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Prazer, Camaradas!: registos da revolução como um processo que ainda não acabou

João [Azevedo], Eduarda [Rosa] e Mick [Greer] entram numa carrinha. O destino é uma cooperativa…

Texto de Carolina Franco

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João [Azevedo], Eduarda [Rosa] e Mick [Greer] entram numa carrinha. O destino é uma cooperativa onde possam trabalhar em prol de uma revolução do pensamento. Nos seus corpos adultos, falam pelos jovens que foram e das vontades que traziam. A educação faz-se nas ruas das aldeias, não em Lisboa. É para lá que querem ir. 

Este começo simbólico de Prazer, Camaradas!, o mais recente filme de José Filipe Costa, leva-nos até ao primeiro momento da mudança de vida de alguns portugueses a residir no estrangeiro — de regresso — e de alguns estrangeiros que queriam acompanhar a revolução — de primeiro contacto. No pós-25 de abril ainda tenro, quiseram juntar-se a cooperativas e contribuir para a alfabetização e a emancipação de portugueses que, até então, tinham vivido profundamente oprimidos pelo regime. Eduarda Rosa, juntamente com José Rabaça, na altura o seu marido, mudou-se da Alemanha para Portugal com essa vontade de contribuir para a mudança. No filme de José Filipe, faz de si mesma e recorda algumas vivências desses tempos.

“Eu era professora de português para os filhos dos imigrantes, na altura, e ao mesmo tempo dava aulas num instituto de línguas para estrangeiros. Com esta loucura do 25 de abril, nós também estávamos oprimidos pelo fascismo, tínhamos ido para a Alemanha motivados por isso, e decidimos vir para a Torre Bela, ali na zona da Azambuja. Chocava-nos muito esta realidade de termos 61% de analfabetos, e achámos que podíamos ajudar. O Zé Rabaça tinha feito um curso em Paris com o Paulo Freire. Nessa altura em que vivíamos na Alemanha, instalou-se a ditadura do Pinochet no Chile, e o Paulo Freire, que vivia lá, teve de ir para Geneve, então nós íamos visitá-lo frequentemente e estávamos muito dentro do método de alfabetização para adultos. Vínhamos para Portugal cheios de vontade de fazer alguma coisa nesse sentido”, recorda Eduarda Rosa numa entrevista por chamada com o Gerador, que atende a partir dos Açores.   

Numa das cenas do filme, Eduarda ensina outras mulheres a escrever. A naturalidade com que o faz diz-nos que é um processo que lhe é natural, que de facto aconteceu. Olhando para trás, recorda que a “alfabetização não correu muito bem”, porque “havia muita gente marginal na cooperativa” a que se juntaram. Mas ressalva que foi “uma cooperativa muito marcante, até porque tinha ordenado igual para homens e para mulheres”. “Ainda pensámos em fazer rotatividade dos trabalhos, mas não se conseguiu totalmente”, conta. Nesse período, Eduarda e José trabalhavam como cooperantes, faziam as refeições com os cooperantes locais e viviam em comunidade. Ao fim do dia, Eduarda ia escrevendo as histórias que outras mulheres iam partilhando consigo, que acabaram por se reunir no livro Torre Bela On a Tous le Droit d’Avoir une Vie, de Francis Pisani, traduzido para português com o título Torre Bela – todos têm direito a uma vida. 

Eram histórias de resistência, mas também de dor. Histórias de profunda desigualdade de um Portugal esquecido, de mulheres que guardavam para si a dor e a transformavam em resistência. “Vêm-me às vezes à memória as histórias dos abortos feitos com pés de salsa, que era uma coisa que inflamava muito o útero das mulheres”, e até histórias de infanticídios, imagine”, partilha. Se não tivesse tido o impulso de regressar e trabalhar junto desta comunidade, talvez nunca tivesse conhecido as realidades destas mulheres. Um dos motivos de maior questionamento na divisão dos trabalhos entre homens e mulheres acontecia, sobretudo, na apanha da azeitona. Eles varejavam, elas apanhavam. A quem pertencia, afinal, o trabalho mais duro? 

“Mas nós lutámos para tentar que existisse rotatividade. E senti isso da parte delas, das mulheres locais.”

A revolução (também) tem de ser feita em casa

Foi através dos diários de Eduarda que José Filipe Costa chegou até estas histórias. “Conforme ela descreve nesse diário, durante a apanha da azeitona, ela ia ouvindo as histórias das mulheres que estavam com ela. Histórias sobre o aborto, sobre a primeira experiência sexual, sobre a violência doméstica, e portanto foi a partir desses diários que depois me interessei mais por esse lado da revolução”, conta o realizador. 

