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Projeto Esporo está a deixar sementes de arte e reflexão na região do Pinhal Interior

Está a nascer uma nova rota de arte urbana e contemporânea que abrange os concelhos de Figueiró dos Vinhos, Ansião e Proença-a-Nova. Obras de artistas nacionais e internacionais foram propositadamente colocadas em locais de natureza, para mostrar que o interior tem muita paisagem por onde se valorizar.

Texto de Sofia Craveiro

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O Interior de Portugal compõe-se de aldeias, vilas e cidades, mas, para quem o visita, é sobretudo a paisagem verde que salta à vista. O diálogo entre o património natural e a intervenção humana assume contornos harmoniosos, que variam consoante o relevo e as coordenadas de cada local. É essa a grande riqueza do Pinhal Interior, um território que, apesar disso, se vê fustigado pelos incêndios e pelo despovoamento.

Ao descer a encosta despida abaixo da capela, na aldeia de Cabeço do Peão (concelho de Figueiró dos Vinhos), está um exemplo de floresta vulnerável. Do meio do castanho da caruma, brotam hoje três representações verticais e cinzentas que parecem gritar em silêncio. Nesta peça pintada de tons neutros, é quase possível ouvir o arfar das costelas dos homens nus ali representados. Se as árvores se movessem ou falassem talvez as víssemos a fazer o mesmo. Foi, pelo menos, isso que pensou o artista Francisco Bosoletti, quando foi desafiado a conceber uma obra para colocar nesta área.

"Seme" de Francisco Bosoletti, Figueiró dos Vinhos. Fotografia cedida pela equipa Esporo

Considerando o flagelo anual dos incêndios florestais – que este ano se vê agravado pelas fortes ondas de calor –, Bosoletti pintou aquilo que pode ser interpretado como uma representação do sofrimento infligido pelos fogos, na população e natureza. A arte, neste local inusitado, serve, assim, para provocar uma reflexão pertinente e contextual. Era mesmo essa a intenção.

Esta peça do artista argentino é uma das 12 obras que fazem parte do Esporo, um projeto de disseminação cultural e artística que está a ser desenvolvido desde janeiro até outubro nos concelhos de Figueiró dos Vinhos, Ansião e Proença-a-Nova. Além de Bosoletti, incluí peças assinadas por NeSpoon, ±MaisMenos±, Colectivo Til, João Louro, Maria Ana Vasco Costa, Mariana Vasconcelos, Pedro Gramaxo, Rui Gaiola, Ruído, Sawu e Tiago Francez.

Promovida pelos três municípios, a iniciativa coordenada pela plataforma de intervenção artística Mistaker Maker, assume-se como “uma semente que vem produzir novos olhares e percursos na relação da arte com a natureza e de ambas com a comunidade”. Por outras palavras, podemos descrever o projeto como um roteiro artístico e cultural que inclui, além da colocação das obras, atividades de mediação cultural desenvolvidas para a população.

Valorização da paisagem e turismo cultural

As peças artísticas foram, na sua maioria, colocadas fora das povoações, em áreas de natureza. A intenção é que cada obra permita encarar a paisagem de forma diferente, servindo de local de interesse e pretexto para pensar o território. No fundo, é uma forma de utilizar a arte para tentar combater o vasto problema que é a assimetria demográfica. “Acho que o papel da arte também é chamar a atenção para estes locais que muitas vezes estão abandonados, descaracterizados, absolutamente esquecidos, e o facto de, de repente, colocares algo novo, vai reativá-lo, vai pô-lo outra vez à luz do dia e as pessoas vão ter atenção sobre ele”, explica ao Gerador, Lara Seixo Rodrigues.

Com o cargo de coordenação e curadoria do projeto, a responsável relata que a ideia partiu do facto de já conhecer o território e saber da existência de outros projetos culturais a acontecer na malha urbana. O que faltava era mesmo destacar o património natural, tão abundante nesta região. “Achamos que é, talvez, o património mais singular que aqui se encontra”, afirma.

A obra do artista ±MaisMenos± (Miguel Januário) é um bom exemplo disto mesmo. A sua intervenção em Proença-a-Nova vai pontuando uma zona de torres eólicas com placas que contam parte de uma lenda a cada aproximação. De forma quase inconsciente, a peça obriga-nos a observar o contexto com outros olhos, valorizando o que já lá estava.

"A Lenda" de ±MaisMenos±. Fotografia cedida pela equipa Esporo

Um outro exemplo é a intervenção levada a cabo por Pedro Gramaxo. Este que foi o artista “itinerante” da Rota Esporo, desenvolveu três peças geométricas idênticas, retangulares, brancas que foram colocadas em diferentes localizações: Cabeço dos Três Marcos (Proença-a-Nova), Campelo (Figueiró dos Vinhos) e nos Moinhos do Outeiro (Ansião). O resultado final destas “Três Graças” – conforme explicado pelo artista – é que a peça adquire diferentes significados e utilizações consoante o contexto. As obras têm uma parte percetiva e utilitária, na medida em que se pressupõe a interação das pessoas com elas.

