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Pour Our a Little Liquor

“Pour out a little liquor“, para quem não sabe, é um ato que ultrapassa fronteiras:…

Opinião de Nuno Varela

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“Pour out a little liquor“, para quem não sabe, é um ato que ultrapassa fronteiras: é feito aqui em Chelas, ou em Okland, nos Estados Unidos. Basicamente, consiste em deitar um pouco da nossa bebida para o chão, para o mar, ou qualquer outro local, em homenagem aos nossos amigos e familiares que já partiram.
É também o título de uma música do famoso rapper Tupac Shakur, que morreu em 1996, antes de chegar aos 30 anos de idade. Muitos dizem “The Good Die Young”, e é sobre isso que quero falar hoje, muito ao jeito de uma homenagem a todos os meus amigos que partiram cedo de mais. Apesar de me considerar ainda um, funerais de jovens é uma coisa a que já vou há muito tempo e é algo que me incomoda muito, seja por serem muitos novos, pela forma como morreram ou pela minha proximidade à pessoa.

Quero com este texto homenagear todos os meus amigos falecidos e contar um pouco da minha história. Julgo que eles nunca iriam imaginar que iriam ser motivo de um artigo meu numa plataforma como o Gerador, mas a vida tem destas coisas. Como costumo dizer, somos as rosas que crescem no cimento, sem sentido, nunca sabemos para onde os seus ramos podem ir.

Quero começar por falar do meu grande amigo Edinho, ou como gostávamos de o chamar, “O Rei do Gado”. Conheci o Edinho no final dos anos 90, na prisão de Caxias. Os nossos pais estavam presos na altura e, nas visitas de domingo, no meio de tantas crianças a brincar numa prisão, ficámos amigos, sem imaginar o que iríamos viver mais tarde. Todos os domingos nos víamos. Mais tarde, acabámos por ir morar no mesmo bairro: Chelas Zona M. Por acaso, fomos parar à mesma escola e todo o meu início no Hip Hop foi feito com o Edinho ao meu lado. Foi com ele que fui ao lançamento do álbum “ Manda Chuva” do Boss AC. Ainda me recordo, tinha 14 anos. Quando o AC viu dois putos perguntou: “ Então putos o que fazem aqui a esta hora?”, e deu-nos um autógrafo.
Tínhamos um grupo na escola com alguns amigos que se chamava “GPK” e, mais tarde, passámos por outras crews. Crescemos, fomos tomando rumos diferentes e o Edinho foi morar para Espanha. A dada altura, veio passar uns dias a Portugal e foi assassinado na noite de Lisboa. Foi brutalmente espancado. Descansa em paz, irmão.

Toni, mais conhecido por Tony Mangolé, também fez parte de algumas crews de que eu e o Edinho fizemos parte. Não começámos logo por ser amigos, até posso dizer que começámos por ser uma espécie de inimigos. Para falar a verdade não percebo porquê, mas tudo isso passou e ficámos amigos, ao ponto de estarmos juntos todos os dias. O Toni também gostava de cantar rap e foi com ele que, talvez em 1999/2000, eu ía muitas vezes a casa do Sam The Kid fazer sessões de freestyle. Numa dessas sessões levei um gravador, que por acaso tinha um freestyle meu de outro planeta num beat do Sam The Kid, mas o Toni perdeu o meu gravador nessa noite, no Bairro Alto. Ainda espero que isso vá parar à Internet. Entretanto, o Toni começou a andar com outras companhias, acabou por se tornar num homem de negócios de sucesso, mas terminou assassinado no meio de uma discoteca em Lisboa.

