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Rádio Aurora — A Outra Voz: onde a palavra combate o estigma da doença mental na primeira pessoa

Do Hospital Júlio de Matos para o mundo, é nas ondas sonoras que se faz o combate ao estigma e à discriminação de pessoas com diagnósticos psiquiátricos. A Rádio Aurora – A Outra Voz é o primeiro programa no país feito num hospital psiquiátrico em que a doença mental é referida na primeira pessoa do singular. Uma rádio comunitária com 13 anos, em que histórias, entrevistas e um propósito maior não lhe faltam.

©Ana Sofia Paiva

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“Atenção”. O dedo aponta para o teto e a plateia já sabe o que fazer; por vezes, nem é necessária a palavra, basta o gesto do indicador a anunciar a intenção. O som ouve-se ao longe, sorrateiro, intensifica-se e começa-se a sobrepor às palavras. É nesse momento que o grupo ativa o mecanismo de ficar em silêncio quando estes aviões, na rota para o aeroporto Humberto Delgado, cruzam a Sala Polivalente do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL).

Os aviões já fazem parte da paisagem sonora quando a magia da rádio acontece às segundas e sextas-feiras no Hospital Júlio de Matos. Interrompe-se a fala para que seja mais fácil editar aquele som estridente, que teima em passar de dez em dez minutos. Com a mesa de som instalada, o computador, as colunas e os quatro microfones ligados, a Rádio Aurora – A Outra Voz, o primeiro programa de rádio no país feito por utentes de um hospital psiquiátrico, continua a decorrer normalmente até à passagem do próximo avião.

©Rádio Aurora

Este projeto, coordenado por Nuno Faleiro Silva, psicólogo clínico e psicoterapeuta no CHPL, reúne um grupo variado de utentes do Hospital Júlio de Matos. Cada um participa quando tem disponibilidade: a porta está sempre aberta para os utentes internados, em ambulatório, por pessoas que estão a ser acompanhadas no CHPL ou para os visitantes.

“Todos prontos? Vamos a isto”, ouve-se Nuno Faleiro Silva enquanto pressiona o botão REC do programa de edição de som. A voz da introdução do programa é a de Cláudia Mateus, uma das utentes que está desde o início da rádio. Estava no Hospital de Dia do Hospital Miguel Bombarda quando o namorado, que à época frequentava o grupo da rádio, lhe perguntou se queria participar. Resistiu durante algum tempo porque “ao princípio estava muito fechada na minha dor. Tinha tido um internamento compulsivo, que foi bastante traumático, e não me apetecia muito estar a ouvir outras histórias e estar com outras pessoas que também tinham problemas”, conta.

Mas, a dada altura, decidiu tentar e ficou “encantada desde o primeiro dia!”, porque encontrou um “ambiente muito familiar, muito acolhedor”. A rádio também a cativou “pela liberdade de cada um poder dizer aquilo que pensava ou que sentia”. “Uma coisa que despertou em mim um grande interesse e uma grande paixão pela rádio foi perceber que havia realmente uma curiosidade e um interesse pela história de cada um, o que cada um teria a dizer, o que não tinha acontecido quando eu fui internada”, explica. À época, sentiu que as suas poucas palavras foram rapidamente transformadas num diagnóstico em que não se revê.

Para Cláudia, a rádio é palavra, é escuta, é ouvir com atenção: Se alguém falava menos ou estava mais doente, a gente esperava e ouvíamos com muita atenção. Cada um tinha algo para dizer e depois esta coisa que me fascina na rádio é estarmos sempre a aprender. Estamos sempre a conhecer pessoas interessantíssimas, projetos muito giros”, conta com um sorriso. Um dos objetivos deste programa é precisamente esse: dar a palavra a quem tem algo para dizer.

É a voz de Cláudia que apresenta o convidado daquele dia: Chico Díaz, ator brasileiro, protagonista da peça King Lear, da companhia João Garcia Miguel. O ator participou ainda na Festa do Pensamento, em Almada, e a Rádio Aurora – A Outra Voz decidiu entrevistá-lo sobre esse e outros assuntos.