Em Prazer, Camaradas!, José Filipe Costa procurou o que houve depois do 25 de abril. Como lembra Audre Lorde, “a revolução não é um evento único”, e na luta contra o fascismo do caso português, foi um processo demorado. “Para muitos, a revolução não podia acontecer sem uma revolução sexual, ou sem uma revolução de costumes, dos comportamentos. Aquilo que estava a acontecer mais na cúpula dos acontecimentos, a mudança de um regime, só poderia ser bem sucedida se houvesse uma revolução a outros níveis das vidas das pessoas”, sugere. Foi essa revolução em várias dimensões da existência humana que pessoas como Eduarda e José, mas também jovens estrangeiros, procuraram permitir que acontecesse. O segredo era empoderar a população, tendo como base a educação. 

Na altura, “a mulher não tinha direitos nenhuns”, como relembra Eduarda, mas “depois começou a usar a palavra, começou a usar a ação”. Mas havia “algum choque entre o comportamento das estrangeiras e o comportamento das portuguesas”. No seu caso, trazia uma abertura da mente diferente de outras mulheres portuguesas da sua idade, mas conseguia entender essas diferenças. Para as mulheres estrangeiras, era mais complicado. Parecia incompreensível ver a força física das mulheres rurais a ceder à posição de superioridade dos homens. E para chegar a esse outro lado, José Filipe Costa baseou-se, também, nos escritos da alemã Helga Novak.

Aos sábados, as roupas eram batidas no tanque, e estendidas num “branco português” já sem as nódoas dos almoços e jantares cozinhados e servidos por elas. Todos os dias de semana eram dias de trabalho. No campo, em casa, nos tanques, nas cooperativas. 

As trocas entre mulheres cooperantes eram, nas palavras de Eduarda, “uma aprendizagem”. “Era como se tivéssemos voltado à infância, para reconhecer algumas coisas e aprender outras. Acho que o filme revela um bocado essa alegria das descobertas, esse retorno, esse recomeçar”, diz a professora. Para José Filipe Costa, o filme é também sobre “esse lado que fica um tanto ou quanto esquecido nas comemorações oficiais do 25 de abril e das restantes comemorações que lembram essa data”. 

“O que queríamos pôr em destaque era que no espaço doméstico tinha que haver uma revolução e os estrangeiros que vieram, na época, para Portugal, ficavam muito chocados quando percebiam que ainda existia a figura do macho latino que dominava, que havia tanta violência doméstica, e que existia desigualdade na distribuição das tarefas. As pessoas estrangeiras ficavam espantadas por as coisas ainda serem assim, e acreditavam que parte da revolução passava pela mudança de comportamentos.” 

“O que é que esta gente veio para aqui fazer?” é uma pergunta que Eduarda se lembra de ouvir, nesses tempos. Nem toda a gente pensava assim, mas havia quem questionasse porque é que pessoas de fora tinham de vir ensinar outras formas de ver a vida. Naqueles tempos, pouca agencialidade era concedida às mulheres. “Uma mulher naquela altura não ia ao café, a maneira de vestir era diferente, tudo era diferente. Até a parte mais íntima, as mulheres a conversarem umas com as outras, as mulheres a conquistarem o direito ao prazer sexual, eram questões que não tinham sido discutidas até então. Foi um choque, sem dúvida nenhuma, porque estava tudo muito oprimido.” 

Esta procura pela emancipação feminina atravessa todo o filme de José Filipe Costa. Saber ler e escrever era uma forma de empoderamento, partilhar a dor também. Conversar entre mulheres,  num gesto coletivo de sororidade, podia ser um pequeno mas poderoso sinal de que o cenário começava a abrir-se. E é também num diálogo entre mulheres estrangeiras, no filme, que se expõe a condição de grande parte destas mulheres locais. “Há feminismo dentro de cada mulher”, dizem com certeza, mas nem todas o vêem da mesma forma. “Nós temos escolha”, diz uma delas. E essa (falta de) liberdade de escolha diz tudo sobre a ausência da revolução dentro de portas.

Se para estas mulheres estrangeiras a liberdade de escolha e a procura pelo prazer feminino já era um tema abraçado com a certeza de que lhes pertencia, para estas mulheres portuguesas a realidade estava longe de ser esta. Numa das cenas mais empoderadoras do filme, em que um grupo de mulheres conversa com Manuela dos Santos, psicanalista que lhes dá uma aula de educação sexual. No grupo, uma diz que fazer sexo com o seu marido sempre foi “um sacrifício” e que a falta de cuidado por parte deste a afastou, recusando-se a ter qualquer tipo de contacto intímo. Como pode uma mulher ser livre estando refém de um homem que não a vê por inteiro?

