A ideia de multidisciplinariedade talvez tenha crescido com o capitalismo, mas uma coisa é possível concluir-se com esta entrevista, a Sara Mendes, uma jovem de 25 anos: é a prova de que o ser humano tem muitas facetas e, nesse sentido, “é muito difícil definir-me” e defini-la.
Estudou Artes Visuais na António Arroio e Realização na Escola Superior de Teatro e Cinema, na Amadora. Como trabalho de final de curso, nasceu o filme “Selvagem é o vento”, sobre a relação com a música, retiradas de uma conversa com uma colega, na tentativa de “captar a sensação de se perder numa obra artística que, naquele sentido, era a música”. Diz ter terminado, acidentalmente, numa autobiografia do que sentia no momento, achando, assim, que tinha perdido a ideia original de comparar a intensidade que se transmite quando se fala sobre arte, com a espontaneidade do vento, de chegar, ser e não precisar de apresentar conceitos.
Sara é exatamente esse vento, que diz ter num pote oferecido pelo argumentista com quem trabalhou, que produz e ilustra sem grandes explicações, porque tudo, tal como no vento, “está inerente”.
Na arte encanta-lhe a introspeção, “a sensação do isolamento, da reflexão e da espiritualidade que não tem bem que ver com o religioso”, mas sim, “com uma procura”, e a possibilidade de ver coisas bonitas em tudo, e, por isso, sente-se “uma coleção de experiências, pessoas, conversas e livros que leu”.
Desenha há quatro anos e, “como ganha pão”, trabalha na produção de festivais, tem um perfil no Instagram com ilustrações que realiza, também, porque como em produção, que consiste na criação de condições para que outros artistas possam expressar a sua arte, nas obras, gosta de dar espaço a pessoas.
Como ilustradora colaborou com amigos, o Rimas e Batidas, uma revista digital sobre música, participou no Eco-Learners, um projeto colaborativo que visa compartilhar materiais educativos sobre o meio ambiente, entre outros.
O percurso da artista resume-se na ideia de retirar o que encontra de bonito das vivências, da natureza e de tudo o que for possível, para a construção do que ela mais gosta de fazer – ilustração.
Gerador (G.) – Como surgiu a ilustração?
Sara Mendes (S.M.) - A ilustração surgiu de uma forma muito inocente e sem grande objetivo no último ano de faculdade, através de pequenos retratos que fazia de colegas. À medida que fui desenhando, cada vez mais, fui percebendo o gosto e tempo que dedicava a fazer estes pequenos “rabiscos” e como eles expressavam, de uma forma muito simples, o que estava a sentir e, inesperadamente, chegavam a muito mais pessoas do que qualquer outro projeto conceptual que tivesse feito na escola.
(G.) – Que impacto a formação em cinema teve no desenho?
Sara Mendes (S.M.) - É curioso, porque durante muito tempo tentei separar e afastar a minha formação em cinema de qualquer outra coisa que produzisse, porque senti que era um processo de pensar muito metódico e não fazia sentido no que estava a fazer; quando, na verdade, foi essencialmente a forma de pensar e refletir sobre as coisas que mais trouxe comigo da minha formação. Não sinto que seja de forma direta na ilustração, pois existe uma maior simplicidade e menor conceptualização nos desenhos que faço, mas que vive muito das reflexões sobre tudo o resto e que, de alguma forma, se acabam (ou não — aí caberá a cada um decidir) por refletir nos meus desenhos.
(G.) – Quais são os maiores constrangimentos de se viver da arte?
Sara Mendes (S.M.) - Sinto que, muitas vezes, se menospreza a beleza da simplicidade, para contar histórias ou expressar ideias e sentimentos. Tenho um pouco de receio de tentar conceptualizar e acabar por perder tanto o conteúdo como a minha própria essência na imagem.
A minha incerteza em viver da arte prende-se muito a esta ideia de perder o que faz parte de mim nas ilustrações para poder encaixar uma ideia de um cliente, ou algo que eu sei que vai vender mais, mas não me diz nada. É uma ideia bonita viver da arte, mas, para mim, é algo tão pessoal que prefiro manter o seu registo meio amador e pequeno para ter a liberdade de me expressar da forma em que me sinto mais fiel a mim própria.
(G.) – Que elementos da tua existência se expressam na ilustração?
