Com a chegada da Covid-19 muitas foram as salas de espectáculos que encerraram portas. O setor da cultura ficou sem bengala. No total, e de acordo com os dados da associação de Gestão dos Direitos dos Artistas (GDA), até 31 de março foram cancelados 4.287 espetáculos. Em média, ficaram sem rendimento 18 artistas envolvidos, para além de cerca de dois profissionais de produção e três técnicos, por espectáculo.
Cinco meses após a reabertura não se ouve mais os gritos das pessoas a ecoar nas salas de espectáculos. Não se vê mais as expressões faciais. Não se vê a partilha de opiniões. Se antes o telemóvel era o melhor aliado no concerto, agora o álcool-gel parece ter conquistado o lugar.
Álvaro Covões, fundador e diretor da Everything is New, trabalha há 30 anos na organização de eventos. Admite que nunca passou por uma situação idêntica. Desolado, relata que a crise da Covid-19 “veio pôr a nu a tristeza da área cultural no país, tanto a nível da oferta, como a nível da procura.” Face a isto, confessa que não conseguiu ficar indiferente ao desmoronamento do setor.
Fotografia disponível via facebook Álvaro Covões
Em união com a PEV Entertaiment, e com o apoio da Santa Casa da Misericórdia, da Câmara de Lisboa, e da Câmara do Porto surgiu o evento “Santa Casa Portugal ao Vivo: 2020 cultura para todos”. A ideia consiste em produzir, em simultâneo, 20 espectáculos em Lisboa, no Campo Pequeno, e 20 espectáculos no Porto, no Super Bock Arena Pavilhão Rosa Mota, durante os meses de novembro e dezembro. O objetivo é só um: “dar um novo alento ao setor e aos profissionais”, explica o diretor.
De acordo com Álvaro, este é o primeiro grande evento cultural na Europa a acontecer num período da incerteza face à Covid-19. Assim, explica desde logo a escolha do nome do evento como uma forma de enfatizar o acontecer dos espectáculos de forma simultânea, nas duas cidades principais, mas ao mesmo tempo como uma sátira para o 2020 dos fundos europeus. “Ouvimos sempre falar do 2020, mas nunca se fala para a cultura, isto é um trocadilho que está na altura de apoiar a cultura também”, refere.
Fotografia disponível via Everything is New
Face a isto, admite que o primeiro passo de toda a organização do evento passou por arranjar parceiros que ajudassem a cobrir os custos de abertura das portas. “Quando as salas abrem as portas, tem custos, entre eles, a luz, os equipamentos de som, as empresas audiovisuais, o palco, a segurança, a publicidade, entre outros”, esclarece. “Então, fomos pedir o apoio tanto à Câmara de Lisboa, como à do Porto, para este projeto, e fomos tentar arranjar um patrocinador que acabou por ser a Santa Casa, por isso o nome de Santa Casa Portugal ao Vivo.”
Com isto, faltaria apenas encontrar o cartaz certo para o evento. Segundo Álvaro Covões a escolha foi, desde logo, óbvia. “A partir do momento em que a maior parte dos artistas quase não trabalhou ou não trabalhou este ano, nós tínhamos de apoiar aquilo que é nosso em primeiro lugar.” Nesse sentido, a programação 100% portuguesa surge como uma forma de apoiar os artistas, de trazer de volta a ligação ao setor, e como uma garantia de trabalho. “É importante manter este fluxo económico ativo para manter vivo o ecossistema da cultura, se não, não vamos conseguir sobreviver”, sublinha.
Neste cartaz encontra-se João Barbosa, mais conhecido como Branko. O artista vai pisar o palco, do Campo Pequeno, no dia 20 de novembro. Dj e produtor de profissão confessa que sente uma emoção extra face ao evento. “A ideia de sair de casa para ir ver um concerto em 2020 é quase uma mistura de emoções. Eu já saí de casa para ver concertos, e ao mesmo tempo saio um bocadinho receoso do género — será que me vai acontecer alguma coisa que obviamente é real, e passa pela cabeça das pessoas.”
Fotografia disponível via facebook Branko
Ainda assim, com um sorriso no rosto, relata que a expetativa passa por construir uma relação com o público durante o tempo do concerto, de forma a preencher os sentidos das pessoas, tanto da audição como da visão. “Até porque acho interessante ir a um concerto e experienciar formas diferentes, vivenciar um bocadinho a sala de espectáculos de pernas para o ar, e perceber que a vida não tem de ser sempre igual, e que se calhar ao experimentarmos coisas diferentes conseguimos atingir coisas que gostamos igualmente.”, acrescenta.
Para Branko a maior ambição, face a este projeto e à Covid-19, passa por manter “acesa” a esperança de que um “bom lado disto seja a valorização de uma série de projetos e de música mesmo numa fase posterior.”
Neste contexto, encontrámos, ainda, Tiago Nacarato, viciado em acertar no ponto da sopa, e Bárbara Tinoco, a nerd de jogos de tabuleiro. Os cantautores vão subir ao palco, em dupla, no Campo Pequeno, no dia 8 de dezembro, no âmbito da tour “Passe-Partout”.
Fotografia disponível via facebook Tiago Nacarato
Para ambos, a importância em apostar em artistas portugueses surge a partir do momento em que ainda existe preconceito sobre a música portuguesa. “Acho que há gente que nunca ouviu música portuguesa, e já dizem que não tem qualidade, e que lá fora é muito melhor. Isso é mentira”, afirmam. Para os artistas, apoiar uma banda estrangeira seria só mais um “bocadinho” de preconceito para com a música portuguesa.
Apesar do ano atípico, confessam estar com as expectativas elevadas, e com muita vontade de tocar. “Melhor que o festival de verão vai ser este festival de Natal”, acrescenta Bárbara.
Em forma de apelo, Tiago Nacarato deixa, ainda, uma mensagem: “O que me faz, a mim, ser músico é querer partilhar coisas bonitas com o planeta, não tenham medo de vir, mais do que nunca estão a ser tomadas as medidas corretas face ao vírus, até pode ser que deste mal todo venha o melhor.”
Dentro destas medidas, Álvaro Covões explica que desenhou um modelo no qual as pessoas não se misturam. “As pessoas entram com distanciamento, sentam-se, estão de máscara, obviamente que à entrada têm de desinfetar as mãos com álcool-gel, não há intervalo, no final pedimos às pessoas para ficarem sentadas e vão saindo sobre as indicações por setor, fila a fila, para garantir que na rua não se encontram todos, e que vão sair calmamente.”
“Mais do que nunca a cultura é segura”, finaliza o diretor.