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Rute Ribeiro e Luís Vieira (Descon’FIMFA): A nossa vida na vida dos objectos, procurando-se nova

“A marioneta nasceu quando o homem viu pela primeira vez a sua sombra e viu…

Texto de Raquel Rodrigues

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“A marioneta nasceu quando o homem viu pela primeira vez a sua sombra e viu que era ele e que não era ele, ao mesmo tempo”, diz o dramaturgo de marionetas argentino Javier Villafañe, citado por Rute Ribeiro, que partilha com Luís Vieira a direcção artística do FIMFA - Festival Internacional de Marionetas e Formas Animadas. Não sabemos se foi ao mesmo tempo, ou antes, que o ser humano se descobriu enquanto marioneta de outro e, simultaneamente, de si mesmo. Esse outro apresentou-se, recentemente, sob a forma de pandemia e os nossos corpos são objectos por ela manipulados. Os espaços, as deslocações, as relações, os rituais, as emoções, os organismos, passaram a habitar o reino do risco. Contudo, a marioneta confinada, isto é, limitada, tem uma espécie de poder, que é um desejo, o do ilimitado, que encontra lugar na arte. Por isso, o FIMFA, apesar de ter cancelado a 20ª edição, que teria lugar entre 7 e 24 de Maio, decidiu empreender numa edição especial, intitulada de Descon’FIMFA. Esta realizar-se-á, de 5 de Agosto a 5 de Setembro, no Teatro do Bairro, no Teatro Taborda e no Castelo de São Jorge.

“Queríamos, de facto continuar este projecto e, por outro lado, parecia-nos que era importante criar condições para que os artistas pudessem voltar aos palcos e encontrar o público. Foram as duas principais razões de estarmos a cometer esta loucura. Só agora percebemos que é uma loucura, porque tomámos consciência que isto pode parar de um momento para o outro, se as coisas ficarem feias”, partilha Luís, que, com Rute, vê o evento na “corda bamba”.

Os directores artísticos, com um cenário de posters do FIMFA na parede, com uma alegria e entusiasmo maiores que a incerteza, acendem, por minutos, a luz dos oito espectáculos, cinco de companhias portuguesas e três de companhias estrangeiras (Espanha, México e Bélgica), que nos convidam a “aprender a viver de novo”, refere Luís Vieira. Estas criações, que, na edição marcada para Maio, reagendada para 2021, seriam cento e oito, encontram-se aqui, no desejo de despoletar o despertar das utopias. No “formato possível para este contexto”, o movimento destes espectáculos é o de ampliar a “reflexão sobre os objectos, as memórias dos objectos”, em diálogo com a contemporaneidade, no que diz respeito, por exemplo, ao “turismo”, às “deslocações de pessoas”, às “crises financeiras”, aponta Luís. “E aos extremismos”, acrescenta Rute. “Gostamos de abordar, sempre, nos nossos festivais, estas temáticas, que as pessoas não estão habituadas a ver em marionetas, que associam a crianças, e de mostrar artistas que trabalham com os objectos de outra forma. É bom não ter balizas e apresentar este tipo de projectos mais experimentais”, continua.

O FIMFA abre-nos a possibilidade de conhecer os outros fios que seguram o universo das marionetas, que, como lemos, parece que nasceu connosco. “Felizmente, hoje em dia, as marionetas não são aquele mundo estanque. Abriu. Há um cruzamento entre as várias disciplinas artísticas, com a dança, o cinema, o vídeo, até com as tecnologias, a robótica.... Acontece, muitas vezes, irmos ao cinema, estarmos a ver a última tecnologia desenvolvida e, por detrás, estão “marionetistas”, pessoas que estão a trabalhar na manipulação da matéria. É isso que chamamos de ‘marioneta contemporânea’. No fundo, é a manipulação da matéria. Quando um objecto está em cena, conseguimos insuflar vida, alma. As pessoas acreditam que aquele objecto está vivo”, explica Rute. “Tem autonomia”, completa Luís.

