A orientação das políticas culturais na Europa vai muito de modas. Contudo, há um fio de prumo e esse assenta que nem uma luva na maximização dos impactos sociais e económicos e na ênfase nos valores extrínsecos, que encaram a cultura como um recurso, um meio para alcançar um fim que se situa alhures. Daí que a atividade cultural sirva hoje para tudo: para acelerar o turnover das mercadorias, introduzindo diferenças estéticas que “inventam” novos produtos, estreitando a diferenciação entre a esfera económica e a cultural; promovendo o “desenvolvimento” sustentável; ocupando o tempo livre dos jovens e idosos através de modalidades de “animação”; estimulando o multiculturalismo, tantas vezes meramente festivo ou de fachada, usando ferramentas de “mediação”; acumulando capital social e simbólico na luta entre as classes sociais; alimentando o turismo; criando valor no marketing das cidades e na competição entre territórios; forjando “clusters criativos”; favorecendo a coesão (ou domesticação) social; etc., etc.
Parece haver muito pouca apetência pela visão romântica dos mundos da arte e da cultura em que estas surgiam como fins em si mesmos, práticas “puras”, desligadas da necessidade ou função. A cultura por si mesma sofre um enorme défice de legitimação no discurso hegemónico. O imenso poder desta constelação normativa coloniza os campos de atuação dos criadores, associações e ONG, que têm sempre de justificar um qualquer financiamento com base em indicadores extra culturais mensuráveis. Paradoxalmente, a culturalização da economia, das condutas (transformadas num supermercado de estilos de vida e em tecnologias de “apresentação de si”) e da ordem cívica caminha a par e passo com o esvaziamento do seu cariz intrinsecamente específico e qualitativo. Pois se tudo é “cultura” nada o é.
Victoria Alexander sintetiza os seguintes pontos dessa orientação para o mercado (ainda que os modelos nacionais de política cultural sejam tendencialmente híbridos e comportem modos de intervenção do Estado):
1. Uma ênfase nas fontes de receita financeira privada dentro do campo cultural, bem visível no aumento da dependência face ao mecenato;
2. Regimes tributários que recentram a alocação de recursos do Estado para o mercado;
3. Uma política com foco no valor público, responsabilidade do consumidor e um retorno demonstrável sobre o investimento estatal
4. Realce de políticas com enfoque económico e centradas no estímulo ao crescimento e à geração de riqueza;
5. Desestatização, desregulamentação e uma mudança para estruturas de governança que refletem a operação do setor privado;
6. Integração ativa do campo cultural subsidiado nas indústrias criativas e na economia criativa com a inscrição do setor cultural subsidiado em discursos de inovação, criatividade e competitividade global;
7. Limitada intervenção estatal nos domínios do emprego cultural e uma aposta no sujeito criativo empreendedor dentro de um mercado de trabalho flexível.
Desta forma, a política cultural europeia, ainda que atravessada por contradições e margens de negociação, surge como mais um braço do business as usual. Sinal, também, do empobrecimento do mundo e da vitória (provisória?) do pensamento unidimensional.
Referência: Alexander, Victoria D.. 2018. Enterprise Culture and the Arts: Neo-Liberal Values and British Art Institutions. In: Victoria D. Alexander; Samuli Hägg; Simo Häyrynen and Erkki Sevänen, eds. Art and the Challenge of Markets: National Cultural Politics and the Challenges of Marketization and Globalization 1. London: Palgrave, pp. 67-93. ISBN 978-3-319-64585-8
-Sobre João Teixeira Lopes-
Licenciado em Sociologia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (1992), é Mestre em ciências sociais pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (1995) com a Dissertação Tristes Escolas – Um Estudo sobre Práticas Culturais Estudantis no Espaço Escolar Urbano (Porto, Edições Afrontamento,1997). É também doutorado em Sociologia da Cultura e da Educação (1999) com a Dissertação (A Cidade e a Cultura – Um Estudo sobre Práticas Culturais Urbanas (Porto,Edições Afrontamento, 2000). Foi programador de Porto Capital Europeia da Cultura 2001, enquanto responsável pela área do envolvimento da população e membro da equipa inicial que redigiu o projeto de candidatura apresentado ao Conselho da Europa. Tem 23 livros publicados (sozinho ou em co-autoria) nos domínios da sociologia da cultura, cidade, juventude e educação, bem como museologia e estudos territoriais. Foi distinguido, a 29 de maio de 2014, com o galardão “Chevalier des Palmes Académiques” pelo Governo francês. Coordena, desde maio de 2020, o Instituto de Sociologia da Universidade do Porto.