Com o 25 de Abril, o processo em prol da autonomia do arquipélago açoriano ganhou vigor. No panorama conturbado pós-revolucionário, a ideia de criar, nos Açores, uma Universidade ganha corpo em 1975, não obstante, é a 9 de janeiro de 1976 que é fundado o então Instituto Universitário dos Açores. A instituição toma o nome do arquipélago onde se localiza e possui polos em três das nove ilhas dos Açores: nas ilhas de São Miguel, Terceira e Faial. Na altura opta-se por convidar docentes com elevado grau de reconhecimento nas universidades portuguesas, garantindo maior credibilidade à recente instituição regional, mas também como forma de atrair jovens naturais das ilhas de bruma. A Academia, com a missão de servir as necessidades da região, foca os esforços letivos na área de Formação de Professores, conseguindo alcançar mil estudantes, apenas com um departamento em funcionamento e, em 1980, o nome é alterado para Universidade dos Açores.
A Universidade dos Açores dispõe, atualmente, de uma oferta letiva vasta e diversificada, integrada em quatro faculdades, duas escolas superiores e doze unidades de investigação e desenvolvimento, nas áreas das Ciências Sociais e Humanas, da Economia e da Gestão, das Ciências e Tecnologias, das Ciências Agrárias e do Ambiente e da Saúde.
Os Açores revelam-se, muitas vezes, motivo de inspiração para algumas atividades desenvolvidas e constituem, ainda, um verdadeiro laboratório natural em algumas áreas de estudo, como nas ciências naturais e do ambiente, nas ciências do mar e nas ciências agrárias, o que favorece a componente prática do ensino proporcionado, transformando a integrante letiva em experiências memoráveis. Trata-se de uma instituição relativamente jovem no contexto das instituições de ensino superior portuguesas, todavia, conta com um papel fundamental para o desenvolvimento da região e tem sido um dos pilares essenciais para crescimento económico e para a autonomia dos Açores, tornando-se um dos maiores contributos para a qualificação dos açorianos, em particular, e de Portugal, em geral.
É em contexto de desenvolvimento regional, de mudança de paradigma e mentalidades que o corrente ano ficará marcado: após 46 anos e seis mandatos comandados por homens, em fevereiro de 2022 surgem as primeiras candidatas mulheres à liderança da Universidade dos Açores. As primeiras eleições disputadas exclusivamente entre mulheres, onde Susana Mira Leal, a 28 de junho, toma posse como reitora da Instituição.
Numa conversa com Susana Mira Leal, ficamos a entender as ambições, raízes e objetivos da primeira reitora da Universidade dos Açores.


Gerador (G.) — O ensino foi sempre a opção? O que respondia quando a questionavam sobre o futuro?
Susana Mira Leal (S. M. L.) — O ensino foi uma escolha desde cedo. Como muitas crianças, comecei por querer ser professora primária. Talvez por ser essa a primeira referência que tive mesmo antes de ir para a escola. Tinha uma tia professora e acompanhava-a ocasionalmente nas suas tarefas letivas. Na transição para o então ensino preparatório surgiu-me a vontade de vir a ser professora de inglês, língua com a qual me sentia à vontade na sequência de viagens prévias ao Canadá. Foi esse o propósito que me levou a completar a licenciatura em Línguas e Literaturas Modernas – Português-Inglês (ensino de). No quinto ano, durante os estágios curriculares no 3.º ciclo do ensino básico e do ensino secundário, concluí que ensinar português me oferecia uma diversidade maior e mais desafiadora de conteúdos. Tendo de optar profissionalmente, acabei por escolher ser professora de português. Ser professora universitária foi um desafio e uma decisão que surgiu depois. Pode, pois, dizer-se que o ensino foi sempre a escolha, embora me reconheça interesses noutras áreas, como a arquitetura e a decoração de interiores.
G. — Imaginava estabelecer a sua vida nos Açores ou sair da Região era uma hipótese?
S. M. L. — Sou açoriana e nunca perspetivei viver permanentemente fora dos Açores. Tive a sorte de encontrar aqui quase tudo o que preciso para me sentir feliz e realizada: a família, o amor, os amigos, a profissão e a segurança e a qualidade de vida que aprecio. Sair é uma opção refrescante, mas sempre temporária, seja em formação, trabalho ou lazer. Não sou telúrica, mas sou capricorniana, gosto de um porto de abrigo. O meu porto de abrigo é os Açores, e esse horizonte de lonjura que o Atlântico me dá é sempre promessa de partida. Os Açores oferecem-me cada vez mais, e eu sinto um prazer crescente em viver aqui. Mas não haja ilusões. A geografia e a geologia dos Açores são desafiadoras, e trazem limitações e custos. Entristece-me que muitos tenham tido a necessidade de sair daqui para melhorar de vida. Tenho grande parte da família emigrada e hoje vejo a minha filha partir. Mas inspiro-me na coragem, na resiliência e no sentido de sacrifício destas gentes e cultivo os valores do trabalho, da persistência e do empreendedorismo de que dão testemunho.


