A palavra enquanto mote para novos cruzamentos entre diferentes expressões artísticas. A cultura em rede enquanto motor de desenvolvimento local. A colaboração como desafio à centralidade das áreas metropolitanas. Qualquer uma destas frases poderia resumir aquele que é o propósito do projeto Palavras Cruzadas. Esta iniciativa de programação cultural em rede propõe usar a literatura como mote para as artes performativas, de forma a realizar espetáculos que possam estar em diálogo com o património da região. A ideia passa por aproveitar os muitos espaços históricos existentes nos concelhos envolvidos, de forma a levar a arte às pessoas (e não o contrário). Este misto de atuações e atividades ecléticas são ainda envoltas na identidade local de cada concelho, bebendo da cultura local e regional.
“O projeto Palavras Cruzadas surgiu da vontade de construir um programa artístico que valorizasse a palavra poética ou literária (dita, representada ou cantada), em cruzamento com outras disciplinas artísticas”, explica Rui Araújo, ao Gerador. O diretor artístico do Teatro de Vila Real relata que a ideia foi formulada em paralelo com o “estímulo” dos apoios do Norte 2020 para o desenvolvimento de projetos colaborativos que promovessem o património material e imaterial das regiões. “Deu-se um encontro natural com outros parceiros da região com objetivos e vontades comuns. No caso, ao Teatro de Vila Real juntaram-se o Espaço Miguel Torga, a Fundação da Casa de Mateus e o Teatro Municipal de Bragança”, afirma o responsável a quem é atribuída a liderança da iniciativa.
A decorrer desde maio, este festival – se é que assim se lhe pode chamar – já permitiu levar espetáculos gratuitos a diferentes localidades da região, insistindo na descentralização de cultura. O ponto forte do projeto, de acordo com os responsáveis envolvidos, é a colaboração estabelecida, que permite valorizar de forma diversificada o património e cultura da região.
Teresa Albuquerque, diretora para as atividades culturais da Fundação Casa de Mateus, explica que, não só esta colaboração “se inscreve perfeitamente nesta linha de trabalho em parceria, que temos procurado fomentar”, como acabou por ser uma forma de reativar a programação cultural da entidade que dirige, cujo financiamento ficou comprometido devido à falta de turistas (maior fonte de receitas para a fundação, que enfrenta fortes limitações no acesso a financiamento comunitário). “Ficamos muito felizes por nos podermos juntar a esta iniciativa que foi montada desde o início de uma forma muito interessante”, diz a responsável.
“Programamos coisas que talvez nunca teríamos pensado programar e provavelmente os outros parceiros também recebem coisas que saem daquilo que eles eventualmente teriam imaginado à partida. Portanto, [isto] contribui também para a diversidade de oferta, coisa que eu acho que é um valor fundamental”, declara.
As diferentes entidades envolvidas dedicaram-se, além da programação propriamente dita, a uma espécie de “mapeamento patrimonial” que permitiu alargar o espetro habitual de ação de cada entidade. “Este projeto permite-nos chegar a um conjunto de localidades onde normalmente é mais difícil chegar”, diz João Sequeira, diretor do Espaço Miguel Torga, em Sabrosa.
Em virtude deste trabalho, locais como o Jardim da Carreira ou o Adro da Sé (em Vila Real), a Praceta Adriano Moreira, Jardim do Centro de Arte Contemporânea, (em Bragança), além da Capela de N. Sr.ª Azinheira ou o Largo da Praça de Sabrosa, entre outros, aliam-se ao edificado do Espaço Miguel Torga (em Sabrosa), aos teatros municipais e a vários locais da Fundação Casa de Mateus para trazer à população diversas atuações e espetáculos. De acordo com a organização, o programa abrange um total de oito criações originais em estreia e nove adaptações em modo site specific, num total de 37 representações em 17 locais.