"Graça" de Pedro Gramaxo. Fotografia cedida pela equipa Esporo.

De facto, fazer o percurso para visitar as obras obriga a passagens por locais pouco destacados da região. Percorrer a rota Esporo acaba por ser uma visita alternativa pelos três concelhos envolvidos. Além disso, algumas obras foram estrategicamente colocadas em locais integrados nos caminhos de peregrinação a Fátima e Santiago de Compostela, que assim ganham novos pontos de interesse. Para as autarquias, é isso que está na base de tudo o resto.

“A ideia de disseminação da arte por sítios, uns mais improváveis do que outros, será sempre uma oportunidade de olharmos de forma diferente e surpreendermo-nos com toda a riqueza do património que a envolve”, diz Cristina Bernardino, vereadora da Câmara Municipal de Ansião. “Acrescentar arte em espaços de acesso livre, irá levar a uma necessária reflexão e questionamento, atitudes fundamentais para exercitar a mente e alargar horizontes. Às vezes podemos até nem gostar de alguma obra, de alguma instalação, mas [vê-la] é sinal que estamos atentos e podemos, enquanto cidadãos, não só opinar mas, quiçá, apresentarmos outras propostas que venham a enriquecer a nossa paisagem”, acrescenta a autarca.

De facto, o projeto Esporo junta-se a outros que têm vindo a ser desenvolvidos paralelamente nesta região. Em Ansião, Figueiró dos Vinhos e Pombal está a ser criada também uma Rota Escultórica. Já em Proença-a-Nova foi levado a cabo o Cortiçada – Experimenta Paisagem [que foi também alvo de uma reportagem do Gerador]. Este último fica integrado num Roteiro das Artes do Município, que tem vindo a ser enriquecido com mais obras e projetos. “Através da expressão artística, estamos a deixar uma marca diferenciada no território que traduz uma nova visão, motivando a atratividade e, em parceria com os artistas, mostrar locais de inconfundível beleza”, explica João Lobo, presidente desta autarquia.

No centro desta nova parceria a três “mãos” – financiada pela União Europeia, através do Centro2020 –, está o município de Figueiró dos Vinhos, que também promove o festival de arte urbana Fazunchar (igualmente com a Mistaker Maker). Na visão do presidente da câmara municipal, esta “disseminação da arte em simbiose com a natureza” influencia as pessoas a proteger os recursos locais.

“Acreditamos que, além de reformular a forma de ver e aceder à arte, [este tipo de projetos] são, sem dúvida, uma nova forma de Turismo Cultural, interligando e dando a conhecer vários locais não só de Figueiró dos Vinhos, mas de uma região, contribuindo para o aumento dos fluxos turísticos e, consequentemente, para o desenvolvimento económico do território local e regional”, acrescenta Jorge Abreu.

Diferentes linguagens e formas de interpretar o território

Para a construção da rota Esporo contribuíram dez artistas, que levaram a cabo 12 obras. Esta diversidade de abordagens é, aliás, um dos focos do projeto que também pretende dar espaço a interpretações díspares. “Este desafio de vir trabalhar a natureza, na natureza, com materialidades diferentes, com técnicas diferentes e olhares diferentes, era aquilo que nos interessava mais”, diz Lara Seixo Rodrigues.

De facto, as linguagens são diversas e traduzem diferentes formas de olhar o local onde se inserem. Em comum, as obras de arte urbana e contemporânea têm o facto de se inspirarem na vivência e história locais. Para os promotores e coordenadora, só assim tudo isto faz sentido.

A peça assinada por Tiago Francez faz jus a esta premissa. O jovem artista que trabalha significados a partir de representações da anatomia humana, quis destacar o património industrial existente na aldeia de Foz de Alge, Figueiró dos Vinhos. Ao Gerador, foi relatando a linha de pensamento enquanto ainda pontilhava a parede de tinta.

Explica que as ferrarias que existiam no final do século XVII “utilizavam esta linha de água [que atravessa a localidade]”, para “mover os motores hidráulicos para a produção do ferro”. A laboração seria suspensa em 1759 por ordem do Marquês de Pombal, mas retomada, em 1802, para fabrico de peças de ferro. Atualmente o local é apenas um esqueleto desse tempo.

“A primeira vez que eu vim aqui, ao ver estas ruínas e ter feito alguma pesquisa, percebi que isto era um marco superimportante, que eram as ferrarias nacionais onde se produziam as balas e canhões para o nosso exército”, diz o artista.

“Este abandono do Interior pareceu-me uma coisa interessante para trabalhar. A partir daí – e como tinha dito, sendo esta linha de água tão importante –, comecei a pensar nesta questão da identidade, do património industrial português ser completamente ignorado. Então adotei esta relação da linha de água como [se fosse] a coluna vertebral da região, que dinamiza tudo, e a partir daí flui até à vila de Foz de Alge”, explica Tiago Francez.

