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Podem os imigrantes reclamar?

Nas Gargantas Soltas de hoje, Mariana Braz fala sobre o direito a reclamar.

Opinião de Vozes Coletivas - Brasileiras Não Se Calam

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Nas últimas semanas, duas amigas brasileiras vieram me contar que têm tentado não reclamar tanto das coisas que funcionam mal no país porque têm percebido que reclamar não é algo bem visto por muitos dos portugueses. Fiquei pensando sobre isso e lembrei de uma vez, há uns anos, em que eu estava no metro e a máquina de venda automática de bilhetes não estava a funcionar. Eram umas 10 horas da manhã e um homem português engravatado, que aparentava ter mais ou menos a mesma idade que eu, não conseguia comprar o bilhete e começou a praguejar e reclamar do país inteiro, quando, naquela situação específica, era a máquina do metro, e não o país que não estava a funcionar bem. “Este é o país da palhaçada!” - gritava ele. Eu dei meia volta e fui em busca de um multibanco. Saí da estação, carreguei o meu passe e, quando voltei, o mesmo homem ainda estava lá, a praguejar contra o país. Embora, particularmente, eu ache que aquele homem estava fazendo uma tempestade em copo d’água, porque todos os dias eu pegava o metro naquela mesma estação para ir à universidade e era a primeira vez que via aquela máquina avariada, fiquei pensando na liberdade que ele tem, e eu não. Liberdade de poder encher o peito e gritar que “Portugal é o país da palhaçada” e não ouvir alguém gritar de volta: “Se achas ruim, volta para o teu país!”, e, no meu caso, talvez ainda acrescentassem um “brasileira”. 

Entendo perfeitamente que, como me disseram uma vez, não é agradável receber “visitas” e ter a sua “casa” criticada, mas é precisamente esta a questão. Nós, imigrantes, não somos visitas. Visitas não pagam hospedagem. Visitas não lavam os pratos. Visitas não servem a mesa. Visitas não fazem o pão. Por mais que alguns imigrantes venham com objetivos pontuais de conseguir a nacionalidade portuguesa para migrar novamente, ou de tirar um mestrado ou um doutoramento, ainda assim, isto implica viver em Portugal, pelo menos, de dois a seis anos. Então será que podemos chamar de “visita” alguém que passa dois anos vivendo em nossas casas? Se eu pudesse fazer uma média, diria que, após o primeiro ano, a fase de encantamento com o país já passou e passamos a perceber muitos dos problemas de Portugal, muitos dos problemas do Brasil que não percebíamos até sair de lá, e a enxergar com mais nitidez os esqueletos escondidos no armário pelos dois países, em um pacto feito desde a colonização. Em muito menos tempo, obviamente, já aprendemos também coisas mais importantes, de sobrevivência básica, por exemplo: a substituir o salto alto por tênis no nosso guarda-roupas, quais os eletrodomésticos que não podem ser ligados ao mesmo tempo para não ficarmos sem energia, que as luzes da casa de banho são ligadas pelo interruptor do lado de fora, a levar o seu próprio saco para o supermercado, a não ir a uma papelaria e pedir um Durex, e a não falar que quer um broche ou que vai fazer um bico.

Outro fato que acho curioso, é que, quando são ingleses, franceses ou norte-americanos a reclamar de Portugal e a dizer que no país de origem deles isso ou aquilo é melhor, não vejo portugueses a gritar: “Go back to your country!”, pelo contrário, o que vejo são cada vez mais, em restaurantes, menus em português sendo substituídos por menus em inglês, o que me leva a pensar que, na realidade, a questão não é reclamar, é quem reclama. Devido a falta de interesse de se desconstruir a mentalidade colonialista no país e ao endeusamento dos chamados descobridores, ainda é inconcebível para boa parte dos portugueses que os “colonos” possam reclamar da “metrópole”. É ofensivo que nós, depois do grande “favor” feito por Portugal, o grande pai, em nos receber na terra da fraternidade, acharmos que temos o direito de reclamar. É uma afronta que, depois de séculos de exploração, brasileiros e africanos ainda consigam reconhecer e dizer que existem algumas coisas que são melhores nos países deles do que em Portugal. Não se trata aqui de arrogância ou de algum tipo de competição tola, até porque, nós, imigrantes brasileiros e PALOPs, já sabemos, por experiência, em que os nossos países superam Portugal e em que Portugal supera os nossos países, a questão aqui é que reconhecer também a humanidade e a capacidade dos nossos povos e países talvez seja um dos primeiros passos para reparação histórica e para que nos enxerguem como seres humanos à mesma altura.

O Portugal que conhecemos hoje foi construído com a exploração do trabalho físico de nossos povos no período colonial, e, ainda hoje, a nossa capacidade intelectual e de pensamento crítico é desprezada, numa tentativa de desumanização e infantilização. É preciso reconhecer que os imigrantes não têm apenas a capacidade para o trabalho e para contribuir com a Segurança Social, mas que podemos sim contribuir para o desenvolvimento do país a todos os níveis trazendo sugestões, discussões, parcerias, e que, assim como podemos aprender, também podemos ensinar aos portugueses. É preciso fortalecer essa identidade frágil, que, ao ouvir críticas em relação ao país vindas de um outro, um outro estrangeiro, acha que vai romper. Se, ao invés de tentar proibir que alguns imigrantes reclamem, nos organizamos para reclamar juntos, somos mais fortes e temos mais poder de cobrar que os governantes trabalhem para que as coisas que são melhores em nossos países de origem também cheguem a Portugal. Então, continuemos reclamando.

-Sobre Brasileiras Não Se Calam-

Mariana Braz é psicóloga e vive fora do Brasil há seis anos, tempo em que vem trabalhando com mulheres imigrantes em diversos países, particularmente mulheres que vivenciaram assédio e discriminação motivados por sua raça, etnia, gênero e nacionalidade, e mulheres sobreviventes de violência doméstica. Há três anos desenvolve o Brasileiras Não Se Calam, projeto que tem como objetivo debater as dificuldades enfrentadas por mulheres brasileiras no processo de imigração.

Texto de Mariana Braz
A opinião expressa pelos cronistas é apenas da sua própria responsabilidade.

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