A visão liberal sobre a cultura e a sociedade parece libertadora. Afinal, soltam-se as amarras da intervenção do Estado, com as suas burocracias, as suas hierarquias, as suas complicações ou as suas imposições de gosto. Na vasta arena que é o mercado, oferecem-se os talentos, como se de um grande piquenique se tratasse. Os criadores levam as iguarias devidamente preparadas e os comensais escolhem o que lhes parece saber melhor. Existiria como que um ajustamento “natural” entre oferta e procura, a criação e a recepção. O espírito do tempo, aliás, é extremamente favorável ao imaginário ilusoriamente libertário. A Iniciativa Liberal, por exemplo, fala “em devolver o poder às pessoas”, slogan que, assim descontextualizado, facilmente se confunde com um desejo emancipador de devolver a autonomia a cidadãos agrilhoados, sem voz, oprimidos. Gritava-se “Power to the people” nas ruas dos EUA ou da África do Sul porque as minorias não tinham acesso à educação, ao emprego ou ao reconhecimento da sua dignidade – negada, já agora, pelos ultraliberais de antanho, que sempre foram tão “ousados” na desregulação económica como no autoritarismo musculado que nunca se coibiram de usar, implicando todos os dispositivos de violência do Estado. Convém lembrar sempre isto aos liberais fresquinhos e modernaços: os vossos arautos da Escola de Chicago serviram com prazer e proveito a ditadura de Pinochet que matou, violou e torturou. Não quiseram saber, estavam demasiado ocupados a aplicar o receituário ideológico e, já agora, a encher os bolsos pelos serviços prestados. Hoje, o Chile é um país desolado, assolado pelo desemprego, sem serviços públicos de qualidade e com um sistema de pensões falido porque os Chigago Boys investiram tudo no casino da bolsa. “És liberal e não sabias” explora a tábua rasa ideológica que a despolitização dos assuntos públicos vem insinuando, em favor de um individualismo que exalta todas as tecnologias do ego.
Não por acaso, nos concursos para lugares na docência e investigação universitária nos quais amiúde participo como avaliador venho notando, não sem espanto, como se desenvolveu a “arte do currículo”, através da criação de complexas narrativas sobre si mesmo, capazes de criar uma aura sobre o candidato, uma “imagem”, uma “ideia” falsamente coerente, explorando com minúcia todos os atos que podem merecer uma avaliação (mesmo que aparentemente insignificantes) e tentando transmitir a posse de “competências e atitudes genéricas”, como a “resiliência”, a “imaginação”, a “audácia”, a “polivalência”, etc.
À primeira vista é aliciante. Estimula-se a concorrência entre as pessoas e constrói-se uma amnésia sobre tudo o resto (as enraizadas desigualdades de acesso aos mais variados bens e serviços). No final, há uma espécie de happy end: os melhores vingam, os piores (os “sem talento”, “sem iniciativa”, “falhados”) soçobram justamente, vitória da harmonia celestial.
Vejamos melhor o caso da cultura através de exemplos caseiros. O liberal Rui Rio, quando foi presidente da Câmara do Porto, suspendeu os apoios aos “subsídio-dependentes” com o argumento da neutralidade do poder local. Contudo, não se coibiu de favorecer a cedência do Teatro Municipal Rivoli à companha de teatro Comercial de Filipe La Feria em termos muito vantajosos para este último, a quem eram esquecidas as rendas e a quem se comprava bilhetes. Sob o manto da não intervenção, a Câmara favorecia quer um estilo, um género e um padrão de gosto (pois o encenador monopolizou a ocupação do Rivoli), quer a ausência de liberdade de escolha, dado o monolitismo da oferta. Da mesma forma, ao apoiar generosamente os programas de música pimba da Rádio Festival, a ponto de convidar o então Ministro Pedro Roseta para um pezinho de dança, Rui Rio oferecia às populações mais carenciadas aquilo a que elas já tinham franco acesso – o reportório pimba.
O liberalismo (na cultura, na sociedade) é um embuste. Caminha lado a lado com a falta de transparência ao transferir dissimuladamente recursos comuns para os privados (pagando o cheque ensino ou o cheque saúde, por exemplo), explora os ressentimentos de uns contra outros, surfa os ímpetos egoístas e narcísicos e é preguiçoso, ao demitir-se de criar as condições para que todas as linguagens, estilos e formas tenham acesso ao espaço público em iguais condições. É claro que a música comercial ou o império Hollywood não precisam de apoio, porque são máquinas feitas para ganhar dinheiro. É fácil, não é barato, mas dá milhões. E deixa as pessoas contentes e distraídas. Mas a criação independente, para chegar às pessoas, necessita de estímulos. Como de estímulos carecem as populações que nunca tiveram oportunidade de se familiarizarem com a dança, o teatro, a poesia ou as artes plásticas. Não se trata de impor uma ditadura do estado ou um padrão de gosto. Trata-se, tão-só, de abrir as portas da esfera pública a todos, em igualdade de circunstâncias. É esse o caldo da diversidade, do confronto, da contradição, do processo coletivo de discussão e formação de gostos. A liberdade só se exerce verdadeiramente se houver alternativas equitativas. O “excitante” discurso do novo velho liberalismo é o cemitério da criatividade: favorece quem já era favorecido (pela educação e pelo dinheiro) e destrói a possibilidade de se aprender pela partilha (ao invés da competição que é autocentrada). Por isso, se és liberal e não sabias talvez seja melhor pensares duas vezes antes de te assumires.
-Sobre João Teixeira Lopes-
Licenciado em Sociologia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (1992), é Mestre em ciências sociais pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (1995) com a Dissertação Tristes Escolas – Um Estudo sobre Práticas Culturais Estudantis no Espaço Escolar Urbano (Porto, Edições Afrontamento,1997). É também doutorado em Sociologia da Cultura e da Educação (1999) com a Dissertação (A Cidade e a Cultura – Um Estudo sobre Práticas Culturais Urbanas (Porto,Edições Afrontamento, 2000). Foi programador de Porto Capital Europeia da Cultura 2001, enquanto responsável pela área do envolvimento da população e membro da equipa inicial que redigiu o projeto de candidatura apresentado ao Conselho da Europa. Tem 23 livros publicados (sozinho ou em co-autoria) nos domínios da sociologia da cultura, cidade, juventude e educação, bem como museologia e estudos territoriais. Foi distinguido, a 29 de maio de 2014, com o galardão “Chevalier des Palmes Académiques” pelo Governo francês. Coordena, desde maio de 2020, o Instituto de Sociologia da Universidade do Porto.