Se o tivessem convidado para a direção artística de outro teatro, Nuno Carinhas “provavelmente teria dito que não”, mas ao Teatro Nacional São João não conseguiu dar essa resposta. Passou, assim, entre 2009 e 2018, quase uma década nesse cargo, que vê, garante, mais como “uma missão” do que um emprego. É essa a razão pela qual discorda da decisão recente do Governo de determinar que a escolha dos próximos diretores artísticos dos teatros nacionais será feita por concurso público. “Acho que pode haver um certo descartar de responsabilidade da tutela”, atira.
Foi em meados de setembro que o ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, assinou o despacho que veio estabelecer que os próximos diretores artísticos dos teatros D. Maria II, São João e São Carlos, bem como da Companhia Nacional de Bailado vão ser escolhidos por concurso público, e não, como até aqui, por nomeação do Governo. O objetivo é “separar as escolhas artísticas” das “opções políticas do Governo”, explicou o executivo de António Costa. “É desejável que a política cultural seja protegida do gosto de quem, conjunturalmente, ocupa o lugar de ministro”, salientou ainda Pedro Adão e Silva.
Mas há quem não concorde com estes argumentos. “Não sou fã desta espécie de neutralidade da tutela em relação à escolha do diretor artístico”, sublinha o encenador Nuno Carinhas, que defende que deveria caber ao Governo uma certa responsabilidade na escolha do nome para o cargo em causa.
Nos quase dez anos que esteve na direção artística do São João, garante que nunca sentiu “nenhuma interferência política”, nem do Governo do PS, nem do Governo do PSD. Não vê, por isso, necessidade do distanciamento que agora vai ser implementado. “Ninguém nunca interferiu artisticamente, e essa é a posição correta. Não há dirigismo. Vivemos numa sociedade democrática”, enfatiza o também pintor.
A única condicionante, durante os seus três mandatos, revela, foi o orçamento, sobretudo porque esteve na posição em causa durante o período difícil da crise financeira e da intervenção da troika.
Aliás, recordando esses nove anos passados no teatro nacional localizado no Porto, Nuno Carinhas conta que “provavelmente teria dito que não” se o convite tivesse sido partido de outra instituição. Aceitou-o porque “conhecia bem a casa”, “identificava-se muito com o projeto” e com a forma como se trabalhava. “Aceitei ser diretor artístico, porque era o Teatro Nacional São João. Acho que ser diretor artístico não é um emprego, é uma missão”, afirma. “Sabia que estaria num dos melhores teatros da Europa”, lembra ainda, insistindo que jaz aí o perigo dos concursos públicos, isto é, quem entrar na corrida não precisará, necessariamente, de conhecer “a casa” a que se candidata, nem “a sua história e os seus compromissos”.
“Há objetivos muito específicos, que têm de ser perseguidos”, frisa, reconhecendo que as condições financeiras “determinam muito do que se pode fazer”. No seu caso, os três mandatos que cumpriu tiveram como pano de fundo um país em dificuldades. “Tivemos de reformular toda a nossa maneira de estar”, observa.
Nuno Carinhas assegura que a sua prioridade, nesse período, foi ajudar as companhias de teatro independentes que estavam à beira de pararem a sua atividade com a crise. “O teatro tem de estar atento ao que se está a passar à sua volta”, realça. E foi assim que o São João se tornou “dos primeiros a fazer coproduções”. “Os desafios foram severos não só internamente, mas também porque resolvi empenhar-me em coproduções com as companhias à volta”, salienta.
Saiu em 2018, num momento em que o país já respirava com maior alívio, com a sensação de dever cumprido.
Teatro São Carlos será o primeiro a testar novo modelo
O Governo conta ter no terreno ainda este ano o novo modelo de escolha dos diretores artísticos dos teatros nacionais, e o Teatro Nacional São Carlos será o primeiro a testá-lo: o concurso será lançado até ao final de 2022, estando previsto que o novo nome seja selecionado entre abril e junho de 2023.
Hoje consultor e produtor criativo por conta próprio, Patrick Dickie ocupou até 2019 precisamente esse cargo. Esteve na direção artística do Teatro São Carlos durante quatro anos, identificando como maiores desafios associados a essas funções não só o orçamento, que foi sendo “reduzido ano após ano”, mas também a degradação da relação entre o Ministério da Cultura e o Organismo de Produção Artística (OPART) responsável pela gestão do teatro. Foi isso, lembra, que levou às greves do verão de 2019, que serviram de cenário ao seu pedido de demissão “por razões pessoais”. Ainda assim, o também dramaturgo leva como vitória, conta, a qualidade e diversidade do trabalho que deu ao público e as parcerias que firmou, e que resultaram em vendas recorde de bilhetes.
Já sobre a direção artística do teatro, Patrick Dickie, à semelhança de Nuno Carinhas, escolhe a palavra “missão” para descrever essas funções. “A missão passa por ser um colaborador das forças artísticas da casa – a Orquestra Sinfónica Portuguesa e o Coro do Teatro São Carlos –, ajudando-as a fazerem o melhor trabalho que conseguem, em prol do público”, sublinha. E apesar dos desafios, o produtor criativo garante que “adorou a posição”. “Foi uma oportunidade única e gratificante. Ser capaz de apoiar os artistas é um privilégio”, enfatiza.
Ao contrário de Nuno Carinhas, Patrick Dickie concorda com a mudança feita agora pelo Governo, a bem da transparência. Ainda que assegure que não tenha sentido qualquer pressão política direta durante o seu tempo no Teatro São Carlos, diz que passar a escolha para um processo de concurso público é uma “boa ideia”, até porque dará mais poder a quem lidera o teatro, “o que é desejável”, remata.