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Opinião de Manuella Bezerra de Melo

Prefácio “VOLTA para tua terra”

Nas Gargantas Soltas de hoje, Manuella Bezerra de Melo traz-nos o prefácio do segundo volume do livro “VOLTA para tua terra”, uma prosa com o objetivo de trazer sentido de cidadania e pertença aos imigrantes que vivem em Portugal.
“Agora, voltamos para apresentar este novo volume da VOLTA, desta vez em prosa. Contos, relatos, crônicas cujo trabalho de linguagem é ancorado nesta vivência tão pessoal quanto política que é a vida imigrante, pessoas cujos pés caminham em diáspora, cuja deslocação do corpo promove a deslocação do próprio eixo da terra.”

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Em 2020, quando pensámos pela primeira vez no projeto daquilo que viria a se tornar o primeiro volume da antologia VOLTA para tua Terra, um volume de poesia publicado em maio de 2021, não tínhamos dimensão do que viria adiante, das respostas que este projeto nos daria a todos que estavam nele envolvidos, a todos que viriam a se envolver nele direta ou indiretamente. Unimo-nos para empreender este livro ancorados numa angústia comum. A princípio eu, uma escritora e pesquisadora, e Wladimir Vaz, um editor destes que guia a vida por amor; ambos estrangeiros, ambos observadores assombrados de uma barbárie que parece, e já sabemos que é, cada vez mais próxima. E a seguir, os outros 49 poetas residentes em Portugal e oriundos de nove países aprovados na primeira chamada aberta do volume de poesia.

Por este motivo, este texto introdutório tem um delineamento mais pessoal. Pessoal, sim, porque tratará sobre a história do encontro de um conjunto de pessoas num país estrangeiro. Mas não por isto trata-se de um prefácio menos literário, tampouco menos político. Nem assim se propõe. Este livro que o leitor segura agora é uma antologia cujo tema perpassa pela perspectiva imigrante quanto a temáticas espinhosas da cultura, da identidade e da vida em sociedade no território português. Falamos aqui, precisamente, sobre como acreditamos e desejamos que a literatura seja uma trincheira de visibilidade, de democratização, de diversidade, mas principalmente como acreditamos que ela é a responsável por dar conta de uma parte da existência que a historiografia, e apenas ela, nunca será; os encontros, as esperanças, as subjetivações de uma parcela da população que sustenta este Portugal: os imigrantes.

Não há aqui intenção de qualquer suavização sobre qual o motivo desta antologia existir. Ela existe em pé de igualdade e equivalência por dois motivos: a literatura e a política, cujos pesos e medidas equivalentes fazem com que ela seja exatamente o que é, um projeto demarcadamente político, cuja política é sua guia, e profundamente literário, cuja literatura é seu alicerce. E dizemos isto porque sabemos que a neutralidade é uma falácia, um grande mito ocidental que ignora que todo conhecimento que produzimos está situado, ainda que se queira, ainda que não se queira.

Em 2020, tínhamos apenas a angústia, e o entorno que era uma terra arrasada que respaldava o projeto mas não só, o necessitava. Expectamos de perto a barbárie assombrados, com os olhos arregalados, e a vimos cada vez mais próxima dos nossos corpos imigrantes, estrangeiros, dissonantes em múltiplas formas. A vitória de Donald Trump nos Estados Unidos abriu as portas do inferno para aquilo que pensávamos que estivesse enterrado, mas que estava somente adormecido num sono mais próximo de um cochilo do que de um adormecer profundo. Vimos o ódio emergir à superfície da terra, e desde então partilhamos a impressão dolorosa que entornou de vez o caldo do angu deste mundo.

Claro que sabemos que as coisas não deram errado a partir daí; não somente, não especificamente. O Donald Trump é nele mesmo um sintoma do caos, o sintoma extremo, a febre em um corpo-humanidade inflamado, infetado e negligenciado por tempos sem fim. Chegou onde chegou após séculos de uma cultura norte-americana alimentada no imperialismo, no fortalecimento de indústria armamentista, na ingerência política e econômica sob povos autónomos — aka neo-colonialismo — e financiamento de guerras sobre guerras sobre guerras para justificar a circulação da sua economia de modo mais eficiente.