“Eu estava a pensar muito no que ia falar na Festa do Pensamento e aí recebi este convite e pensei logo ‘Isto pode ser interessante’”, conta Chico Díaz. “Aí, costuramos [eu e o Nuno Faleiro Silva] a possibilidade de vir e eu aceitei na hora. Isso foi ontem e hoje estou aqui.” O ator brasileiro, que foi casado com uma das filhas de Chico Buarque, ficou com curiosidade em saber mais sobre os utentes, mas as perguntas do grupo, as fotografias e os autógrafos esgotaram-lhe o tempo disponível.

Nuno Faleiro Silva, coordenador da rádio, e Chico Díaz, na entrevista conduzida pelo grupo da Rádio Aurora – A Outra Voz ©Ana Sofia Paiva

Há oito anos que Filipe Maia e Carmo soube da existência da rádio pelo grupo de teatro terapêutico do Hospital e foi com uma amiga assistir a uma das gravações do programa. “O Dr. Nuno disse-me que se quisesse ir assistir que podia e, olhe, fui ficando até hoje!”, conta com um sorriso. Sempre bem-disposto e atencioso, Filipe participa nos programas e não esconde a sua veia de artista: gosta de escrever prosas e poesia – publicou um livro em 2004 – e já foi figurante numa telenovela nacional.

“Fiquei muito curioso em ver o teatro deles, que o Filipe, quando me recebeu lá fora, me falou que é ator e que tem um grupo daqui. Então tenho vontade de vê-los em cena e mais profundamente, com mais tempo”, aponta Chico Díaz. No ano passado, o ator fez a encenação d’A Lua Vem da Ásia (1956), de Campos de Carvalho, um romance brasileiro que fala sobre os pensamentos de um homem que está num hotel de luxo e, a dado momento, considera que toda aquela realidade é um manicómio.

“São textos belíssimos que me fizeram fazer a adaptação. Mas ele [Campos de Carvalho]coloca muito essa questão de quem está livre [do hospício] e de quem está dentro. Como eu falei ali, quando ele [personagem principal]foge, lá fora é muito mais maluco do que lá dentro!”, lança uma gargalhada sincera. A promessa, diz, é a de voltar para conversar com o grupo: “Sair da normalidade, sair do programado, encontrar uma paisagem humana nova para mim é revelador e é quase uma vitamina espiritual. Adorei estar com eles, não parece que estou num hospital.”

As perguntas são preparadas pelos utentes, e a escolha dos entrevistados é democrática. Este programa já recebeu, entre outros, personalidades como Salvador Sobral, Ricardo Araújo Pereira, Teresa Villaverde e D. Duarte de Bragança. O grupo funciona de uma forma harmoniosa, onde todos têm opiniões e são ouvidos. Nos dois dias da semana em que se reúnem, um dos programas é de entrevista e outro é de reflexão, em que se propõe um tema e cada um fala e debate sobre o mesmo.

Este lugar de encontro, de partilha de histórias de vida, de reflexão e de amizade, tem um objetivo muito claro: devolver a palavra a quem a perdeu por causa de um diagnóstico psiquiátrico.

Dar voz e ter palavra através da rádio

Tudo começou com um papel azul de 25 linhas e um documentário. Nuno Faleiro Silva tinha acabado de ingressar no serviço do Hospital Miguel Bombarda – entretanto encerrado em 2011 – e trabalhava numa unidade de doentes crónicos. “Lembro-me de que na altura estavam muitas pessoas, muito isoladas, muito fechadas num lugar autístico, um lugar de afastamento da relação”, começa por contar, “e eu venho da psicologia psicanalítica. Queria ouvir as pessoas, queriam saber o que se passava dentro daqueles mundos interiores que pareciam sofridos e desamparados”.

