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“Silêncios e tanta gente”: o espetáculo em que as vítimas de tráfico humano ganham voz

A sala está escura, mas conseguimos sentir a presença de quatro vultos. Em cada canto…

Texto de Andreia Monteiro

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A sala está escura, mas conseguimos sentir a presença de quatro vultos. Em cada canto do palco vemos uma mala que, por si só, inicia o relato de histórias muitas vezes escondidas. Quatro corpos deambulam mecanicamente, iluminados por lanternas, ao ritmo de uma voz que nos introduz ao tema da noite – o tráfico humano. “Queremos contar o que está nos bastidores das vidas destas pessoas”, ouvimos. Os corpos param. À vez, e envergando um sorriso, cada um vai apresentando episódios felizes que preencheram as suas vidas, mostrando que, por detrás de um sorriso, há um mundo por desvendar.

Foi numa coprodução entre a Boutique da Cultura e o Movimento Democrático de Mulheres (MDM) que surgiu o espetáculo “Silêncios e tanta gente”, perseguindo a missão da primeira em colocar a “Cultura ao serviço da Cidadania” e da segunda em “dar vida à vida de vítimas de tráfico humano” podendo “escutar, de facto, as suas vozes, sentir o seu sentir, quebrar o veneno da inevitabilidade e agir”.

O contacto com as diversas histórias de tráfico humano, que “estão depositadas nas Nações Unidas”, chegou através da MDM. Sandra Benfica, dirigente da MDM, fez o seu levantamento de forma a que se construísse, posteriormente, o espetáculo mantendo o cuidado de não se deixar a verdade comprometida e de ser fiel à voz das vítimas na forma de contar a sua própria história, aqui através de personagens, assim como incluir elementos para além do abuso. “As vítimas de tráfico são pessoas como nós, portanto têm uma história, um passado, um contexto”, pelo que seria limitativo reduzi-las a um fragmento das suas vidas como muitas vezes acontece na narrativa destas vítimas, explica Sandra.

Com um título que recorreu ao verso de Maria Guinot, João Borges de Oliveira, encenador e ator, explica que estes são os silêncios “da gente boa, que não quer saber desta temática e vai passando ao lado, e da gente má que se aproveita dos outros silêncios e, ao fim ao cabo, há aqui tantos silêncios e sempre em silêncio. O que queremos é quebrar estes silêncios e pôr as pessoas a falar sobre este tema, que é importantíssimo”. O texto para o espetáculo ficou a cargo de Sandra Benfica, que partilha, desde logo, não ter qualquer pretensão artística. “Eu não escrevo, mas quando o faço tenho de ter algum som ou palavras que me fixem e este texto de Maria Guinot fixou-me muito. Acompanhou-me na escrita desta peça”, explica.

"Silêncios e tanta gente" na Boutique da Cultura

Ao longo do espetáculo, ficamos a conhecer quatro histórias reais — as de Makahiya, Tikirit, Marco e Pablo — que aqui ganham vida nas personagens interpretadas por Joana Tavares, Rita Dias, Ruben Ferreira e João Borges de Oliveira, respetivamente. Desde logo, destacam-se os figurinos criados pela Raquel Albino e Maria Martins. Embora diferentes de personagem para personagem, notamos que as vestes são tecidas pelos mesmos materiais, como se, pormenores à parte, todas as histórias que estariam ainda por narrar, fossem uma só. “O conceito que suporta o desenho de figurinos deste espetáculo é o de que todos somos compostos de retalhos uns dos outros. Todos temos partes de nós mesmos que revemos nas experiências de vida dos outros ainda que essas vivências nos pareçam distantes ou fora da nossa zona de conforto”, explica Raquel. Também as malas de cada personagem carregam uma narrativa que são “o espelho de cada personagem”, desde a mala que acolhe um recipiente com água com que Tikirit poderá, mais tarde, lavar o chão do palco ou promover o ambiente sonoro da história das outras personagens, à mala transparecida por uma grade que nada acolhe no seu interior de Pablo, a mala branca de Makahiya que guarda uma carta iludida ou a mala de Marco que carrega a inocência de uma criança, mas também o desespero de um direito à identidade que lhe foi tirado, personificado no futuro rasgar de páginas da Bíblia que transporta.

Com o avançar da narrativa é duro ultrapassar determinadas declarações, que nos podem parecer ficção, de tão distantes que são da realidade comum, sem que, no entanto, tenham invenção alguma. Marco admite que não consegue “refazer os mil pedaços que morrem dentro” de si. Foi levado para trabalhar “nas obras” e “a obra era um campo de concentração”. Partilha que “até o nome nos é roubado”, e foi aí que ganhou o nome Marco.

Marco, interpretado por Ruben Ferreira

Makahiya conta-nos a história de como “durou 24h até chegar ao Inferno” quando tinha apenas 15 anos. O que começou como uma solução de trabalho para ajudar o pai que estava doente, revelou-se numa “prisão” que se prolongou por 10 anos. Viu a sua virgindade ser vendida, após uma mulher ter enfiado “três dedos na boca do seu corpo” para garantir a sua validade. A partir daí, perdeu a conta dos homens que teve de entreter, que chegavam a ser “20 ou 30 por dia” e dos quais pôde esquecer tudo, menos o cheiro que cada um deixou entranhado em si. “Hoje tenho 27 anos e nunca mais voltei à minha ilha, nunca mais vi os meus pais, mas imagino-os felizes”, partilha.