Sara Mendes (S.M.) - Acho que, de forma consciente ou inconsciente, as minhas experiências, maneirismos e traços se acabam por refletir nos meus desenhos. Eu diria que essencialmente expressam a simplicidade e a procura da beleza e profundidade das pequenas coisas, e, talvez por isso, me perca tanto em detalhes. Outras vezes, tal como na vida, são apenas coisas que sinto no momento e poderão não significar nada para além do que me saiu na altura para o papel.
(G.) – O facto de não teres um perfil pessoal no Instagram, tem que ver com o medo de perderes a tua essência enquanto artista?
Sara Mendes (S.M.) - Acho que tem mais que ver com o não querer expor-me pessoalmente tentando construir uma imagem minha que não é verdadeira (mesmo que de forma não intencional). E, no fundo, esta plataforma é um espaço de partilha e conexão e, como sinto que não é muito transparente para com as pessoas e a sua essência, acho que se torna num sítio mais produtivo no que toca à partilha de trabalho e arte, porque nunca procuramos um reflexo genuíno da pessoa, mas o que esta quer transmitir.
(G.) – As questões sociais, como a causa LGBTQIA+, feminista, antirracista e de sustentabilidade, estão muito presentes nas tuas obras. Qual é o propósito da tua obra?
Sara Mendes (S.M.) - A questão da sensibilização é complicada, porque não sinto que tenha as ferramentas ou conhecimentos, muitas vezes, para abordar a profundidade e complexidade de muitas questões e transmiti-las de forma a criar mudança real nas mentes das pessoas. Mas posso contar pequenas histórias, tanto de personagens que nascem na altura no papel como de pessoas que admiro que têm muito para nos ensinar e contar. James Baldwin, que adoro, tem uma frase muito bonita que diz que o nosso sofrimento não tem precedentes até lermos e descobrirmos que as coisas que nos atormentam mais são as coisas que mais nos conectam uns com os outros. Acho que, no fundo, o meu objetivo é tentar de uma forma muito humilde criar essas pontes entre as pessoas e contar histórias que possam chegar de alguma forma a alguém que nunca se identificou com o que mostro até ao momento ou alguém que se identifica, mas nunca se tinha visto representada antes.
(G.) – Quais são os projetos que desenvolveste com a ilustração?
Sara Mendes (S.M.) - Ainda sinto que estou muito numa fase inicial e, portanto, ainda não explorei muitos projetos, especialmente pessoais, mas sinto que o primeiro foi a captação de uma residência artística — do programa colaborativo cultural Tandem , que fiz por vários meios incluindo vídeo e ilustração e tive bastante liberdade para representar o que experienciei e observei tentando contar a história, depois, por imagens. Mais recentemente, experimentei uma primeira tentativa de pequena zine com um artista e amigo, João Lopes, chamada “Devorar Ilusões, Acordar da Primavera”, na qual cada um conta uma pequena história de quarentena, das formas que encontramos para lidar com os obstáculos e as lições que tiramos dessas experiências. O último projeto, “Eco-Learners”, que fiz está mais ligado com a sustentabilidade e a interseccionalidade, e foi feito em colaboração com o ambientalista e educador, Isaias Hernandez, pegando nos seus conteúdos educacionais e dando-lhes uma nova vida imagética e abrangente para mais pessoas, de todas as faixas etárias e percursos de vida, tentando apresentar conteúdos, por vezes densos, de uma forma mais simples.
(G.) – Quais são as tuas referências?
Sara Mendes (S.M.) - Interessa-me muito histórias — e talvez por isso tenha tanto apreço por ler—, mas também em saber sobre as pessoas, sobre as suas experiências e o que as tornou elas próprias. No fundo, interessa-me a procura, o percurso, as aprendizagens e reflexões — seja de que forma isso se possa expressar, seja numa conversa de café que tive com um amigo a uma frase poética de Virginia Woolf ou Maya Angelou.
(G.) – Como se apresenta, para ti, o futuro?
Sara Mendes (S.M.) - De muitas formas, na verdade, porque continuo sempre à procura do que quero dizer e como o fazer. Mas espero que com mais projetos, que possam sempre procurar novas histórias e criar novas pontes entre pessoas. Procurar também mais ligações com o trabalho dentro da sustentabilidade, no qual me tenho debruçado cada vez mais e de que forma isso possa refletir-se nas imagens que produzo.