A cadeira mexeu-se. E eu caí.
A mãe soltou uma gargalhada. Magoou-me mais que as nádegas doridas no chão.
Agora que penso no assunto, foi risível, sim, eu, sem aviso, o assento afundar-se, as quatro pernas de madeira, cada uma para seu lado, em espargata dupla. Lindo.
Impossível esboçar gestos diferentes daqueles na queda na infância, outras coreografias, quero dizer. Mudar o registo. O máximo que posso é alterar a maneira como olho para ele. A cadeira quebrada, eu estendido, a mãe divertida. Assim será para todo o sempre.
Lembro a irritação do momento. Agora, rio-me, não como a minha mãe, que foi espectadora direta, rio-me como espectador pretérito de mim e da situação. O Jorge a olhar para o Jorge. O Jorge agora. Agora. Agora já passou. O Jorge de há bocadinho. Também já passou. Uma sangria desatada, é o que é, a sequência dos segundos, dos minutos, das horas.
Apesar de tudo, hoje, se me sento, quando me sento, não penso que a cadeira se vai quebrar.
O reflexo pavloviano guardo-o para a antecipação do sabor dos pastéis de Belém. Ainda estou em Alcântara e sinto o crocante da massa, o odor da manteiga queimada a sair dos fornos que se espalha pelas salas, o calor das caixas oblongas dos acabadinhos de fazer. O Jorge do futuro. Ainda não dei uma trinca mas já sinto na língua o apetite.
Do que aconteceu procuro a saudade, do que pode vir, a ciência. A saudade é tão insinuante, pegajosa, que se cola nas franjas mais escondidas dos dias e das noites e salta sem aviso prévio entre os sonhos e a hora do almoço, amorosa, piegas, íntima, coberta pela dor da ausência. Já se disse tudo sobre a saudade e a sua tradução, claro. Mas não deixa de maçar.
A ciência também maça. A ciência do futuro. Soma-se os acontecimentos presentes, subtrai-se o peso do feito, divide-se os cantos da alma e multiplica-se pelas expectativas. Saia uma conta bem calculada, por favor. É muito bom ter o lápis atrás da orelha, tirá-lo para a continha rápida da equação do amanhã, lamber o carbono da mina para humedecer a escrita e entregar o resultado esperado.
Enfim, é tudo uma enorme maçada.
E eu aqui enfiado no agora, que foi e que há-de ser. Entalado entre a saudade e a ciência. Abano o rabo na cadeira e agito o copo na mão, olhando para o mar como quem olha para uma propriedade agrícola bem lavrada. Agito o copo, reparo no conteúdo, antecipo o sabor, através dos óculos escuros, filtrando a luz, por baixo do chapéu, protegendo do sol, por cima das sandálias, evitando o sal.
Ao lado, uma criança corre atrás de uma bola. Nada mais. Ela e a bola. Uma alegria imensa sem saudade ou ciência. Ri-se, e o riso não tem nem passado nem futuro.
Levanto-me e corro atrás da criança. Seguro-a, engulo-a. Sou a criança. Corro atrás da bola. Rio-me.
-Sobre Jorge Barreto Xavier-
Nasceu em Goa, Índia. Formação em Direito, Gestão das Artes, Ciência Política e Política Públicas. É professor convidado do ISCTE-IUL e diretor municipal de desenvolvimento social, educação e cultura da Câmara Municipal de Oeiras. Foi secretário de Estado da Cultura, diretor-geral das Artes, vereador da Cultura, coordenador da comissão interministerial Educação-Cultura, diretor da bienal de jovens criadores da Europa e do Mediterrâneo. Foi fundador do Clube Português de Artes e Ideias, do Lugar Comum – centro de experimentação artística, da bienal de jovens criadores dos países lusófonos, da MARE, rede de centros culturais do Mediterrâneo. Foi perito da agência europeia de Educação, Audiovisual e Cultura, consultor da Reitoria da Universidade de Lisboa, do Centro Cultural de Belém, da Fundação Calouste Gulbenkian, do ACIDI, da Casa Pia de Lisboa, do Intelligence on Culture, de Copenhaga, Capital Europeia da Cultura. Foi diretor e membro de diversas redes europeias e nacionais na área da Educação e da Cultura. Tem diversos livros e capítulos de livros publicados.