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Projeto “Bairros” quer promover legados artísticos de jovens da periferia de Lisboa

O Festival Iminente une forças com artistas e organizações sociais para inserir a cultura urbana na vida dos jovens de cinco bairros lisboetas, onde o acesso à arte é um desafio no dia a dia. Da periferia aos palcos do Iminente, os jovens do bairro da Quinta Grande celebraram o poder transformador da sua expressão artística.

Texto de Redação

Fotografia ©ChrisCosta

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O Festival Iminente une forças com artistas e organizações sociais para inserir a cultura urbana na vida dos jovens de cinco bairros lisboetas, onde o acesso à arte é um desafio no dia a dia. Da periferia aos palcos do Iminente, os jovens do bairro da Quinta Grande celebraram o poder transformador da sua expressão artística.

A música que vem de dentro do estúdio de gravação faz-se ouvir por toda a garagem da Associação do Bairro da Quinta Grande. Dentro dessa sala, está uma menina de cabelos loiros compridos, de vestido verde e com um grande sorriso. Acompanhada pelo pai e mais um jovem, canta o mais alto que pode ao microfone, em cima de uma cadeira: “eu quero o mundo / se não me derem, eu conquisto, eu quero o mundo / é de sorriso na cara, que eu sou o mundo”.

Fruto do projeto Bairros, esta foi uma das canções apresentadas no Festival Iminente, que decorreu entre os dias 14 e 15 de outubro, no Terreiro do Paço. A edição intitulada Takeover pretendeu assumir o controle do centro da cidade de Lisboa. O projeto é uma programação de curadoria partilhada entre o Iminente e as associações Geração Com Futuro, Passa Sabi, o Clube de Boxe Paulo Seco (Vale de Alcântara) e com os bairros municipais de realojamento do Programa Especial de Realojamento (PER): a Associação de Moradores do PER 11 e a Associação do Bairro da Quinta Grande, PER 7.

A música “Sorriso na Cara” é uma colaboração entre Rúben Quadros aka Hollandex e David Barros, que adota o nome artístico Manchas. Os dois jovens participaram no workshop de produção musical proporcionado pelo rapper Primero G, no bairro da Quinta Grande. Mas já lá iremos.

Um projeto feito de futuro

Realizado em Vale de Chelas, Bairro do Rego, Alta de Lisboa (PER 7 e 11) e Vale de Alcântara, o projeto Bairros tem como objetivo “levar a algumas dessas comunidades, onde a cultura muitas vezes está afastada do dia a dia dos jovens e crianças, ou que se encontram numa situação de exclusão social, algum contacto com diversos meios artísticos”, como explica a diretora do festival, Carla M. Cardoso. Segundo ela, há ainda o propósito de “começar a criar um legado artístico nestes múltiplos centros que existem, neste caso em Lisboa, que têm ao longo destes anos construído uma série de conteúdos artísticos”. 

Há três anos, o Festival Iminente, criado por Alexandre Farto, mais conhecido por Vhils, adota um formato multidisciplinar. Neste modelo, são os próprios bairros que tomam a iniciativa ao convidar ou escolher os artistas que integram o projeto, conforme esclarece a diretora. 

O desafio é, então, lançado aos artistas pelo Iminente, que supervisiona curatorialmente todo o processo de trabalho, promovendo iniciativas em diversas áreas artísticas, que vão para além das artes plásticas, abrangendo a música, a performance, a arquitetura e o design

“A nossa intenção, naturalmente, é sempre a capacitação, também, destas associações e destas comunidades, para que no futuro o Iminente possa, porventura, ser dispensável até neste processo, e que estes projetos possam ser desenvolvidos autonomamente pelas comunidades com quem trabalhamos”, explica Carla Cardoso. 

Para auxiliar na visibilidade dos jovens da periferia, o festival conta ainda com uma exposição em permanência sobre os projetos que foram desenvolvidos no bairro, tendo cada edição “uma slot de programação”, onde são apresentados os resultados dos trabalhos desenvolvidos pelos jovens durante os três meses do Bairros.

Uma garagem “dos jovens, para os jovens”

As conversas, as gargalhadas e a boa disposição preenchem o ambiente neste dia de celebração na garagem reivindicada pela Associação de Moradores do Bairro da Quinta Grande. Foi uma longa luta de cinco anos, em comunicações com a Câmara Municipal de Lisboa, para conquistar este espaço que esteve fechado para os residentes do bairro desde que o mesmo foi inaugurado, de acordo com Nuno Barbosa, mediador comunitário no PER 7.