G. — Como surge a Universidade dos Açores na sua vida e que papel desempenhou para si ao longo dos anos a instituição?
S. M. L. — A Universidade dos Açores (UAc) foi a porta que abri para o meu futuro. Concluí a licenciatura em 1994. Poucos anos depois, voltei para frequentar o mestrado em Supervisão lecionado na UAc pela Universidade de Aveiro. Quando me candidatei, não tinha grande expectativa de entrar. Eram poucos os cursos de mestrado em Educação na altura e as candidaturas muito competitivas. Mas entrei e foi uma experiência fantástica de aprendizagem e convívio profissional com colegas professores mais experientes e de várias áreas disciplinares. À data, fui desafiada a concorrer a uma vaga para assistente estagiária no Departamento de Ciências da Educação e fiquei em primeiro lugar. Deixei o lugar de quadro que tinha no ensino secundário e abracei uma nova carreira, cheia de incertezas e exigências. Mas fiz a opção que o meu coração ditou e provou ser uma escolha acertada.
G. — Como surge a oportunidade de integrar a equipa reitoral da Universidade dos Açores por dois mandatos e, em seguida, assumir funções de reitora?
S. M. L. — O meu percurso na UAc tem sido atravessado por desafios e oportunidades. E não me tenho furtado nem a uns nem a outros. Era diretora do então Departamento de Ciências de Educação quando fui convidada em 2014 para pró-reitora para as Relações Externas, Sociedade e Formação Complementar. Confesso que o convite me apanhou de surpresa. Não conhecia pessoalmente o reitor nem tinha estado envolvida no apoio à sua candidatura. Talvez por isso tenha valorizado mais o convite. A bem da verdade, foi algo que o reitor me disse em entrevista que determinou a minha decisão. Após quatro anos de exercício e de verdadeira entrega e sentido de missão, convidou-me a continuar, desta feita como vice-reitora para a Comunicação, Relações Externas e Internacionalização. Nessa altura, aceitei sem hesitação. Sentia que a minha missão na reitoria ainda não terminara e os novos desafios inspiravam o entusiasmo e o sentido de compromisso de sempre.
Volvidos mais quatro anos, o incentivo para me candidatar a reitora não me apanhou de surpresa, mas não foi uma decisão simples ou imediata. Após oito anos de entrega e de algum sacrifício pessoal, familiar e de carreira, tinha outros planos. Mas a decisão impôs-se.


G. — Foram oito anos de reitoria e avizinham-se mais quatro, no mínimo. Não sente saudades das aulas, dos alunos, da partilha?
S. M. L. — O tempo é um dado muito relativo na nossa vida. O tempo cronológico não coincide com o tempo psicológico. No início do primeiro mandato, o anterior reitor disse que passaria depressa. E estava certo. Quando fazemos aquilo de que gostamos, o tempo é efémero, nunca suficiente para tudo o que pretendíamos fazer. Sinto naturalmente falta das aulas e do contacto direto com os alunos na sala de aula, de investigar e partilhar conhecimento na minha área de especialização, mas procuro manter o contacto através da orientação de dissertações e da participação nas atividades associativas promovidas pelos estudantes. Retiro muita satisfação do contacto que tenho com os estudantes e procurarei sempre fazer o melhor por eles na sala de aula como na reitoria. Há muitas formas e meios de partilha.
G. — Que missão pretende ter perante a Região?
S. M. L. — Essa é uma pergunta exigente e difícil de responder em poucas palavras sem cair em generalizações ou lugares-comuns. Volvidos 47 anos de autonomia, os Açores enfrentam ainda grandes desafios ao nível social, cultural e económico. A sua circunstância ultraperiférica e insular, a elevada dispersão territorial, a reduzida densidade populacional e os elevados níveis de insucesso e abandono escolar são desafiadores. Em 2019, apenas 9 % dos jovens entre os 18 e os 22 anos de idade frequentava formação superior, comparativamente com 39,5 % no território continental. São poucos, muito poucos. E muitos menos seriam sem a Universidade dos Açores. Como muito menor seria o nível de qualificação dos açorianos.
Tive a sorte de os meus pais reconhecerem o valor do estudo e de encontrar na Universidade dos Açores a licenciatura que pretendia tirar. Como tantos jovens açorianos, se não tivesse aqui esta oportunidade dificilmente teria feito formação superior. Estudar fora não era opção para uma filha de pais conservadores, sem família no continente e com meios financeiros modestos. A Universidade dos Açores fez a diferença na minha vida e tem feito a diferença na vida de tantos e tantos jovens e adultos que, como eu, não podem, não querem ou preferem não estudar fora. E isso tem aportado inestimável valor à região. Como valor tem aportado o conhecimento aqui produzido sobre a região.
Sendo certo que a Universidade dos Açores é uma instituição nacional e que o seu desígnio internacional é crescente e imperativo, quando perspetivo o seu desenvolvimento penso sempre em como pode contribuir mais e melhor para o desenvolvimento desta Região. A estratégia desenhada passa assim pelo reforço do contributo da UAc para a qualificação dos açorianos e a coesão
territorial e social da região através do ensino à distância, da oferta de formação pós-graduada mais alinhada com os interesses e necessidade dos açorianos, e do reforço da oferta formativa de 1.º ciclo na área das engenharias e tecnologias para responder a desafios e projetos atuais da região. Ao nível da ciência, a aposta vai para a transferência de conhecimento e a construção de parcerias significativas com o setor empresarial. Em 2020, a UAc inaugurou uma incubadora de empresas de base tecnológica, a InUAc, e a sua transformação e dinamização como um efetivo centro de transferência de conhecimento é estratégica. O tecido empresarial da Região é frágil e de pequena e média dimensão, mas a UAc pode aportar maior valor aos serviços e produtos que oferece.