Dramatizar uma vida não tão distante assim

O momento inicial do filme, em que Eduarda, João e Mick falam de si mesmos na década de 70, dita também o estilo, quase de etnoficção, que José Filipe Costa escolheu dar ao filme. “Tudo foi improvisado”, conta ao Gerador. “A ideia foi destruir o guião do princípio ao fim, à excepção de uma encenação. De resto, foi tudo com base no improviso, nós pedíamos aos atores que dramatizassem determinadas cenas. Não queríamos que as reconstituíssem, porque não acreditamos que seja possível reconstituir algo como o passado — não é possível dar uma imagem fiel do passado, para isso teríamos recorrido a atores a fazer de jovens, mas também não tínhamos orçamento. O que nos interessou foi esse jogo entre aquilo que as pessoas poderiam dar em termos de improvisação e aquilo que as pessoas diziam e faziam em frente à câmara. Acho que o filme ganha com isso, com essa frescura e com algo que é muito genuíno na maneira como as pessoas interagem e trazem essas memórias. Que são memórias que, ao mesmo tempo, têm que ver com o presente”. 

Como lembra Lígia Amâncio numa entrevista dada ao Público em março deste ano, “tivémos uma ditadura com uma ideologia de género fortíssima que nunca foi posta em causa”. Hoje, as coisas não são exatamente como antes, mas a ausência dessa revolução dentro de portas de que José Filipe Costa fala (e dá a ver com o seu filme), dá espaço a que continue a existir um lastro desses tempos. “Sei que ainda existe, desigualdades terríveis, e até tenho a sensação de que, em certas áreas, isto está a recuar”, confessa Eduarda Rosa. 

“Houve alturas em que pensei ‘temos de fazer um espécie de comunidades de mulheres, as mulheres têm que se ajudar umas às outras’. Há coisas nesta caminhada que nós mulheres fizemos e continuamos a fazer que também me chocam, como copiar comportamentos dos homens, que acho que não faz sentido, a gente não precisa disso. Temos que nos afirmar pela inteligência, pelo amor, e tantas capacidades que as mulheres têm. O mundo precisa é disso. Mesmo aquelas mulheres que têm lugares de poder, o comportamento delas foi melhor do que o dos homens. É curioso. Eu luto até para uma certa consideração de mulheres que estão esquecidas… a Maria Archer, por exemplo, é uma escritora que está esquecida. Já houve alguns alertas, mas não voltam a reeditar a obra dela. Porquê?”, questiona. 

Também na Europa, Eduarda acredita que “há muitas coisas que ainda precisam de ser corrigidas”. “Vai mais atrasado do que eu desejaria”, lança como que num suspiro. José Filipe Costa acredita que os assuntos do filme são necessários, também hoje, de questionar: “isso é evidente hoje em dia até no #metoo, na maneira como as mulheres se apercebem como oprimidas em relação aos homens”, evidencia. “É qualquer coisa que ainda está presente na violência doméstica, também, na desigualdade salarial, na desigualdade de acesso das mulheres aos lugares de poder, portanto ficou muito por cumprir. Ficou mesmo muito por cumprir nessa data. Imaginou-se e idealizou-se uma série de transformações e ainda estamos nesse processo de transformação”, continua. 

Numa altura em que o movimento #metoo chega a Portugal e que cada vez mais mulheres partilham as suas histórias de assédio, o realizador acredita que estrear Prazer, Camaradas! pode ser “uma maneira de nos colocarmos no tempo, de o perspetivarmos”. E mais: “de percebermos porque é que chegamos aqui, e de que maneira chegámos”. “Essa questão do #metoo é muito complexa e dá ideia de que é preciso fazer ainda muita coisa para chegarmos a uma sociedade mais justa e mais equilibrada. E o filme mostra como isso ainda está aí no presente, como não está assim tão longe. Tem que ver com a nossa experiência mais recente, tem que ver com a forma como nós concebemos a relação entre homens e mulheres… e eu espero que o filme contribua para pensar isso”, conclui.
Prazer, Camaradas!, produzido pela Uma Pedra no Sapato, foi o primeiro filme português a estrear em sala após a reabertura das salas de cinema. A estreia fez-se ontem, dia 20 de maio, no Cinema City Alvalade com sala cheia. Até ao dia 26 de maio pode ser visto em Lisboa, no Porto, em Setúbal, Coimbra e Braga. As datas e horários podem ser consultados, aqui.

Texto de Carolina Franco
Stills do filme Prazer, Camaradas! de José Filipe Costa

Se queres ler mais entrevistas sobre a cultura em Portugal, clica aqui.

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