alcançá-lo através da prevalência dos interesses do cliente — num sistema acusatório em que a amoralidade do advogado assegura que cada decisão legal é justa, por ser tomada pela pessoa competente para o fazer; o outro, procura alcançá-lo através da prevalência das instituições legais — assumindo o papel do advogado (enquanto agente amoral da lei) como garante da aplicação do Direito Positivo e consequentemente da aplicação da justiça legal nele intrínseca. 

Mas se olharmos mais de perto, apercebemo-nos que ambos os modelos falham; e falham naquilo que os une: por considerarem que os advogados devem obedecer a uma ética especial e não devem ser pessoalmente responsáveis.  

Receamos de tal maneira o poder dos advogados que atribuímos a outras coisas exteriores a eles a obrigação de assegurar que o sistema jurídico e as decisões que dele emanam são justas. Esquecemo-nos, contudo, que se desresponsabilizarmos o advogado das suas decisões morais ele não só será amoral, mas também imoral quando aquilo que deveria garantir a justiça — como a lei ou a organização do sistema processual — for em si imoral, pois o advogado não tem a obrigação de, acima de tudo, prosseguir a Justiça.

Como resultado, o Adversarial Advocate tira partido das falhas e lacunas da lei para escapar à sua obediência, moldando as palavras de modo a alcançar os seus objetivos individuais e o Responsible Lawyer, por outro lado, está tão preocupado em aplicar a lei que a segue cegamente, estagnado-a (por não estar preocupado em adaptá-la à sociedade e aos cidadãos) e permitindo/apliando leis imorais (tais como as que proíbem a homossexualidade).

Dito isto, levanta-se outra questão: não há um modelo que dê precedência à procura da Justiça? Há, o Ativismo Moral — termo usado pela primeira vez por David Luban em 1988 no livro Lawyers and Justice: An Ethic Study.

Neste modelo, o advogado deve reger-se pela ética geral e é pessoalmente responsável pelas suas condutas profissionais, pois, como escrito por Paul R. Tremblay, “Luban's argument is that mere reliance on a role is insufficient to justify questionable actions6". Assim, os profissionais são encorajados “to have their own convictions about what it means to do justice in different circumstances and to seek out ways to implement those convictions as lawyers7”, podendo ocorrer um advogado recusar ou separar-se dos projetos de um cliente se estiver convicto “that they are immoral or unjust8”.

Em suma, o advogado do Moral Activism difere dos advogados dos outros modelos por não prosseguir cegamente nem os interesses do cliente nem a lei: em vez disso, quando acredita na Justiça de uma causa prossegue-a até ao seu limite, mesmo que isso signifique explorar as lacunas da lei escrita. Isto foi o que ocorreu, por exemplo, na época dos Civil Rights Movements, quando os advogados ajudaram, através da sua prática com a lei e contra a lei, a denunciar o sistema vigente e a construir os alicerces para a mudança. 

Procurar a Justiça, mesmo procurando-a fora do sistema legal, não é sinónimo de desrespeitar a lei. Pelo contrário, é neste ajustamento que provamos a nossa crença na necessidade e capacidades do Direito: o que não evolui morre e, portanto, cabe aos advogados desrespeitar a lei se este desrespeito garantir a sua subsistência. Como declarou Martin Luther King, “An individual who breaks a law that conscience tells him is unjust, and who willingly accepts the penalty of imprisonment in order to arouse the conscience of the community over its injustice, is in reality expressing the highest respect for law9”.

Um bom advogado pode ser uma boa pessoa, mas para isso é preciso que o sistema em que ele se encontra o veja como uma pessoa e não como uma máquina de prossecução de interesses, poder, dinheiro. Em palestras já ouvi grandes firmas dizerem que ter pelo menos um burn out na vida é normal, já ouvi sócios surpreenderem-se por conseguirem manter a vida familiar e já ouvi estagiários dizerem que se temos hobbies (se gostamos de fazer qualquer outra coisa que não Direito na vida) não vale a pena entrarmos no estágio.A vida de um estudante de Direito é rodeada de promessas de sofrimento, cansaço, maus tratos e, mais do que isso tudo, dinheiro. Ensinam-nos que este tem de ser o nosso motor; não a Justiça nem o desejo de mudar o que quer que seja (desejo esse que vai morrendo à medida que nos mudam a nós) e por isso tudo pensar em ser advogada dá-me um certo asco — tenho medo de me tornar ele. São tanto eles que me esqueço dos milhares de advogados cujo trabalho moveu montanhas na luta por um mundo melhor (por mais cliché que esta frase soe) — bons advogados que são boas pessoas. Se mudarmos este sistema (introduzirmos o Moral Activism nas faculdades, nas sociedades) talvez todos os bons advogados possam vir a ser boas pessoas também.


1SHARSWOOD, GEORGE, Legal Ethics, 1854.
2RICHARD, WASSERSTROM, “Lawyers as Professional: Some Moral Issues”, Human Rights, vol. 5, 1975.
3LEAH WORTHAM, Teaching Professional Responsibility in Law School, 1993.
4PARKER, CHRISTINE, “A Critical Morality for Lawyers: Four Approaches to Lawyers' Ethics”, 2019.
5PARKER, CHRISTINE, “A Critical Morality for Lawyers: Four Approaches to Lawyers' Ethics”, 2019.
6TREMBLAY, PAUL R. “Practiced Moral Activism”, 1995.
7PARKER, CHRISTINE, “A Critical Morality for Lawyers: Four Approaches to Lawyers' Ethics”, 2019.
8LUBAN, DAVID, "Lawyers and Justice: An Ethical Study". Princeton University Press, 1988.
9MARTIN LUTHER KING, JR, “ Letter from a Birmingham Jail”, 1963.


-Sobre a Noa Brighenti-

Noa Brighenti começou por colecionar conchas e cromos aos 6 anos. Com 9 recitou o seu primeiro poema, teve o seu primeiro amor e deu o seu primeiro concerto no pátio da escola. Fartou-se dos museus aos 13, jurou que nunca mais pintaria aos 14 e quando fez 17 desfez este juramento. Com 21 anos, coleciona gatos e perguntas. Pelo meio, estuda Direito na Faculdade de Direito de Lisboa, anda, pinta e lê. De vez em quando escreve — escreve sempre de pé.

Texto de Noa Brighenti
Fotografia da cortesia de Noa Brighenti
A opinião expressa pelos cronistas é apenas da sua própria responsabilidade.

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