Numa história que se desenrolou ao longo de anos, várias garagens abandonadas, antes fora do alcance dos habitantes por estarem vedadas, foram ocupadas informalmente. Até que, em 2022, a Associação de Moradores conseguiu finalmente apropriar-se da garagem que decidiu tornar como sede. 

“Só agora é que temos a garagem, por nossa insistência. Não tínhamos um espaço associativo que desse resposta [à comunidade]. Nós propusemo-nos a trabalhar com os jovens dos 16 para cima, aqueles que ainda não entraram no mercado de trabalho, mas também não estão na escola. Propusemo-nos a trabalhar com esta parte da população porque eles não têm resposta em outros sítios”, explicou o mediador.

E acrescenta: “a garagem é um espaço dos jovens, para os jovens e para a comunidade, onde o que nós queremos é criar espaços comuns para eles se relacionarem, dar resposta às suas necessidades e empoderá-los, mas sempre em conjunto, nunca individualmente”. 

“Sempre fomos um bairro muito jovem, éramos vistos como uma zona de risco e, por isso, nunca tentaram trabalhar connosco”, desabafa. Há uns anos com o apoio da Fundação Aga Khan, do assistente social, António Brito Guterres e o Jorginho, mais conhecido como Primero G, foi criada a primeira associação juvenil TDK [Trabalhos, Direitos e Kapacidade], onde se dedicavam à música e ao trabalho comunitário. 

“Tivemos um projeto musical com o Jorginho, que fazia parte dos TWA. Ele sempre foi uma referência [para os jovens] devido à forma como a comunidade se revê nas suas músicas.” E assim se deu o pontapé de saída para as pessoas começarem a gravar e a “expressar aquilo que sentem interiormente”. 

“Agora temos um estúdio na garagem. Foi um boost voltar a ter o Jorginho como mentor”, expressa Nuno Barbosa. A oportunidade de receber um artista de renome internacional, mesmo que não seja amplamente reconhecido localmente, traz consigo não apenas as suas competências artísticas, mas também o conhecimento que poderá compartilhar com a comunidade, um contacto que dificilmente existiria “se não fosse proporcionado desta forma”, acredita.

“Nós temos muito produtores e DJ’s aqui no bairro, mas não têm um estúdio ou têm-no em casa. Trazer para à nossa comunidade, pessoas já com material e com disponibilidade para ensinar as suas técnicas, é muito bom. Quem sabe daqui a uns anos temos os nossos jovens também a aplicar estas técnicas", enfatiza, com esperança, o mediador comunitário. 

Das margens da cidade para o palco 

Quem partilha da mesma esperança é Rúben e David Barros. Juntos, deram vida ao grupo Au-Alkateia, dedicando-se à produção musical em parceira, após se conhecerem através do workshop de Primero G, que incluía todas as etapas da criação musical, desde a produção instrumental até a elaboração de letras, gravação de vozes e instrumentos, além de mistura e masterização. 

“Eu tenho 32 anos e escrevo desde os 16, mas nunca consegui lançar nada. Isto aqui também foi uma hipótese de lançar as minhas coisas. Aprendi muita coisa nova, como escrever os versos e a estrofe”, partilha Rúben. Também David diz ter aprendido várias técnicas como “colocar a voz”, juntando ao conhecimento que já possuía. 

“Não é todos os dias que vamos cantar a um festival, não é? Isto dá-nos muita mais inspiração para continuar”, diz Rúben, com entusiasmo. “Isto sempre foi o meu sonho”, confessa. Ao longo de três meses de dedicação, quatro jovens atuaram perante a multidão reunida na sede da associação da Quinta Grande no último dia aberto do projeto Bairros, revelando aquilo que iriam apresentar nos palcos do festival Iminente. Ao todo, resultaram deste workshop, sete músicas realizadas pelos participantes. 

Depois das suas performances, as expressões de Rúben e David revelavam o entusiasmo acumulado ao longo de meses dedicados à concretização dos objetivos que escolheram alcançar. “É um momento muito especial quando ouvimos as nossas músicas, quando estão mais ou menos arranjadas. Isso aí foi a cereja em cima do bolo”, reflete David. 

Com um brilho nos olhos, Rúben diz que o que o motiva e alimenta a sua paixão “é aquela explosão de felicidade ao vermos a transformação da nossa música, desde a criação inicial até ao produto final. Confiarmos na produção da outra pessoa e ficarmos felizes com o resultado”.

O que estes jovens desejam é que mais iniciativas como estas surgem nos locais onde vivem, para que consigam desenvolver a sua arte. “Para alguém como eu, que trabalha, tem contas para pagar e tem uma filha, é muito complicado abdicarmos de algum dinheiro para investir na música. A realidade é que, apesar do nosso amor pela música, às vezes temos de abdicar da mesma ou dedicarmo-nos a isto sem receber nada”, lamenta David. Mas, independentemente das circunstâncias, diz que nunca vai desistir deste seu sonho. 