O marionetista saiu da barraca e despiu o fato preto. A magia encontrou novos caminhos para chegar ao seu destino, a imaginação de cada ser humano. Mas “a essência é a mesma”, pois tratam-se de “imagens mentais que se transformam e que nos levam a acreditar que a coisa que está ali e age por si própria. Por isso é que, hoje em dia, não se fala da arte da marioneta, mas das artes da marioneta, porque há um conjunto de artes associadas que, de facto, invadiram este território, para além do teatro de objectos, uma outra categoria que estamos a englobar”. No teatro de objectos, os objectos não são outra coisa.” São eles mesmos. “O que o autor faz é usá-los de forma cuidada”, isto é, colocá-los em cena, manipulando-os “a partir da sua essência”. Através desta, poder-se-ão gerar metáforas e imagens. Por isso, podemos também falar de “teatro de imagens”. “Não é um objecto que está ali como marioneta, num boneco, numa personagem, mas que é utilizado e incorpora a performance, e para o qual são canalizadas as energias e o foco da acção”, explicita Luís.

O FIMFA permite, então, um encontro com o rasto da criação, a expansão. No Descon’FIMFA, esta tomará várias formas. La Melancolía del Turista, dos espanhóis Hermanos Oligor, e da companhia mexicana Microscopía Teatro, que terão a sua estreia, abrirão o pano. Trata-se de um teatro-cinema que nos fala da memória dos espaços, do regresso a estes, que, devido ao confronto com a sua ausência, já é apenas imaginário. Através de objectos, miniaturas, imagens, postais, entrevistas, recolhidos num “trabalho de campo em destinos turísticos, actualmente em decadência”, perguntamos “Quantos segundos são necessários para criar e perder um paraíso?”, lê-se no dossier de imprensa.

A mesma dupla também apresentará La Máquina de la Soledad, que parte de uma mala de 1900, encontrada no México e cujo interior são cartas de amor. A partir deste objecto “desenrola-se a história de um casal, Manuel e Elisa, duas pessoas que estão entre a ficção e a realidade”. Os criadores, no seu trabalho de investigação, procuram estas personagens. Trata-se de um espectáculo que é “uma homenagem ao correio postal. Hoje, já ninguém escreve cartas. É um acto bonito que se está a perder. Quando escrevemos uma carta, não escrevemos só para quem a dirigimos, mas também para nós próprios”, reflecte Luís. Tal como em Melancolía del Turista, os artistas criam com documentos, encontrados nos processos de pesquisa, o que deixa a dúvida no espectador. “Será que aconteceu mesmo?”, Rute interroga-se.

O Triângulo Cor-de-Rosa, de André Murraças, estreará. Convoca Berlim, nos anos 20. “No ano em que se completam os 75 anos do fim de Auschwitz, reflecte sobre esses homens que passaram pelos campos de concentração e eram duplamente discriminados, pelo facto de serem judeus e homossexuais. Os seus projectos de vida ficaram cancelados, naquele momento. De Berlim, das suas vidas normais, vieram os nazis”, apresenta Luís. “E então pergunta-se: que histórias guardam os campos de concentração nazis sobre esses homens depois marcados e identificados por um triângulo cor-de-rosa no peito? Os seus objetos pessoais vão contar a vida que lhes foi tirada”, lê-se no dossier de imprensa.

“Às vezes esquecemo-nos de falar de nós próprios. É um problema que temos!”, nota Rute, rindo. A Tarumba - Teatro de Marionetas, com Este não é o Nariz de Gógol, mas podia ser... com um toque de Jacques Prévert, “fala das pessoas que estão no poder e que são muito são extremistas. Curiosamente, são todas louras, o Trump, o Putim, o Boris… Mudámos algumas pessoas, entretanto, a Theresa May já não está. O Bolsonaro não é louro, mas fazemos umas madeixas. É um espetáculo com muito humor, mas que faz as pessoas pensar”, conta.  Com Gogol, a dupla parte da “história de um homem que perdeu o nariz, um major, uma pessoa muito importante. Acorda, de manhã, e sente qualquer coisa. Vê que o seu nariz não está lá. Corre todos os sítios à procura do seu nariz e acontecem uma série de peripécias,” continua. Para além dos criadores partilharem a construção do espectáculo, completam-se nas frases, abrem parêntesis, falando, em duas vozes, do que contam dos objectos. “Depois construímos uma espécie de desfile populista, onde aparecem estas pessoas da actualidade, que só são travadas pelo King Kong, aquela figura que vai pôr tudo na ordem e dar a oportunidade, de novo, agora, sim, ao Jacques Prevert. É um humanismo”, diz Luís. Desde Platão, a Hitchcock, e até Camões, são chamados nos “objetos e figuras articuladas de papel, qual cadavre exquis de cenas e jogos de palavras, mas sempre com muito nonsense, onde está presente o mundo surreal que nos rodeia, num ambiente kitsch, insólito e de festa com reminiscências russas, algures entre o Festival da Eurovisão e a Rússia dos anos 70...”, lê-se no dossier de imprensa. “É difícil explicar…”, comenta Rute.