O próprio lugar impressionou o psicólogo e sentiu-se “bastante impotente com as ferramentas que trazia”. Propôs, então, organizar um grupo com os utentes para perceber as suas necessidades no hospital. A resposta impactou-o: “Na semana seguinte, trouxeram um papel azul de 25 linhas. Aquilo era uma declaração, era uma coisa séria que me estavam a dizer”, recorda. Este papel é o documento fundador da rádio: “Então, nas suas letras esquecidas e imprecisas”, conta, “fizeram uma série de questões e as questões andavam à volta do trabalho, de terem a família próxima e de terem aquilo que eu entendi como sentirem-se seguras e respeitadas”.

Nuno percebeu que existia uma voz camuflada pelo ruído de um diagnóstico e do estigma e levou este documento à equipa, que não lhe prestou a devida atenção. Confessa que ficou “entre a revolta e a tristeza”. Por coincidência, foi nessa altura que viajou até Madrid e, “por acaso”, encontrou um festival de cinema. Foi num documentário de Adriana Leiria, de nome El revés del tapiz de la locura, que descobriu a forma de dar voz a quem não a tinha: através da rádio.

A personagem principal do documentário era a Rádio Nikosia, feita na primeira pessoa por utentes diagnosticados com doenças psiquiátricas. O entusiasmo de Nuno foi imediato: “Fez muito sentido.Há pessoas que estão a utilizar meios de comunicação e estão a conversar com as pessoas, estão a conversar com a vida lá fora, com o mundo, com o mundo exterior e estão a receber feedback desse mundo exterior e eu achei... entrei no nível da paixão, de apaixonamento.”

E a ideia de trazer esta forma de terapia para Portugal juntou Nuno Faleiro Silva e Isabel Moura Carvalho, psicóloga clínica, a unir esforços e a entrar no mundo radiofónico. Apesar de Isabel Moura Carvalho já não pertencer ao projeto, continua a ser uma das mentoras que ajudou a impulsionar a Rádio Aurora – A Outra Voz.

Os dois começaram a tentar entender os mecanismos da própria rádio, do material necessário para levar a ideia avante – em conjunto com um estagiário que mais tarde se tornou músico – e tudo se alinhou para que a rádio começasse a emitir os primeiros sons. “Começámos a falar com algumas pessoas que conhecíamos, se tinham interesse em tentar fazer isto” e perceber se existia curiosidade junto das “pessoas que atendíamos ou pessoas que conhecíamos nas enfermeiras onde trabalhávamos”, explica. A pouco e pouco, a ideia foi ganhando forma e, a 6 de março de 2009, originalmente no Hospital Miguel Bombarda, nasceu a Rádio Aurora – A Outra Voz.

“As pessoas têm receio de falar e, mais do que isso, têm a sensação de perda de credibilidade. Dizia um colega nosso que, desde que foi diagnosticado, a sua palavra perdeu legitimidade. E isto parece-me uma coisa incrível e urgente. Como é que se pode devolver?”, questiona Nuno. “Não quero dizer dignificar, mas voltar, voltar a proporcionar um sentimento de legitimidade de direito às pessoas e, portanto, a importância do papel azul de 25 linhas. Isso foi evidente para mim.”

Há 13 anos a emitir, esta rádio comunitária tem precisamente esse propósito: intervir na comunidade e dar a entender que ainda existe “uma tradição imensa de exclusão, de afastamento, de estigmatização como de discriminação, que ainda está muito presente”. “As pessoas quando vivem uma experiência de doença mental, vivem imediatamente associados a uma segunda doença, e há quem chame, de forma mais forte, uma morte social.” E é necessário contrariar esse pensamento e essa reserva. “É falso e hipócrita achar que o sofrimento humano, o sofrimento psíquico se deve única e exclusivamente a uma desregulação neuroquímica isolada de um contexto. Nós somos animais que vivem num contexto social”, explica o psicólogo.

É na primeira pessoa que utentes do CHPL dão a conhecer as suas opiniões nos programas em que não têm convidados, refletindo sobre um tema em específico. Todas as emissões, editadas por Nuno, são posteriormente transmitidas em cerca de 17 rádios, entre elas a Antena 1. Se num ato de curiosidade e de conhecimento se ouve o programa da Rádio Aurora – A Outra Voz, é num ato de partilha que estes utentes mostram um pouco de si.

