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Por detrás das máscaras: a cumplicidade das aulas artísticas num momento que impossibilita o toque

Quando o estado de emergência foi decretado, em março deste ano, estudantes e professores de…

Texto de Carolina Franco

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Quando o estado de emergência foi decretado, em março deste ano, estudantes e professores de todas as escolas e universidades pelo país viram-se obrigados a adaptar-se a um contexto que nunca antes tinham experienciado. Se no ensino regular as complicações e desafios foram surgindo, inclusive a questão de como chegar a estudantes que não têm computador nem Internet nas suas casas, nas escolas artísticas houve algumas das mesmas preocupações e outras acrescidas. Num ensino que privilegia a partilha, o trabalho em grupo e o toque, o que é que se perde? E o que é que se ganha?

Com o regresso às aulas e um novo ano letivo a começar, o ensino presencial voltou a ser uma realidade, ainda que com as devidas regras que permitam cumprir a higienização e o distanciamento. Nas escolas e faculdades artísticas, como nas restantes, é obrigatório o uso de máscara e a desinfeção das mãos, é proibida a troca de materiais entre colegas e o convívio passa a ser mais comedido.

Lívia Ferreira, estudante de Design de Produto na Escola Artística Soares dos Reis, no Porto, conta que se sente “bastante segura” nas aulas e que, ao contrário do que podia ser expectável, o distanciamento não significa falta de comunicação. “O que mudou mais, talvez tenha sido a maneira como as aulas são dadas. A proximidade que os professores têm com os alunos, sinto que aumentou, ao contrário do que esperava. Partilhamos a mesma preocupação , talvez seja isso que nos una”. Nesta escola em que tantas vezes se trabalha em grupo, “não se pode partilhar material” e este “deve ser trazido de casa”. 

No caso de Mariana Matos, estudante do 2º ano de Design de Comunicação na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa (FBAUL), as aulas dividem-se entre as salas de aula e videochamadas a que assiste através de casa. É por este limbo que sente que “o regresso às aulas tem sido estranho”, como já o esperava: “o dia começa sem sair de casa, entre mim e um ecrã. Logo aqui sinto que muito mudou, principalmente a falta destes encontros casuais, inusitados, com as pessoas das Belas Artes. No caso das aulas, não deixo de notar que alguns dos professores, apesar de serem sempre compreensivos com a situação, estão bastante desmotivados. Alguns dos alunos acabam por participar menos nas aulas e desligam câmeras, o que torna as aulas monótonas e como se fosse um ‘one man show’ da parte do professor”, conta. 

Podendo optar pelo presencial, há professores que o fazem, mas deixam aberta a opção de, quem quiser, poder assistir a partir de casa. “Há alguns alunos que estão fora de Lisboa, outros têm pessoas de risco que querem proteger, e outros estão mesmo de quarentena”, explica Mariana. A estudante de Design de Comunicação acrescenta que, ainda que sinta mudanças na forma como se relaciona com a faculdade, o seu é “o que tem menos a perder” por “não ter tanto a componente material” e não precisar, por exemplo, do trabalho em ateliê. 

Entre cumprir as regras e ter de repensar modos de fazer

Quando entra na FBAUL, Mariana tem de medir a temperatura, estar de máscara e desinfetar as mãos. Na sala de aula, desinfeta novamente as mãos e faz o mesmo com o espaço em que se vai sentar, tanto na cadeira como na mesa. Apesar de já não poder estar na biblioteca ou noutros espaços comuns a trabalhar com os colegas e a receber o seu feedback sobre o seu trabalho — que considera “muito importante” —, consegue usufruir das aulas dentro dos possíveis, com o seu computador como ferramenta de trabalho, como já acontecia anteriormente. 

Mas se nas aulas de Design o instrumento de trabalho permite a utilização de uma máscara, o mesmo nem sempre acontece, por exemplo, no Hot Clube de Portugal. “Nas aulas em que não podemos ter máscara, como as de saxofone ou trompete, porque é mesmo preciso tirar a máscara para ter um instrumento na boca, cumprimos os restantes procedimentos. Claro que não é fácil trabalhar assim, sobretudo em disciplinas de grupo, de tocar em conjunto, porque acaba por haver um certo afastamento”, explica César Cardoso, professor de saxofone, teoria e combo no Hot Clube, sendo as últimas aulas de grupo, em que os estudantes formam uma banda. 

Sendo o jazz um género que vive da partilha e da reunião de vários músicos, há coisas que naturalmente se perdem e outras que tiveram de sofrer uma interrupção. César conta que “já aconteceu estar numa aula e querer dar uma indicação a meio da música” e, por não lhe poderem ler a expressão facial ou os lábios, os alunos “não ouvirem, nem perceberem”. E, nestas salas de aula, os grupos têm de ser reduzidos, daí este ano terem optado por não abrir a orquestra dos estudantes — Big Band

“Em conversa com a direção do Hot, optámos por não fazer orquestra. Ia ser muito complicado manter o distanciamento, então tomámos esta decisão e, eventualmente, se isto passar, retomamos. Mas, por agora, não, até porque os próprios combos, com músicos de diferentes instrumentos, acabaram por ser mais reduzidos. Apesar de as salas no Hot não serem muito grandes, mas a Big Band, como teria 20/25 alunos, achamos melhor ficar para quando for possível — e esperamos que seja em breve”, conta o professor e gestor da orquestra. 