“Com muito trabalho, com muita articulação, penso que conseguimos um bom roteiro, um bom programa”, explica João Cunha, diretor do Teatro Municipal de Bragança. “Levarmos a arte às pessoas é mais fácil, na minha perspetiva, do que fazermos com que as pessoas venham às salas de espetáculos”, acrescenta o responsável.
O programa do festival, que se prolonga até dezembro deste ano, inclui, assim, atuações que trabalham “textos originais e ecos” de autores como Camilo, Miguel Torga, Aires Torres, A. M. Pires Cabral, António Cabral, Rui Pires Cabral ou Álvaro García de Zúñiga. As suas obras são aliadas a artistas e estruturas como a Lisbon Poetry Orchestra (que colabora com orquestras locais), André Gago com o Oniros Ensemble, Ana Deus e Alexandre Soares, Jorge Louraço (com Nuno Trocado e Catarina Lacerda), João Garcia Miguel (com Sara Ribeiro), Rui Spranger e Mariana Amorim (Esquiva Companhia de Dança), Adolfo Luxúria Canibal, Rui Oliveira, Sofia Saldanha, Ismael Calliano e as companhias Dançando com a Diferença e blablaLab, em co-produção com o Teatro da Rainha.
Esta pluralidade de obras e artistas é, para o diretor do Espaço Miguel Torga, a grande mais-valia do evento, que assim contribui para a divulgação do trabalho de cada um. “Estamos não só a apoiar peças que já existem mas fundamentalmente a fomentar a criação nova, tendo como base obra de autores da região – o que é algo relativamente original”, afirma João Sequeira.
Além disso, os promotores destacam o envolvimento da população, que desempenha um papel ativo em algumas das criações desenvolvidas. “As comunidades locais serão protagonistas, não apenas enquanto sujeitos das pesquisas e residências artísticas a desenvolver, mas também através do envolvimento direto em criações como O Baile, de Aldara Bizarro, e numa nova digressão do espetáculo em espaço público Banda à Varanda, exemplifica Rui Araújo. “Também o espetáculo Torga, com a Lisbon Poetry Orchestra terá o envolvimento de orquestras locais de Vila Real e Bragança. Já o espectáculo com guião e interpretação a cargo de André Gago terá a composição e interpretação musical a cargo do Oniros Ensemble, uma formação de câmara transmontana, de geometria variável, dedicada à música erudita contemporânea, refere ainda o diretor do Teatro Municipal de Vila Real.
Apesar de todo o trabalho necessário à concretização do festival, a maior dificuldade não reside aí, segundo os responsáveis ouvidos pelo Gerador. João Sequeira explica que o grande desafio “é a divulgação destes projetos, nem é propriamente a sua execução”. O diretor do Espaço Miguel Torga afirma que “os meios de comunicação social [nacionais] dão pouco relevo à atividade que vai sendo feita no interior, e este é mais um caso”. “Há um grande envolvimento dos criadores e dos agentes culturais e, muitas vezes, esse esforço não passa para a opinião pública e para as comunidades”, lamenta.
Apesar disso, a vontade de todos é que o projeto possa ter continuidade, ainda que seja prematuro tecer considerações nesse sentido. Teresa Albuquerque diz acreditar que este tipo de projetos continua sempre “de uma forma ou de outra”, embora não seja possível definir em que condições.
“Tendo em conta que os financiamentos são bastante erráticos, é-nos difícil prever o que é que acontece no futuro. Um evento deste tipo sem financiamentos públicos não é possível e, portanto, aí entra a parte das políticas”, afirma. “Se as políticas são sempre casuísticas e nós nunca sabemos o que é que nos espera no ano seguinte, é evidente que temos sempre de recorrer à nossa imaginação para partilhar projetos de parcerias”, acrescenta a responsável.
O projeto Palavras Cruzadas teve início em maio e prolonga-se até dezembro de 2021. No programa estão previstas 37 representações em 17 locais distintos. Todos os detalhes sobre os espetáculos e atividades previstas podem ser consultadas aqui.