“Vais para o Júlio de Matos, vais para o hospital dos maluquinhos”

Filipe conta, orgulhoso, que nasceu em Angola e que, depois do 25 de abril de 1974, veio para Portugal. Ainda morou em Macau durante dois anos, mas, desde então, Lisboa é a sua morada. Ingressou no curso de Estudos Ingleses na universidade, mas não o terminou porque não aguentou “a pressão por causa da minha doença”, mas, durante o percurso da sua vida, não deixou de estudar e de participar em várias atividades, agora no CHPL.

Fala com grande estima da família numerosa e de uma das suas irmãs: “A minha irmã é professora e uma jornalista conhecida [Teresa Maia e Carmo], já foi entrevistada aqui pela Rádio Aurora e é muito querida. Gosto muito dela, [gosto muito] da minha mãe, dos meus irmãos, da minha família!”

E sente que tem outra no CHPL: “ODr. Nuno é impecável, os meus colegas são impecáveis, somos uma segunda família. Também pertenço a um outro grupo, que é grupo de teatro terapêutico aqui no Júlio de Matos, que também são uma segunda família”, conta. “Se não fossem essas atividades, não tinha nada porque sou esquizofrénico.”

E a esquizofrenia, semelhante a outras patologias mentais, ainda é alvo de discriminação. Filipe ainda sente, principalmente quando se fala no Hospital Júlio de Matos: “Ainda há o estigma, muitas vezes as pessoas lá fora dizem: “Vais para o Hospital do Júlio de Matos, vais para o hospital dos maluquinhos.” É muito chato e, às vezes, os próprios doentes estigmatizam-se uns aos outros”, aponta. Porém, salienta que a discriminação já não é tão feroz como antes. Acredita que a rádio e o teatro têm ajudado nessa luta: “Com o avançar do tempo, o estigma foi-se reduzindo, e a nossa rádio visa sobretudo combater o estigma e o grupo de teatro também. Muitas vezes, as peças são de intervenção social”, aponta.

Filipe Maia e Castro sente que a Rádio Aurora – A Outra Voz é uma segunda família ©Ana Sofia Paiva

Rosária Vincent não se coíbe de responder quando a tentam catalogar como doente mental: “Ninguém me trata por doente, porque eu não autorizo. Eu tenho logo resposta: ‘Mais doente está você por me chamar isso a mim. Você é que está doente porque eu não estou’”. Com uma dura história de vida, conta que, desde 1960, é acompanhada por psicólogos e psiquiatras. “Hoje, chamam ao que tive depressão, mas eu tive dois esgotamentos”, e conta porquê: casou aos 17, teve o primeiro filho aos 19 anos e 16 meses depois deu à luz a segunda filha.

“Eu cheguei a esquecer-me de um filho na rua” e “depois houve outra vez em que fiquei sentada nas escadas com os dois a chorar porque não sabia em que andar morava, não me lembrava”, recorda. Foi então que procurou uma psiquiatra porque estas crises deixavam-na nervosa, agitada, triste e verbalmente agressiva.

Nunca foi internada porque “consegui sempre superar com otimismo e muita força”, mas houve momentos complicados na sua vida. Vive em Moscavide com o neto de 40 anos e os quatro gatos, que adora. Recorda com ternura o marido que faleceu há uma década, vítima de alzheimer. Vive o dia a dia entretida, como diz. O seu tempo é dividido nas atividades do Hospital Júlio de Matos e no gosto de pintar mandalas e de cuidar de flores. É a natureza que a faz sentir-se mais tranquila.

Rosária sabe que a discriminação a pessoas com doenças mentais já não é tão forte, mas o estigma associado ao Hospital Júlio de Matos ainda surge em conversas. Conta um episódio de uma colega com quem ia tomar café: “Ela dizia-me: ‘Ai credo, eu não chegava à porta, até tenho medo de entrar lá’. As pessoas dizem que têm medo de entrar aqui dentro, mas porquê? É porque as pessoas batem, mandam-se ou quê? Por amor de Deus, veja como vai a cabeça das pessoas!” E é por essa razão que Rosária faz questão de advertir os colegas para que, quando mencionarem o hospital, referirem o nome de Hospital Júlio de Matos ao invés de Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, porque o estigma deve ser contrariado, acredita. E não há que ter vergonha.