Um mural representativo e significativo para a comunidade 

Na entrada da garagem há um mural com os rostos da comunidade desta zona, um dos bairros municipais de realojamento. Foi em 1993 que o PER foi implementado por um decreto-lei, que visava acabar com os bairros autoconstruídos, as chamadas barracas, habitados principalmente por famílias rurais e de pessoas vindas das antigas colónias. 

Nessa época, só na cidade de Lisboa, havia 97 núcleos habitacionais precários, contabilizando mais de 10 mil barracas e abrigando mais de 11 mil famílias, o que equivalia a um total de mais de 37 mil pessoas. 

Em 1998, deu-se início aos processos de realojamento dos habitantes dos bairros precários localizados no Alto do Lumiar para os novos apartamentos sociais. Mas, com este processo, veio a desintegração dos fortes laços sociais que tinham sido criados nestas zonas, permanecendo os fenómenos de pobreza, exclusão, segregação e estigmatização. Para os moradores do PER 7, em grande parte provenientes do realojamento, este lugar será sempre designado como BQG (Bairro da Quinta Grande), as iniciais do antigo bairro do qual foram deslocados.

São 31 os rostos que dão vida ao mural comunitário, delineados pelas palavras de ordem do movimento social Vida Justa. Salários para viver, preços acessíveis e transportes para todos, são algumas das frases que serviram como decoração dos retratos dos moradores que se juntaram no último dia aberto, para celebrar o trabalho desenvolvido durante os últimos meses. 

“Isto é a história do bairro. Nós pedimos para eles arranjarem panfletos, eventos onde já intervieram, que fizeram parte, para poder ter também uma história deles e não ser, por exemplo, apenas um papel branco ou papel amarelo, sem nada. Nós criámos as coisas do contexto, com a história da rua e, aqui, a história tinha que ser deles.” 

Quem o diz é Russo, que colabora no Vhils Studios, e acompanhou miúdos e graúdos durante o workshop que construiu uma imagem representativa e significativa para a comunidade. “O processo criativo foi eficaz ao reunir as pessoas [do bairro], incluindo os ícones da associação. Trabalhamos para reunir fotos de todos, seguindo uma abordagem semelhante à utilizada pelo Alexandre [Vhils], responsável pela parte artística da criação da peça. Além disso, aplicamos a técnica conhecida como paste-up, uma prática comum”, explica Russo. 

O paste up refere-se à prática de colar ou fixar imagens impressas em espaços públicos, como paredes, postes ou outros suportes urbanos. Esta técnica é muitas vezes associada à arte urbana e ao movimento de street art. Neste caso, foram os cartazes da Vida Justa que ilustraram as pessoas que estão na peça. “É para eles se identificarem, verem-se no mural e não ser mais uma peça que foi feita por outra pessoa e não lhes dizer nada. Acho que a coisa mais importante é que quando olham para a peça, vejam que foram eles que fizeram tudo”, diz.

A diretora do festival afirma que o objetivo do projeto é que os jovens fiquem também com estes legados “nas associações, nas paredes dos seus bairros, ou com documentos que registem o trabalho que foi realizado”. 

Para a residente do bairro, Natália Barbosa, de 42 anos, a entreajuda é aquilo que retira destes momentos partilhados durante a construção do mural. “Quando há um fim ou entreajuda para criar algo ou para obter algo, é sempre mais emocionante, mais convidativo para todos. Foi muito especial cada vez que vi o projeto a crescer, as caras a moldarem-se e a vivermos estes momentos”, partilha com um sorriso no rosto. 

Natália acredita que o projeto contribuiu para melhorar o senso de pertencimento e de coesão social, especialmente da comunidade mais jovem desta zona, porque “assim começam a ver que a associação é para todos, é para eles, é para nós, e que podem participar e ganhar com isso”, diz.

Também Wagner Silva, de 15 anos, outro residente do PER 7, se mostrou entusiasmado com o processo criativo da construção do mural e não esconde a sua vontade de participar por mais anos nestas iniciativas pensadas para o bairro que habita. 

Carla M. Carloso destaca ainda que, além das transformações positivas que ocorrem nas comunidades, é “curioso” observar as mudanças nos artistas que colaboram com elas. E ressalta que “[o mural] não é uma obra do Vhils, mas sim, uma obra da comunidade com o Vhils. E isso é, sem dúvida, uma experiência única”.

Texto de Júlia M. Tavares

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