Os Estados Unidos nunca pararam de financiar Israel para fazer desaparecer com a Palestina do mapa, os Estados Unidos financiaram o Estado Islâmico por décadas até que se tornasse o que se tornou. Em paralelo, a América Latina convive com a superexploração do trabalho, com a interferência imperialista sempre na ordem do dia, bem como os irmãos dos países africanos; dois continentes que caminham sem o fêmur, tratados secularmente como playground dos países do centro do capitalismo ocidental. Mas sim, Trump é um marco histórico, um ponto de viragem que vem para normalizar e legitimar o terror (quantas vezes permitiremos que isto ocorra?), para torná-lo banal, ou talvez para reconvertê-lo em apreciável como já tivera sido outrora, algures, ou mesmo aqui, nesta terra.

Nós, que publicamos neste presente histórico, os leitores, artistas, agentes promotores, realizadores da cultura, pertencemos a geração das ilusões democráticas, nascidos e criados num ciclo mundial pós-guerra e formados dentro de uma suposta normalidade e estabilidade dos valores democráticos liberais que, em algum momento, pareceram credíveis para muitos. E por isso, para estes, esse ciclo histórico pareceu ainda mais espantoso: a barbárie que se levanta como se nos confirmasse ser a tradição deste terror mais comum do que gostaríamos que fosse, acesa e ardente em cada um dos muitos trumps insurgidos para que os víssemos em grande angular.

Em Portugal, os que estão aqui há algum tempo, puderam verificar gradativamente este fascismo crescer e se mostrar nas ruas, no dia a dia, prosperar, fortalecer suas estruturas. Na voz de alguém que apenas sussurrava em 2016, temos hoje, poucos anos depois, mais de dez exemplares do mais evidente fascismo no parlamento que contraditoriamente tanto se orgulha de seu 25 de abril. E este é o perigo de tratar com tolerância o intolerante, o perigo da legitimação que institucionaliza aquilo que é, na sua natureza, um pensamento criminoso.

Por isto, no primeiro volume da VOLTA, o volume de poesia, contamos sobre a vida dos imigrantes. Instrumentalizamos a linguagem para alcançar aquilo que sonha, o que passa, o que sente, ou sobre como é cotidianamente ferido este corpo fora da curva pelo fascismo à portuguesa, este fascismo estrutural e cotidiano, que se expressa em uma parte considerável da população através da memória colonial, uma ferida aberta que Portugal não permite cicatrizar, e cotidianamente desperdiça a oportunidade que lhe deu o 25 de abril.

Obviamente não somos pretensiosos em crer que nosso empenho é quem vai alterar este dado cultural, mas somos suficientemente audazes em desejar com ele iniciar questionamentos necessários, porque evocamos aqui o sentido primordial latino de cultura, trazido do campo, da agricultura, cujo significado etimológico diz respeito ao desenvolvimento de atividades agrícolas, uma metáfora talvez recorrente, previsível, mas eficiente. E neste caso, é preciso sembrar novas sementes de cultura neste país para que seja possível colher, mais adiante, frutos diferentes destes amargos que comemos agora. Jogar fora as sementes de morte e plantar as sementes de vida.

São tempos duros e tempos políticos, que pedem iniciativas, pedem braços, e foi o que fizemos desde o primeiro volume da VOLTA. Lançada em maio de 2021, no Porto e em Lisboa, em meio a uma pandemia sanitária mundial, fizemos eventos de apresentação oficiais com filas à porta, centenas de pessoas para verem um livro ser lançado, em sua maioria artistas imigrantes sedentos por um espaço de integração, de possibilidade de existir no circuito cultural português, sedentos de partilhas de suas vivências, de encontrar corpos semelhantes com dores semelhantes. Mas, principalmente, ávidos de reestabelecer em si próprios o lugar do sonho, a hipótese de ser o imigrante tantas outras coisas possíveis para além do que é expectável que seja; e que estejamos, sim, nos cafés servindo às mesas, e nas fábricas, mas também nos espaços de poder, de decisão, de produção da cultura e do conhecimento.

E conscientes do nosso tempo histórico, desde então reunimos pessoas, artistas e escritores imigrantes, trabalhamos juntos, desenvolvemos projetos, trabalhamos em separado também, mas mesmo quando separados estivemos juntos porque a VOLTA converteu-se em um abrigo de guerra que se tornou alicerce para um circuito alternativo de escritores artistas imigrantes, que tem, por um lado, criado novas estruturas contra-hegemônicas nas margens, e por outro, furado aos poucos o campo de força do sistema literário e do circuito cultural português pela ousadia, criatividade e originalidade destes imigrantes exaustos dos silenciamentos constantes, históricos e seculares. Artistas que estão realizando, atravessando-os, derrubando-os. De pessoas que estão metendo seus corpos imigrantes onde não foram chamados, nos livros, nas editoras, nas galerias, nas antologias, estão realizando, estão acontecendo e sendo acontecimento neste país. E se um dia houve, já não há mais como ignorar esta vaga de escritores e artistas imigrantes porque são eles que têm movimentado, trazido novidades e deixado tudo mais interessante, importante e questionador.