No grupo, Rosária é das utentes mais velhas e é quase uma mãe para muitos, inclusive para Filipe. “Eu vou a todas as atividades. Olhe, o Dr. Nuno conseguiu-nos natação para oito pessoas nas estrelas de São João de Brito [Associação Centro Cultural e Desportivo Estrelas de São João de Brito], e eu nunca aprendi a nadar, não sei mesmo, e vou!” Na primeira aula, Filipe deixou-se dormir e não compareceu. Então, Rosária teve uma conversa franca com ele: “Eu disse-lhe que não podia tirar o lugar às outras pessoas e, então, fizemos um acordo. No dia da piscina, eu ligo-lhe às sete da manhã para ele não se deixar dormir.” E assim é, todas as semanas, às sextas-feiras.

Para além da natação, Rosária frequenta o grupo de apoio das quintas-feiras, onde estão, também, psicólogos e psiquiatras. “Não é como a rádio, é mais duro. Mas vou todas as semanas.” Conta ainda que já fez 11 operações desde 2015, “e, olhe, cá estou!”. Não se coíbe de fazer as atividades de que gosta, não tem problemas em dizer o que sente e conta que, antes de se reformar, teve vários trabalhos, um deles como fotógrafa profissional.

Na pandemia “fui-me muito abaixo”, porque não tinha o neto com ela; valeram-lhe os gatos, a sua companhia, porque a rádio também deixou de se reunir. Agora que uma certa normalidade regressou, “o grupo não é tão grande, agora somos uns 10 ou pouco mais, antes era um grupo de 40 a 50 pessoas”.

Apesar de mais pequeno, não há um único dia em que a Sala Polivalente esteja vazia. No final de cada gravação, há direito a chá e bolachas, trazidas pelos utentes. Cláudia serve os colegas com um sorriso na cara. “Sem dúvida de que há uma grande camaradagem. Acho que até é mais, é mesmo amizade, solidariedade e inclusão, por que não amor, também! Acho que sentimos todos um carinho muito especial uns pelos outros. E também outra coisa que nos satisfaz muito é estarmos a lutar pelos nossos direitos, e isso faz-nos sentir bem.”

Rosária Vicent (à esquerda) e Cláudia Mateus (à direita) ©Ana Sofia Paiva

Licenciada em Arqueologia, Cláudia teve várias experiências dentro da área. Escreve poesia, movida por uma inspiração que ainda não conhece a sua fonte, e abraça-a com fervor. Defende que não se deve catalogar uma pessoa com uma doença mental e cingir-se apenas ao diagnóstico e à medicação: “Temos de abrir a mente, ouvir os outros com atenção, darmos credibilidade ao que dizem.” Isto porque, em 2006, aquando do seu internamento por um episódio de surto psicótico, sentiu-se desvalorizada.

“Aquilo que é designado como surto psicótico, às vezes, é uma forma fácil e breve de catalogar as coisas e não há interesse em saber realmente o que é que se passou e tentar acreditar.” E na rádio, sente-se ouvida. Ela e tantos outros utentes espalhados pelo mundo. É terapia sem prescrição.

O megafone internacional contra o estigma da doença mental

O poder da rádio é invisível, mas eficaz. Este medium tem o poder da voz, da companhia e também da terapia. Sob esta premissa, o primeiro encontro mundial de rádios deste tipo decorreu em 2007, em Buenos Aires, na Argentina. Combater a estigmatização das próprias doenças mentais e garantir um envolvimento com a comunidade são dois dos aspetos que acompanham estes encontros. A Rádio Aurora – A Outra Voz já participou neste e em outros encontros e viajou um pouco por todo o mundo: Rússia, Milão, Paris ou Barcelona.

