Agora que entramos num período de pré-campanha eleitoral para as eleições autárquicas, gostaria de relembrar um exercício que o filósofo e sociólogo francês Henri Lefèbvre (1901-1991) bebeu do filósofo, físico e matemático português Lúcio Alberto Pinheiro dos Santos (1889-1950), revisitado pelo filósofo e epistemólogo francês Gaston Bachelard (1884-1962). Lefèbvre aplica o termo à escuta metódica das cidades, pois elas têm o seu pulsar, o seu ritmo, a sua música. Na verdade, trata-se de um enorme elogio à vida quotidiana: na sua aparente e monótona repetição está tudo o que precisamos saber sobre a transformação dos territórios urbanos sob a égide do capitalismo. Se formos argutos observadores, conseguiremos perceber como se articulam a mesmidade e a diferença; o mecânico e o orgânico; o real e o virtual; o cíclico e o linear; o ordinário e o extraordinário; a produção e a destruição. Um autêntico manual sobre o ciclo metabólico das urbes.
Vejamos a rua como o lugar onde o movimento acontece: que repetições, frequências e alternâncias encontramos? Para onde se movem as pessoas? O que veem? O que as atrai? O que diz a comunicação corporal no espaço, que tensões e contradições exprime? O ritmoanalista é capaz de escutar uma rua, uma casa, um bairro como se ouve uma balada ou uma sinfonia. Sempre que acontece uma interação entre um lugar, um tempo e um movimento despoleta-se uma mobilização de energia que, todavia, não é aleatória, pois radica na forma como as cidades se organizam e se reproduzem (o micro – corpo – não se entende sem o macro – organização social – e vice-versa).
Nas nossas cidades escuta-se a cadência do consumo, dos shoppings erigidos a novas catedrais, do corpo adormecido pela mercadoria – corpo alienado, da relação sem relação (sem ressonância com o mundo, diria Hartmut Rosa – reinado do mutismo que nada acrescenta, da existência que não se deixa tocar). No urbanismo de fantasia, genérico, que atravessa as urbes, a mesmidade rouba à imaginação as suas zonas de claro/escuro, de transição entre o público e o privado, de encobrimento/descobrimento. Ouvem-se os corpos transformados em ciborgues, entretidos com o prolongamento do seu silêncio nos dispositivos que encaixam e transformam o nosso organismo. Perde-se a lentidão da escuta e do olhar, pois nunca se descobre nada sem tentarmos uma e outra vez, furando a superfície e desconfiando do cliché do discurso-para-turista. Nos espaços públicos que são mero atravessamento evita-se o contágio, a interpelação, o incómodo, o choque.
Mas encontra-se ainda, em certos lugares, um praguejar insolente, uma vozearia que sobe e canta, um café onde se escutam gargalhadas, uma corrida de crianças, luzes que vêm das casas, casas que são navios, malta nova na proa de um skate…
E é isso que interessa: a ritmanálise poderá ser o instrumento mais eficaz para uma cartografia dos espaços de esperança – aqueles em que a complexidade das cidades se desvenda e em que os moldes burocráticos, especializados e planeados do espaço são subvertidos e até anulados pela prática concreta. Talvez aí se compreenda melhor o que suspende ou inverte o arsenal do poder, a energia, mesmo que ínfima, da sociabilidade, da sincronização rítmica, da emoção partilhada e da solidariedade. Por exemplo: a alegria que é vivida em conjunto, fora de propósitos mercantis. Como se produz? Que espaços e ocasiões a propiciam? Como se propaga?
A irrupção da alegria nas cidades – todo um programa a desenvolver.
-Sobre João Teixeira Lopes-
Licenciado em Sociologia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (1992), é Mestre em ciências sociais pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (1995) com a Dissertação Tristes Escolas – Um Estudo sobre Práticas Culturais Estudantis no Espaço Escolar Urbano (Porto, Edições Afrontamento,1997). É também doutorado em Sociologia da Cultura e da Educação (1999) com a Dissertação (A Cidade e a Cultura – Um Estudo sobre Práticas Culturais Urbanas (Porto,Edições Afrontamento, 2000). Foi programador de Porto Capital Europeia da Cultura 2001, enquanto responsável pela área do envolvimento da população e membro da equipa inicial que redigiu o projeto de candidatura apresentado ao Conselho da Europa. Tem 23 livros publicados (sozinho ou em co-autoria) nos domínios da sociologia da cultura, cidade, juventude e educação, bem como museologia e estudos territoriais. Foi distinguido, a 29 de maio de 2014, com o galardão “Chevalier des Palmes Académiques” pelo Governo francês. Coordena, desde maio de 2020, o Instituto de Sociologia da Universidade do Porto.