A Formiga Atómica traz a Caminhada dos Elefantes. “É um espectáculo leve e muito forte, ajuda as crianças a lidar com a morte”, reflectem os directores artísticos, abrindo a frase ao meio. “(…) conta a história de um homem e de uma manada de elefantes. Quando o homem morre, os elefantes fazem uma caminhada misteriosa a sua casa, para lhe prestar uma última homenagem: não era um homem qualquer, era um deles. A Caminhada dos Elefantes é sobre a existência, a vida e a morte, e o caminho que todos temos de fazer, um dia, para nos despedirmos de alguém. Um espetáculo que reflete sobre o fim, que é um mistério para todos nós, crianças ou adultos”, encontramos no dossier de imprensa.

Com o Teatro Ferro, entramos n’Uma coisa longínqua, que terá a sua estreia absoluta. “Uma Coisa Longínqua nasce de um sonho, em que algumas esculturas/monumentos decidiram abandonar as plazas entre os grandes edifícios das metrópoles do planeta. Após a fuga as obras de arte reúnem-se no deserto em busca de outras possibilidades para a sua existência no mundo das coisas. A nova criação do Teatro de Ferro tem a colaboração do compositor Carlos Guedes, num filme-performance que procurar perceber os estranhos acontecimentos protagonizados por um grupo de objetos emancipados.” Igor Granda “ começou este projecto antes do que se está a passar, e acaba por fazer todo o sentido, pois é acerca do que se passa nas esculturas e monumentos” e reflecte sobre “o que podemos fazer nesta civilização e que a economia é a rainha das nossas vidas”, acrescenta Luís ao dossier.

A morte continua com o Projecto Entremundos, da PIA - Projectos de Intervenção Artística, um espectáculo “mais de rua, com marionetas gigantes”, que procura “desconstruir todos esses mitos e medos que se pode ter”, relacionados com esta temática, que evoca dimensões paralelas, eternamente por descobrir.

“Para encerrar, temos a papisa do teatro de objectos, [Agnès Limbos, da Cie Gare Centrale], uma actriz belga, histórica, que começou a trabalho com objectos, que os pôs a contar histórias, sem ser com aquela ‘figurinha’. Ela vem com um trompetista [Gregory Houben], que toca de uma forma genial. Fazem o papel de um casal riquíssimo que, de repente, perdeu tudo e está à deriva. Vão parar a uma ilha, que descobrem que tem ouro e começam a dar cabo de tudo”, apresenta Rute.

No início da entrevista, a directora artística disse: “Esperamos que as fronteiras continuem abertas.” A curadoria está. Porque as lotações são muito específicas, o número de apresentações foi alargado. Quanto à arte, abrir é o gesto ininterrupto. “Cabe à arte despoletar a imaginação, porque a imaginação leva à criação de novos mundos, ou de novas utopias. Temos que pensar o que queremos que o mundo seja, a partir de agora. Cabe aos artistas fazer-nos pensar nisto. É o rastilho.”

Sabe mais aqui.

Este artigo encontra-se ao abrigo do Antigo Acordo Ortográfico

Texto de Raquel Botelho Rodrigues

Fotografia respeitante a La Melancolía del Turista, dos Hermanos Oligor, e da companhia mexicana Microscopía Teatro, cedida pela assessoria de imprensa

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