Temos acompanhado com alegria o trabalho de artistas enormes que estiveram conosco no primeiro volume, que evito citar por receio de cometer injustiças, mas que vemos o crescimento, o reconhecimento, a ocupação dos espaços deste território sistema de cultura que também nos pertence, mas ainda mais, deste território Portugal que fincamos bandeira, trazendo um projeto de diversidade, multiplicidade, democratização, e de direito à literatura para todas as pessoas, empenhados em ajudar a frear este novembro sem fim e fincarmos definitivamente os valores de abril em Portugal.

Agora, voltamos para apresentar este novo volume da VOLTA, desta vez em prosa. Contos, relatos, crônicas cujo trabalho de linguagem é ancorado nesta vivência tão pessoal quanto política que é a vida imigrante, pessoas cujos pés caminham em diáspora, cuja deslocação do corpo promove a deslocação do próprio eixo da terra. Trazemos um novo livro ainda mais feminino que o anterior, posto que dos 34 selecionados, 30 são mulheres, incluindo mulheres trans, afrobrasileiras ou afroeuropeias, e indígenas, que partilham generosamente sua literatura para mostrar-nos como pode ser abundante a existência neste planeta. Com ele, portanto, ampliamos ainda mais nossa ação, nossa atuação, nosso empreendimento anticolonial. Agregamos mais vozes a esta família, mais membros a este corpo disfuncional, porém belo por ser múltiplo. Com ela, ganhamos mais braços para a luta, mais pernas que caminham, mais gargantas que gritam, mais ouvidos que escutam. Para cada autora e autor aqui publicado, um novo realizador imigrante na literatura, no circuito de cultura, que firma o compromisso de fazê-la ecoar.

A imigração é um labirinto, dizia a primeira VOLTA. E agora complemento que viver longe é como caminhar neste labirinto sem um membro. Se você se desloca, ainda que nunca tenha perdido um braço, nem um olho, nem um membro físico, sentir-se-á sempre aleijado. E pensar em aleijado, na palavra, faz-me lembrar que em algum momento fomos um só povo latino. Em espanhol, a palavra ‘alejarse’ vem de ‘lejos’, que significa longe, justamente distanciar-se. Em português, o que significa perder um membro, aleijar-se, soa como a palavra no espanhol, o que no fundo, se pensarmos bem, é exatamente a mesma coisa. Apresentamos, portanto, a VOLTA para tua terra em prosa como um pequenino, mas atrevido, contributo a um projeto de emancipação. Algo que nos aproxima e traz sentido de cidadania e pertença enquanto imigrantes que vivem em Portugal. Algo que nos devolve o membro que falta; o membro que nos foi arrancado, mas que estamos aqui juntos para buscá-lo de VOLTA mas ainda maior do que isto, nos transcende o corpo indivíduo e nos torna multidão, porque com ela não terminamos em nós mesmos.

-Sobre Manuella Bezerra de Melo-

Autora de Pés Pequenos pra Tanto Corpo (Urutau, 2019), Pra que roam os cães nessa hecatombe (Macabea, 2020) e Um Fado Atlântico (Urutau,2022), organizou a coleção de antologias VOLTA Para Tua Terra (Urutau, 2021; 2022). Participou de antologias poéticas, entre elas a Um Brasil ainda em chamas (Contracapa, 2022), e tem poemas e contos publicados em revistas literárias no Brasil, Portugal, Argentina, Colômbia, México, Equador e EUA. Seu primeiro livro de ensaio é sobre a nova poesia brasileira no ciclo do Golpe de 2016, e está no prelo pela Editora Zouk. É graduada em Comunicação Social com especialização em Literatura Brasileira, mestre em Teoria da Literatura e Literaturas Lusófonas e frequenta o Programa Doutoral em Modernidades Comparadas da Universidade do Minho, no norte de Portugal, onde vive desde 2017.

Texto de Manuella Bezerra de Melo
A opinião expressa pelos cronistas é apenas da sua própria responsabilidade.

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