O Sound and Voices também foi outro dos encontros que teve a presença desta rádio, em conjunto com sete rádios de sete países diferentes, onde partilharam experiências e episódios. Foi num desses encontros que a Rádio Aurora – A Outra Voz conheceu a Rádio MicroSillons, uma rádio francesa com o mesmo propósito. Depois de algumas conversações, parte da equipa viajou de Toulouse, em França, para conhecer o grupo de utentes da Rádio Aurora – A Outra Voz, em Lisboa, no dia 9 de junho.

O encontro começou cedo no CHPL, e as apresentações não tardaram a acontecer: Filipe, que domina bem a língua francesa, começou a socializar com os utentes; Rosária, que não domina tão bem a língua, ia dizendo algumas palavras; já Cláudia preferiu falar em inglês. O convívio ainda se estendeu por largos minutos junto a um dos quiosques do hospital, antes do almoço.

No meio da comitiva francesa, Isabel Tavares é a portuguesa a quem a França lhe roubou o coração. Há décadas a viver em Toulouse, vem duas vezes por ano a Portugal para visitar os filhos e os seis netos. Nasceu na Avenida da Igreja, junto ao hospital, e voltar às raízes é sempre motivo de felicidade.

Em Toulouse, Isabel vive no edifício onde se insere a MicroSillions, a associação que tem como objetivo receber pessoas com algum tipo de perturbação psicológica e atenuá-lo através da rádio, que pertence à Groupe d’Entraide Mutuelle (GEM). Isabel explica que “cada um tem a sua casa, mas lá em baixo, no edifício, há uma grande sala onde se fazem vários ateliês: de pintura, de rádio, de inglês, de escrita”. A rádio MicroSillions vai uma vez, quinzenalmente, fazer o ateliê com os utentes. “Somos uma família”, afirma com convicção.

O propósito desta visita foi “para partilhar, para divulgar, para nos relacionarmos”, considera Sylvain Bourg, coordenador dos projetos da GEM. Nesta que foi a primeira vez que a equipa esteve em Portugal, seguiu-se o almoço e, claro, a gravação de um episódio entre as rádios.

Estes encontros acabam por ter uma amplitude ainda maior para os utentes e profissionais de saúde, considera Nuno Faleiro Silva: “Se quisermos fazer um programa sobre um tema e tivermos a nossa rede de rádios-irmãs, como se autointitulam, temos perspetivas de vários continentes sobre a mesma questão.” “E é essa velocidade, essa riqueza extraordinária que dá um sentido de identificação à equipa, e não a solidão de estarmos num movimento com causas comuns. Isso é uma das coisas mais protetoras em relação ao estigma e à discriminação.”

Olhar para as perturbações mentais de um outro ângulo é também “outra forma de cuidados intensivos”, escreveu Tiago Pires Marques num artigo publicado no P2, no qual fala sobre a missão do Movimento Ouvir Vozes Portugal (MOVP), em que a Rádio Aurora – A Outra Voz é parceira. Um projeto que tem, também, a liberdade como motor agregador. “Acho que a liberdade é importante. Como dizia um grande psiquiatra italiano, a liberdade é terapêutica”, afirma Nuno Faleiro Silva.

Esta liberdade de apenas ser, de aceitar os demónios ou as vozes intrusivas ou amigáveis, é um trabalho diário destes utentes. E no dito mundo exterior? Há esta liberdade de simplesmente ser? José Tolentino Mendonça escreveu numa crónica a propósito deste projeto que “[…] o importante não será arrumar o mundo como nós o fazemos, etiquetando, separando, permitindo que o preconceito nos reja. Importante será sim escutar, surpreender-se e deliciar-se com a alma do mundo, que em nenhuma parte é duas vezes igual.”

A Rádio Aurora – A Outra Voz vai continuar com esta missão de contrariar o estigma, a discriminação e a exclusão de pessoas com diagnósticos psiquiátricos. Tudo com o poder da voz e da rádio. Os aviões, esses, vão continuar a fazer parte desta paisagem sonora.

Ouve aqui a reportagem radiofónica sobre a Rádio Aurora – A Outra voz com apontamentos de som binaural (som tridimensional). Aconselha-se o uso de headphones:

Texto de Ana Sofia Paiva
Edição de som de Ana Sofia Paiva

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