O meu grande amigo Snake… damn, dava para escrever um livro sobre ele. Era conhecido em qualquer bairro, uma verdadeira lenda nas ruas de Lisboa. O Snake esteve preso por vários anos, mas o seu nome sempre foi ouvido nas Ruas de Chelas. Quando o Snake foi preso eu era muito novo e não nos conhecíamos pessoalmente, mas é claro que já tinha crescido a ouvir falar da grande lenda, o miúdo que em tenra idade já andava em carros descapotáveis por Chelas.
A minha amizade com o Snake começou um pouco depois de ele ter saído da prisão. Na altura, ele era Dj numa discoteca na baixa de Lisboa chamada Açores, onde ele tocava todos os sábados até cerca da uma da manhã. Depois, entrávamos na noite de Lisboa. Eu era uma espécie de road manager do Snake, juntamente com um outro amigo chamado Edgar. O gosto pelo rap, pela descoberta de novos artistas e novas músicas sempre esteve muito presente na nossa amizade. Muitas foram as noites que passámos na casa de um e do outro a passar musicas para pen drives.
Um dia, cruzei-me com o Snake num supermercado, lembro-me de lhe perguntar como ele estava, pois nas últimas vezes em que tínhamos estado juntos ele não estava muito bem. Nesse dia ele estava todo contente, com a moral para cima, disse que tudo tinha passado e que tínhamos de combinar algo. Pela primeira vez, despediu-se de mim com um abraço forte. A despedida foi tão estranha que, ao chegar perto da minha esposa, foi a primeira coisa que ela comentou, como se ele fosse de viagem ou algo do género. Por mais incrível que pareça, ele foi mesmo. Foi assassinado no dia seguinte, na estrada da radial de Benfica por um agente da PSP, num caso que ninguém consegue explicar muito bem como aconteceu.

O Soares. Penso que em Chelas nunca houve alguém tão forte como ele. O Soares era enorme, o verdadeiro Hulk de Chelas. Eu andava muitas vezes com ele, no seu carro preto de vidros fumados, com música muito, mas muito alta, só rap. Nesses dias sentia-me como se estivesse a andar com um segurança ao meu lado.
Apesar de ser um amor de pessoa, superpacífico, a sua estrutura corporal incomodava muita gente. Só gostaria que todos tivessem a oportunidade de ir ao Vasco da Gama com ele, era engraçado andar ao lado dele, olhar de repente para trás e ver as pessoas todas a comentar. O Soares trabalhava no teleférico do Parque das Nações, o que me fazia ter passeios grátis. Digamos que, dos meus 15 aos 18 anos, todas as raparigas que levei a sair, levei ao teleférico e houve até algumas situações complicadas que tive de resolver com a ajuda dele, bastava o Soares esconder-se e aparecer de repente e é que claro que todas as questões eram resolvidas, de forma pacífica. Morreu jovem, de uma forma que deixa muitas dúvidas.

GQ aka Barbosa. O Barbosa era irmão de um dos meus melhores amigos e grande amigo do Sam The Kid. Era mais uma lenda em Chelas, mais um nome sobre o qual todos crescemos a ouvir mil histórias, alguém que merecia ter um livro só seu também. O nosso gosto pelo Hip Hop fazia com que tivéssemos sempre motivo para conversa quando nos encontrávamos. As nossas últimas conversas foram sobre fazermos uma compilação, com os vários artistas que havia em Chelas na altura, algo que já fazia sentido na altura e agora faz ainda mais, pelo grande número de artistas bons que têm surgido em Chelas.
O Barbosa morreu num acidente de mota.

