A 29 de Maio de 1851, Sojourner Truth, uma abolicionista da escravatura, ela própria uma mulher que passou pela escravatura perguntava às mulheres brancas da Convenção de Mulheres de Ohio “E EU NÃO SOU UMA MULHER?”.
Depois de ser vendida quatro vezes e de ter fugido para o estado de Nova York onde foi acolhida por uma família próxima que pagou pela sua liberdade, mudou de nome e tornou-se ativista pelo sufrágio universal fazendo campanha pelos direitos das mulheres negras.
“Entre negros há mulheres, entre mulheres, há mulheres negras” - Truth
Dia 8 de Março é o dia Internacional da Mulher, celebra-se desde 1917[1] como um dia de reivindicação com origem na Rússia soviética e que levou à Revolução de 1917 naquele país. Apenas em 1975 as Nações Unidas instituíram o dia Internacional da Mulher como um dia de protesto pelos direitos das mulheres. Desde então foi também criada a Greve Feminista com uma mensagem clara de que se as mulheres param o mundo pára também.
No entanto, voltamos a 1851 e às palavras de Truth que nos lembram das condicionantes para se ser considerada mulher, para pertencer ao restrito grupo que parece pertencer apenas a algumas mulheres, as que gostam de flores, as que pintam as unhas e se depilam, as que nascem com vaginas, as que são brancas. Afinal quem pode ser mulher?
Simone de Beauvoir dizia, “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”[2] mas entre as festas de revelação do sexo do bebé e os baby showers todos em azul ou rosa depois de já sabermos o sexo da criança cada vez é mais difícil perceber se uma pessoa se torna mulher ou se é a sua genitália vista pela televisão da ecografia que dita o teu género.
É também difícil ter esta conversa quando continua a discussão se o género é "biológico" ou se é uma construção social que depende de contextos, cultura, negociações de poder. O biológico vem entre aspas porque sabemos que muitas vezes quando se usa este argumento as pessoas não se referem à biologia, no sentido do conjunto das características sexuais, cromossomas, genitália, gônadas sexuais, hormonas, referem-se apenas ao sexo da criança e quando se fala de sexo normalmente quer-se dizer genitália. O que se vê entre as pernas de uma pessoa.
Eu sei que parece confuso, parece que o que estou a dizer é que sexo não é sexo, género não é biológico, biologia não é que pensávamos ser. No entanto, se tudo na vida precisa de ser interpretado, precisa de ter significado, e este significado é preciso para algo ser entendido, também todas estas questões passam por esse processo de entendimento e significação. No caso do género muito deste processo foi/é feito por pessoal médico em especial por pessoas que ajudam outras a parir o que nos fez/faz acreditar que se é feito por médicos, é ciência, se é ciência é porque é verdade. Mas a ciência avança quando novas hipóteses são colocadas, em conversa também com as experiências vividas das pessoas. Por isso é que a evolução, a ciência como lhe chamamos é também um exercício de observação, constatação e nomeação do dia-a-dia.
Chegando ao fim deste texto pode perguntar-se como é que começámos a falar de racismo e acabámos a falar em ciência? No entanto, quando falamos de género, mas não só, temos de questionar as coisas que temos como certas para conseguirmos responder cada vez melhor às exigências de um mundo global, diverso, fluido, igual a si e singular. Um mundo complexo, que se (inter-intra)relaciona, constrói e desconstrói constantemente.
Se percebemos que as mulheres hoje não são iguais às mulheres de antigamente (ainda no outro dia lia num jornal antigo de 1900 em que uma mulher de 42 anos era velha). Percebemos também que ser mulher hoje é muitas coisas, pode ser tantas outras e que algumas delas não vamos entender ou reconhecer, não vão estar de acordo com a nossa própria experiência ou seja, não vamos identificar-nos com elas ou a experiência das pessoas próximas de nós. No entanto é válida, legítima, merece respeito, cuidado e amor. Quem pode ser mulher pode ter muitas respostas mas todas as mulheres devem poder ser mulheres.
[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Dia_Internacional_da_Mulher
[2] https://www.comunidadeculturaearte.com/simone-de-beauvoir-nao-se-nasce-mulher-torna-se-mulher/
-Sobre Alexa Santos-
Alexa Santos é formada em Serviço Social pela Universidade Católica de Lisboa, em Portugal, e Mestre em Género, Sexualidade e Teoria Queer pela Universidade de Leeds no Reino Unido. Trabalha em Serviço Social há mais de dez anos e é ativista pelos direitos de pessoas LGBTQIA+ e feminista anti-racista fazendo parte da direção do Instituto da Mulher Negra em Portugal e da associação pelos direitos das lésbicas, Clube Safo. Mais recentemente, integrou o projeto de investigação no Centro de Estudos da Universidade de Coimbra, Diversity and Childhood: transformar atitudes face à diversidade de género na infância no contexto europeu coordenado por Ana Cristina Santos e Mafalda Esteves.