Assim, a obra que concretizou compõe-se de uma vértebra colocada junto às ferrarias e de uma pintura de uma figura humana deitada, com a coluna ausente, nos lavadouros da aldeia (ou seja, outro local onde a água tem uma presença inequívoca).

Tiago Francez a executar a sua intervenção artística no lavadouro. Fotografia via Facebook Esporo

Tudo isto ganha outro significado quando é feito em diálogo com os habitantes locais que, conforme o artista explicou, não só acompanharam o desenvolvimento da obra como já a sentem como sua. De tal modo que Lara Seixo Rodrigues acredita que já adotam uma postura “territorial” com a mesma. “As pessoas tornam-se muito defensoras do trabalho porque o entendem”, diz a coordenadora. “Quando envolves as pessoas na construção e elas passam uma, duas, três vezes e conhecem o artista, quase que fazem parte da própria peça. É como se fosse uma performance”, afirma.

Além disso, a realização deste tipo de iniciativas faz com que a população sinta que o seu território está a ser valorizado, pelo que apoiam o trabalho em desenvolvimento. Muitas vezes, esse apoio traduz-se mesmo numa ajuda fulcral para a colocação das obras, que envolve uma logística complexa. Falamos, por exemplo, da necessidade de levar uma plataforma elevatória por um caminho de terra no meio de uma floresta. “Apesar de as pessoas aparentemente não entenderem, estão sempre disponíveis” para ajudar, segundo Lara Seixo Rodrigues. Foi só assim, aliás, que foi possível à artista NeSpoon envolver a floresta numa teia de rendas feitas à mão [ver imagem de destaque].

Formação informal e capacitação durante as interações

As relações que se desenvolvem com a comunidade ao longo do processo resultam ainda numa espécie de formação informal de públicos, desenvolvida pela observação e interação com os artistas. Neste aspeto, uns e outros são unânimes ao afirmar que esse contacto direto é uma das grandes mais-valias. “O facto de estares a trabalhar uma semana em determinado sítio, em que vais conhecendo as pessoas daquele local, permite estar em diálogo aberto com elas e acaba por acontecer quase uma formação informal, uma parte pedagógica em que é o próprio artista que expõe o seu trabalho e que o explica”, diz Lara Seixo Rodrigues.

 “Existem obviamente barreiras muito grandes no que é esta questão da compreensão da arte e das pessoas acharem que não compreendem quando, na verdade, não é uma questão de compreensão, é uma questão de sentir e de emoções”, refere a curadora.

Acima de tudo, as intervenções artísticas são encaradas como uma forma de valorizar o território que se reflete no sentimento local. Para os artistas, esta questão também é importante, já que traz outra utilidade ao seu trabalho. “O que acontece é que, quando nós estamos em localidades mais pequenas – que até acho que tenho preferência, hoje em dia – a nível de exposição é diferente, mas, a nível da relação com a comunidade, é muito mais interessante”, explica Draw (Frederico Campos).

O artista, que, desde 2021, integra o projeto Ruído, em parceria com Contra (Rodrigo Gonçalves), diz que, ao contrário do que acontece nas grandes áreas metropolitanas, aqui as pessoas “acabam por se relacionar mais com a obra”. “O impacto é mais direto”, acrescenta Contra.

Dupla Ruído a instalar a obra na mata urbana de Ansião. Fotografia via Facebook Esporo

Enquanto conversa com o Gerador, a dupla dava as últimas pinceladas na obra tridimensional que está agora colocada na mata urbana de Ansião. Composto de elementos escultóricos, o retrato desta mulher a segurar uma flor reflete precisamente a relação humana com a natureza, mostrando a dualidade da mesma em duas emoções diferentes. Este formato de obra, colocada numa caixa de luz, é inédito para os Ruído, que habitualmente trabalham a uma escala mais bidimensional. A localização também sai fora do que é comum, mas ambos dizem que isso é um aspeto positivo.

“Sendo arte pública é também uma arte muito direta, ou seja, toda a gente tem acesso a ela”, explica Contra. “Ninguém tem de pagar bilhetes, basta passar por ela o que também é interessante para, neste caso, não termos arte apenas quando passamos em rotundas e edifícios municipais”, explica. Tudo isto serve, segundo diz, para “descentralizar conceitos” e aproximar a arte do público que não vive apenas nas grandes cidades, mas está antes presente em todo este território.

A inauguração e apresentação final da rota Esporo estava prevista acontecer esta sexta-feira, dia 15 de julho e prolongar-se até 17 de julho. A recente vaga de calor, os incêndios que atingiram a zona e as precauções para evitar novos prejuízos, levaram a que os planos fossem alterados: as atividades previstas para dia 15, em Ansião, estão adiadas até nova data a anunciar; para dia 16 as ações serão todas deslocalizadas para a malha urbana, o mesmo acontecendo no dia seguinte, em Figueiró dos Vinhos. As visitas guiadas com a curadora Lara Seixo Rodrigues ficam, assim, suspensas, por agora. A informação será depois atualizada na página do projeto Esporo.


O Gerador viajou a convite do projeto Esporo.

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