Guru, meu grande amigo Guru. Todas as mortes me afetaram muito, mas talvez esta tenha sido a mais dolorosa e a que está sempre presente na minha cabeça. Os motivos podem ser vários, pode ser porque houve tempo para uma despedida, ou simplesmente porque o Guru era um dos meus melhores amigos, alguém com quem falava todos os dias. Conhecia o Guru desde sempre e olhava para ele como um irmão mais velho. Sempre fui muito amigo do irmão dele e, à medida que fui crescendo, ficámos mais próximos, ao ponto de sermos grandes amigos confidentes e parceiros.
O Guru cresceu no mesmo bairro que eu. Para mim, sempre foi uma daquelas rosas que nasceu no cimento, super culto, inteligente e cheio de vontade de viver. Era aquele amigo que eu gostava de exibir em todo o lado, o tipo de pessoa que podíamos falar sobre a 2ª Guerra Mundial, o oculto ou a criação das Gangs em LA, era incrível, ele sabia um pouco de tudo.
Quando soube que o Guru estava doente pensei em dizer-lhe para fazer um livro, mas não disse. No momento, achei que isso seria má energia e uma aceitação de que as coisas iam correr mal. Pensei então: no final disto tudo, ele tem de escrever um livro. As coisas correram mal e percebemos que ele não tinha muitos dias de vida. Fiquei num estado que não sei descrever, estive muito tempo na parte de fora do hospital sem conseguir entrar, foram várias as visitas que ele recebeu, tudo em modo de despedida. Algo que me estava a deixar bastante desconfortável. Ele chamou-me e lá fui eu, despedir-me do meu amigo. Entrei mal, estava destroçado, mas mal nos olhámos tudo passou e fui aquilo que éramos sempre, uns grandes palhaços. Ele tentou despedir-se, mas no fundo eu não queria despedir-me do meu amigo. Continuámos no gozo, sem tocar no assunto. Todos à nossa volta estavam a rir. Ele sabe que nos despedimos com o olhar. Saí como se fosse voltar mais tarde, mas sabíamos que não nos voltaríamos a ver. A última vez que o vi com vida, ele já não estava consciente. Entrámos para, de alguma maneira, tentar passar uma energia positiva, mas ele morreu no dia seguinte. AMO-TE IRMÃO.

Beto di Ghetto, meu primo, meu professor. Os nossos caminhos cruzaram-se por causa do rap, sem nunca pensarmos que éramos primos. O meu pai já me tinha dito que eu tinha um primo que cantava e disse ao Beto que o filho dele cantava. Já tínhamos ficado à conversa no Vasco da Gama sem sequer imaginar que éramos primos. A amizade já existia e só ficou mais forte quando descobrimos que éramos familiares. Juntamente com mais dois amigos, um deles nosso primo também, vivemos grandes aventuras. Éramos um grupo de rap e fazíamos vários concertos por Lisboa. O Beto era o general e nós, os soldados. Em 2001, depois de trabalhar numa mercearia durante um mês, despedi-me, mas coloquei alguém no meu lugar e que, por acaso, é o grande cantor português, Matay. Recebi 500€ e, com mais algum dinheiro, gastei tudo numa câmera de filmar. Para mim foi, até hoje, dos melhores investimentos que fiz na vida, pelas horas e horas de filmagens que tenho, filmagens que dão para fazer um documentário sobre o Beto di Ghetto. O Beto era um dos grandes artistas do rap em Portugal, foi apresentado ao panorama pelo Sam The kid e ficou para sempre na história, seja a cantar em criolo ou em português. Nas muitas horas em que filmei o Beto, havia coisas que na altura não faziam muito sentido e que agora, depois de tudo, mostram que o Beto era mesmo um visionário. Muitos foram os problemas que o Beto teve na vida, conseguiu dar a volta a muitos deles, outros nem por isso. Deixa muitas saudades e a música dele continua a ser ouvida. Será sempre lembrado.

-Sobre Nuno Varela-

Nuno Varela, 36 anos, casado, pai de 2 filhos, criou em 2006 a Hip Hop Sou Eu, que é uma das mais antigas e maiores plataformas de divulgação de Hip Hop em Portugal. Da Hip Hop Sou Eu, nasceram projetos como a Liga Knockout, uma das primeiras ligas de batalhas escritas da lusofonia, a We Deep agência de artistas e criação musical e a Associação GURU que está envolvida em vários projetos sociais no desenvolvimento de skills e competências em jovens de zonas carenciadas.Varela é um jovem empreendedor e autodidata, amante da tecnologia e sempre pronto para causas sociais. Destaca sempre 3 ou 4 projetos, mas está envolvido em mais de 10.

Texto de Nuno Varela
Fotografia de Lucas Coelho

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