Caso seja necessário voltar a fechar as escolas, o Hot Clube terá de voltar ao contexto que encontrou em março, via Internet, e que também não é favorável na aprendizagem de música. César explica porquê: “há aulas para tocar em conjunto em que não dá para o fazer pelo computador, por causa do delay”. Mas se assim tiver de ser, novas formas de ultrapassar os desafios surgirão.

Formar professores e lembrar-lhes que “não estão sozinhos”

Durante o estado de emergência, os professores tiveram de se reinventar e adaptar a um sistema que, para alguns, era totalmente novo. Falar para uma turma através de um programa de aprendizagem à distância, num computador, ir a reuniões também num computador, e repensar métodos de ensino — sobretudo nessas disciplinas que viviam da partilha do aqui e agora, num mesmo espaço.

Foi nesse sentido que o projeto Arte Central, que trabalha para levar a educação artística às escolas, museus e outras instituições, também repensou as suas formações. Marta Ornelas, professora e fundadora do projeto, partilha que inicialmente foi difícil reformular as atividades para um contexto pandémico. “As atividades extracurriculares e os workshops nas escolas terminaram. A escola online tomou conta da vida das famílias. Nós não quisemos oferecer as nossas atividades em modo online, porque víamos crianças cansadas do excesso de videoconferências (o que depois veio a chamar-se de Zoom fatigue) e não queríamos ser ‘mais escola’ ”, partilha.

Decidiram, por isso, focar-se na formação de professores. Reformularam “as ferramentas de trabalho e a logística”, mantendo os mesmos conteúdos, tendo em vista que os professores pudessem experimentar “as potencialidades do modelo online para que o possam transportar para as suas aulas, quer estas decorram presencial ou virtualmente”. “No fundo, são os valores da educação artística de qualidade que entendemos que devemos passar”, refere Marta. 

Por entenderem a necessidade de auscultar professores, procuraram “saber o que se estava a passar nas disciplinas escolares das artes visuais” e fizeram uma chamada para receber feedback. A partir daí, criaram um Dossier de Práticas de Educação Artística – artes visuais em tempo de pandemia que, conta, pretendeu “mostrar aos professores que não estavam sozinhos e que era possível  trabalhar com os alunos em atividades diversas”. Num segundo momento, fizeram uma nova chamada, ainda por publicar, “não só com escolas, mas também com museus, centros de arte, autarquias”.

Porque as dificuldades do acesso ao material necessário para acompanhar aulas online não é um problema exclusivamente dos alunos, Marta conta que “o desafio do modelo online é garantir que todos os formandos conseguem aceder à tecnologia necessária”. Para isso, criaram “tutoriais de acesso e de trabalho, mas num grupo de formandos há sempre alguém que não conhece ou nunca experimentou determinada ferramenta”. “Os nossos cursos também servem para isso, para que os professores se sintam à vontade para testarem possibilidades que poderão depois levar para as suas aulas com mais confiança.”

Até agora já fizeram três formações online - Visões de Arte Contemporânea, Técnicas Experimentais para Práticas Artísticas Contemporâneas e Arte Contemporânea: uma forma de expressão artística experimental e multidisciplinar - e o feedback tem sido “muito elogioso”. Muitos referem ter gostado mais do que esperavam, porque o modelo online lhes permitiu contactar com pessoas muito distantes, geograficamente, o que é muito enriquecedor, sobretudo porque seria improvável que acontecesse presencialmente. Num dos nossos cursos tivemos formandos de 15 concelhos diferentes e um de outro país. Alguns professores têm também valorizado o conforto que o modelo online permite, ao frequentarem os cursos a partir de casa”.

A pandemia trouxe novos desafios e a impossibilidade das atividades decorrerem como antes, mas acabou por ser também uma oportunidade de fazer diferente. Atendendo à sua experiência, César Cardoso sublinha a parte positiva de “os alunos se gravarem mais e ouvirem mais aquilo que estão a fazer”. “O facto de terem de gravar fez com que alguns deles até demorassem mais a enviar os áudios ou os trabalhos, porque ouviam a percebiam que tinham de repetir. Então, acho que isto fez com que fossem mais perfecionistas. E houve outras coisas boas, como o facto de começar a trabalhar mais com programas de música, de gravação, de edição de vídeo... tudo isso foi proveitoso”. 

Lívia, enquanto estudante e colega, confessa que aprendeu “a valorizar o que tem no momento”, por muito que “as saudades dos amigos e do ambiente da escola” começassem a apertar. Para já, e depois das novas regras ditadas pelo governo ontem, dia 14 de outubro, tudo decorre conforme tem decorrido desde setembro. Nas oito medidas partilhadas em conferência de imprensa pelo Primeiro Ministro, António Costa, poderá passar a ser obrigatória a utilização da aplicação Stayaway Covid em contexto escolar — o que ainda terá de ser aprovado pela Assembleia da República. 

Caso seja necessário ativar o plano B e regressar a casa, já existe uma preparação que advém da experiência de confinamento obrigatório e, ainda que não seja o contexto ideal, à partida, as aulas decorrerão com mais naturalidade. 

Texto de Carolina Franco
Fotografia de engin akyurt disponível via Unsplash

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