Makahiya, interpretada por Joana Tavares

Pablo é a personagem que nos revela o outro lado da história. Começando por revelar uma história de abuso quando em criança, conta ainda que aos 16 anos saiu de casa e viu-se entregue à prostituição, sendo violado todos os dias, uma dor que aguentava através do vício nas drogas. No entanto, estava certo de que a sua vida iria mudar e foi quando conheceu Juan que a história se inverteu. “Nos 20 anos seguintes, trafiquei mulheres”, dando-as a bordéis e tratando-as “como gado”. “Não eram pessoas, eram outra coisa, eram putas (...) afinal, há mercado para tudo, até mesmo para cadáveres”, reitera, oferecendo um soco no estômago ao público. Esta é a personagem que nos mostra como “há circunstâncias da vida que levam as pessoas a adaptarem-se. E com isto não estamos a dizer que justificamos aquela atitude ou que a condenamos. É o que é e quisemos trazer o outro lado para o palco — a vítima que se transforma, de repente, no mau da fita”, partilha João.

Pablo, interpretado por João Borges de Oliveira

Tikirit foi feita escrava com 10 anos, entregue pelo seu irmão. Ao longo da partilha da sua história sentimos um nó a apertar o nosso coração e o desconforto, que já traz o peso da bagagem herdada das histórias anteriores, vai-se tornando cada vez mais incomportável. Ficamos a saber que, à semelhança da história de Makahiya, a sua nova vida foi inaugurada por moldes semelhantes. Não pôde gritar, por ter a boca tapada, chegando até a pensar que “era a morte”. A partir daí, à “noite esperava de joelhos aquele que era o meu dono”. Fundou a sua vida adulta como sendo “mãe sem ser”, porque lhe fora tirado o direito à maternidade daqueles a quem deu vida. A si, cabia apenas o papel de escrava. O auge da sua dor materializa-se num grito — “não há coisa pior do que nascer mulher, não há!” E assim, reposta uma calma conformada, volta à sua casota.  

Tikirit, interpretada por Rita Dias

As personagens desvanecem, mas os atores ocupam o palco com o seu rosto iluminado por uma lanterna, enquanto ouvimos o bater do coração, acompanhado por um bip de prenúncio de fim de vida. São-nos apontados factos como se de pistolas apontadas à nossa cabeça se tratassem. “E nós, o que fazemos?” A pergunta paira no ar. Na plateia, vemos olhos incrédulos e lavados por lágrimas. No palco, atores que respiram fundo e tentam voltar a si, enquanto agradecem os aplausos.

João, que também teve nas suas mãos a encenação do espetáculo, partilha que o objetivo passa por deixar as pessoas a refletir, porque esta não é uma realidade que se sinta presente. “Mas esta é uma questão urgente de ser falada, ainda para mais agora com a questão dos refugiados. Muitos deles vão ser traficados, porque vamos atrás do sonho e duma vida melhor e, de repente, já estamos envolvidos nos esquemas. Achámos que era muito importante trazer isso para reflexão e consciencializar”.

Este espetáculo é um ato de coragem dupla: a dos espectadores, mas também dos artistas e equipa nele envolvidos. “O risco é gigante ao fazer uma peça destas. Sabemos que não é uma peça vendável, ou para massas. Mas temos a consciência da missão da Boutique da Cultura de passar uma mensagem de cidadania, de civismo. É um tema que sabemos que não é fácil, mas que tem de ser falado. Nada melhor do que, através da arte, através da cultura, através do teatro, passar esta mensagem”, partilha João. O encenador relembra ainda que todas estas histórias são reais e, tal como existem estas, há muitas mais. Mais do que reais, são atuais, pois algumas das histórias que decidiram levar a palco aconteceram apenas há alguns meses.

Em relação ao nosso país, esta não é uma realidade distante. “Portugal é um país de trânsito muito importante onde funcionam variadíssimas rotas de tráfico. É um país de destino de vítimas. Aliás, mesmo durante este tempo de pandemia foi resgatado um número muito significativo de pessoas e desmanteladas redes neste processo, mas é também um país de origem de vítimas. Há portugueses traficados”, afirma Sandra.

Dada a grande afluência que o espetáculo teve, de 22 de setembro a 1 de outubro, foram abertas novas datas — 13, 14 e 15 de outubro, pelas 21h30, no Espaço Boutique da Cultura. Assim, o convite de Sandra Benfica permanece: “Comecemos, então, por escutar as suas histórias: os seus sonhos roubados, a esperança violada, o futuro interrompido. Levai-as convosco, mas não as guardem. Contem-nas aos gritos, se necessário for. Lutem com todas as armas ao vosso dispor. Talvez assim possamos romper silêncios que nos tornam, sem querermos, cúmplices silenciosos de crimes sem fim.”

Texto de Andreia Monteiro
Fotografias de Patrícia Blázquez

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