Em qualquer conversa sobre o panorama atual da cerâmica em Portugal é possível que surja uma série de nomes que têm dado o seu contributo para que um dos principais ofícios do nosso país se reinvente. Vitor Reis será, certamente, um desses nomes. Natural das Caldas da Rainha, cidade por excelência ligada à cerâmica, e membro de uma família com três gerações de mestres oleiros, a sua ligação ao barro podia ser a mais óbvia e imediata — mas não foi.
Estudou Artes Plásticas na ESAD, tendo-se licenciado em 2001, e seis anos depois, em 2007, frequentou o curso avançado da Escola Mau Maus em Lisboa. Ainda que o barro, na altura, não estivesse dentro dos materiais que utilizava para se expressar, acabou por perceber quase por acidente que este era o médio ideal.
Se alguma vez te cruzaste com um cocó com asas, uma planta suspensa, um urinol que te faz lembrar do Duchamp ou um carro-vaso, é muito possível (quase certo, na verdade) que também já te cruzaste com Vitor Reis. Com um sentido de humor materializado no barro que já lhe é tão característico, Vitor não precisa de grandes palavras para se apresentar; o trabalho fala por si.
Hoje partilhamos contigo a entrevista que lhe fizemos a partir da reportagem “Cerâmica: mais do que um ofício secular, a metáfora perfeita para a vida”, que podes ler na íntegra na Revista Gerador 27.
Gerador (G.) — Sei que vem de uma família com uma forte ligação à cerâmica mas que esta não foi desde sempre uma área de interesse para si. Quando é que sentiu que este era o melhor médio para se expressar?
Vitor Reis (V.R.) — Sim, embora parte da minha família se tenha dedicado à cerâmica ao longo de várias gerações, até à altura , nunca tinha tido qualquer interesse por este médio. Na verdade, as coisas aconteceram um pouco por acidente: precisava de dinheiro e acabei por aceitar fazer um trabalho em cerâmica e as coisas correram bem. Depois deste trabalho fiquei com os quantos quilos de barro no ateliê e mais algumas ferramentas. Comecei de uma forma desinteressada a fazer algumas experiências, mas quando dei por mim estava a gostar mesmo muito do que estava a fazer e gradualmente comecei a perceber que este seria o melhor médio para incorporar as minhas ideias.
G. — Ainda assim, há alguma coisa que tenha aprendido com o seu avô ou com os seus tios?
V.R. — Na verdade quando estes ainda eram vivos, eu não tinha qualquer interesse pela cerâmica, não queria sequer tocar no barro. O que posso ter aprendido com os meus tios e o meu avô (que se revelou mais tarde de uma forma consciente) foi a paixão e a dedicação que tinham por este ofício. Lembro-me de ser miúdo e de ir à casa do meu tio Armindo, que era uma pessoa muito afável e tinha muitos amigos. Quando tinha visitas prontamente preparava à mesa com comida e bebida. Assim que tudo estava pronto e encaminhado, deixava-os para voltar ao trabalho numa sala ao lado, onde tinha a sua oficina de cerâmica. Ninguém levava a mal.
G. — A visão da cerâmica em Portugal ainda se prende à ideia de ofício?
V.R. — Eu penso que sim, para o "bem" e para o "mal". A cerâmica é à partida um ofício; não penso que isso seja uma coisa negativa. No entanto, a cerâmica pode ser mais do que um ofício, e é nesse sentido que continuo a trabalhar.
A ironia é uma das características mais presentes na obra de Vitor Reis
G. — Tem surgido nos últimos tempos uma nova vaga de ceramistas. Acha que a cerâmica se tem vindo a reinventar, em Portugal?
V.R. — Sei que têm vindo a surgir cada vez mais pessoas a trabalhar em cerâmica — conheço até algumas delas —, mas ainda assim não tenho um conhecimento claro de tudo o que se está a fazer em cerâmica no nosso país. Não querendo desfazer, e embora haja pessoas a fazer coisas interessantes, penso que muito do que aparece de "novo" são, em parte, ecos de aquilo que se está a fazer em outros países, e a que hoje, devido às redes sociais, toda a gente tem acesso. No século XIX, Rafael Bordalo Pinheiro era das poucas pessoas com posses, que poderia viajar e trazer as suas influências, mas hoje em dia todos o podem fazer. Essa é uma das razões pelas quais não quero estar muito atento a tudo o que se faz. Não sou diferente dos outros e tenho receio que isso me influencie demasiado.
G. — Considera-se um artista e um ceramista ou um artista ceramista? O que é que isso implica?
V.R. — Concordo que normalmente essa questão seja um bocado confusa para a maioria das pessoas, o que confesso achar também interessante. Na verdade, para mim é até bastante claro: considero-me um artista que trabalha em cerâmica. "O que é que isso implica?" É uma questão mais difícil, mas também interessante de pensar. Acredito que, mais uma vez, esteja ligado à questão do ofício. O ceramista, de uma forma geral, estará mais envolvido pelas questões que fazem da cerâmica um ofício. Um artista, creio, estará mais interessado em procurar e alargar fronteiras. Provavelmente um artista ceramista será uma junção destes dois (?)
G. — Nota, com o seu trabalho, que a cerâmica tem espaço nas instituições museológicas?
V.R. — Acho que as instituições museológicas estão mais interessadas na componente de arquivo. As exposições de peças contemporâneas estão normalmente a cargo de curadores independentes, que as expõem nos espaços temporários dos museus. Neste sentido, penso que vou ter de esperar por morrer para ver o meu trabalho eventualmente exposto numa instituição museológica.
G. — Acha que as Caldas continuam a ser o epicentro da cerâmica?
V.R. — Sim, é um facto. Percebo que, um pouco como em tudo, a cerâmica tenha tido ao longo do tempo os seus altos e baixos. Mas tem sido sem dúvida (nas suas mais diversas formas) uma atividade constante na cidade — desde os antigos oleiros mais tradicionais a artistas como Manuel Mafra, Maria dos Cacos, Rafael Bordalo Pinheiro, Ferreira da Silva, entre outros. Fábricas como a Secla, instituições de ensino como o CENCAL e, mais recentemente, a ESAD têm sido fundamentais para o impulso e fixação da prática cerâmica na cidade. Hoje em dia alguns dos melhores jovens designers portugueses a trabalhar em cerâmica formaram-se na ESAD e estão fixados nas Caldas da Rainha. Todos estes aspetos conferem à cidade uma dinâmica muito particular.
G. — Qual é o papel que a cerâmica ocupa na cultura portuguesa nos dias de hoje?
V.R. — Estarei provavelmente pouco apto para responder convenientemente a essa pergunta, mas diria que por ser um material de forte e rápido cariz expressivo, possibilita a absorção e transmissão de muito do que será a cultura portuguesa. Por estas razões e pelo facto de a cerâmica estar agora mais valorizada, existe uma maior procura desses objetos, o que é positivo.
Vitor produz as suas peças num ateliê nas Caldas da Rainha, cidade em que vive desde os 9 meses
Entre os dias 23 e 27 de setembro decorre a Semana da Cerâmica no Gerador. Depois de te darmos a conhecer uma breve história da cerâmica, cinco fábricas seculares que resistiram ao tempo e a visão de Vitor Reis sobre o ofício que pode (e quer) levar além, seguem-se mais dois artigos em gerador.eu e uma conversa na Central Gerador, no dia 26 às 19h30. A semana da cerâmica, sobre a qual podes saber mais aqui, parte da reportagem “Cerâmica: mais do que um ofício secular, a metáfora perfeita para a vida” integrada na Revista Gerador 27.