G . — E perante a comunidade académica?
S. M. L. — Perante a comunidade académica cumpre-me honrar os compromissos assumidos na minha candidatura e a missão e os valores da Universidade dos Açores, agindo sempre no interesse coletivo e em ordem ao desenvolvimento da instituição. Sendo esse o meu propósito, alcançá-lo não depende apenas da ação da equipa reitoral. Nas organizações, não há espectadores, assistentes. Há participantes. Todos ─ estudantes, docentes, investigadores, colaboradores, convidados, visitantes, parceiros ─ têm o seu lugar e o seu papel, e o potencial da Universidade dos Açores, a qualidade do nosso ensino e da nossa investigação, do trabalho que fazemos e da resposta que damos dependem da capacidade, da entrega e da resiliência de todos e de cada um de nós. Motiva-me, pois, reforçar o bem-estar da comunidade académica e mobilizá-la para viver coletivamente a Universidade dos Açores com o entusiasmo e a entrega dos vencedores.
G. – Qual considera ser o maior desafio a enfrentar?
S. M. L. — Os desafios são sempre plurais. Mas, provavelmente, o maior desafio que a Universidade dos Açores enfrenta é o do crescimento financeiro. Não considerado como um fim em si mesmo, mas como o resultado de um conjunto diversificado e exigente de estratégias e ações e como um meio fundamental para alavancar um crescimento sustentável e ambicioso da instituição.
G. — O que significa para si ser a primeira reitora da Universidade dos Açores? Também a Associação Académica da UAc é liderada por uma mulher. Considera que estes factos demonstram um avanço e, igualmente, uma mudança de mentalidades na região?
S. M. L. — Não perceciono o meu género como um fator determinante na minha eleição. Ainda assim, não deixa de ser significativo ter sido a primeira vez que que uma mulher se candidatou ao cargo. Na verdade, até foram duas. Creio que a atual presidente da Associação Académica da Universidade dos Açores também terá sido a primeira mulher a concorrer e a ser eleita. Podem, pois, outras e mais mulheres retirar daqui incentivo para acreditarem nas suas capacidades e trabalharem para assumir posições de liderança e relevo em prol da comunidade. Foi isso que me moveu e é por isso que trabalho com a minha equipa. Não sei se ser mulher determina o meu modo de ser, de pensar ou de agir. Mas certamente a minha ação e liderança refletem quem sou, os meus valores e princípios, a minha história. E ser mulher faz parte dessa identidade e dessa história.


G. — Alguma vez ambicionou chegar onde está hoje?
S. M. L. — Nunca planeei o meu futuro nesses termos. Defino a pouco e pouco as minhas metas e trabalho para as alcançar, com entusiasmo, determinação e sentido de compromisso. Não vivo com o pensamento no momento seguinte, não gosto de sofrer por antecipação, nem olho para trás com saudosismo ou lamento. Vivencio cada etapa com a intensidade e energia que me caracterizam, mas vivo-a internamente de forma serena, procurando atuar de forma competente, empenhada e ponderada, e retirar a maior gratificação pessoal e profissional. O resto vem com naturalidade. Tenho uma ótima relação com a minha família, nutro um casamento estável de 28 anos, os amigos são poucos, mas bons e longevos, e com os colegas, colaboradores e estudantes cultivo sempre uma relação de respeito, profissionalismo e cooperação, que me deixam boas memórias, memórias que espero também cultivar nos outros. Gosto muito do que faço. O passo seguinte faz-se anunciar no tempo próprio e a decisão é tomada oportunamente.