Fui convidada para falar numa conferência sobre assuntos importantes. No palco, havia um par de cadeiras e uma terceira, mais afastada do palco. Nas cadeiras, sentaram-se dois homens: o anfitrião e o único outro convidado. Não havia lugar para mim.
Tive, obviamente, de me sentar no único lugar restante. Curiosamente, era a única mulher. Curiosamente? Ou talvez propositadamente?
Antes de continuarmos: este artigo parecerá maçudo, mas peço a quem me lê que se mantenham por aqui. Tentarei explicar tudo com cuidado para que seja perceptível a gravidade do tema.
O episódio que vos apresentei não aconteceu comigo, mas quem me lê talvez sinta algum desconforto pelo suposto sucedido. Eis o que aconteceu, para quem não tem tomado atenção: Ursula von der Leyen, a presidente da Comissão Europeia, e Charles Michel, presidente do Conselho Europeu, visitaram o presidente da Turquia, Erdogan. Aquando da visita, Erdogan tinha duas cadeiras dispostas: sentou-se numa, Michel foi encaminhado a sentar-se noutra e von der Leyen, sem saber o que fazer, foi encaminhada para um sofá.
O resultado foi uma triste imagem de uma mulher afastada dos homens, num sofá onde talvez se devesse beber chá, enquanto os dois homens tratavam dos assuntos que importavam, no cenário central. Ver esta cena a desenrolar-se foi altamente constrangedor e desconfortável.
Imediatamente, houve inúmeras manifestações nas redes sociais e na imprensa. Por um lado, apontava-se o facto de Erdogan estar a mandar uma mensagem clara à Europa: a superioridade da Turqa. Por outro lado, mencionava-se a questão do género. Se von der Leyen fosse um homem, será que o tratamento teria sido diferente?
A União Europeia afirma que esta não foi uma questão de género, mas sim de falta de respeito pela comunidade europeia. Eu tendo a discordar. Perante a anterior pergunta, tendo a dizer que sim, o tratamento seria completamente diferente fosse von der Leyen um homem.
E porque é que esta distinção aconteceu? Obviamente que Erdogan sabia o que fazia e só se fosse estúpido é que acharia que este gesto não traria repercussões mediáticas.
Para piorar a situação para a Europa, a atitude de Michel deixou muito (demasiado) a desejar. Presenciando a misoginia de Erdogan, Michel não agiu. Não demonstrou qualquer desconforto nem sequer ofereceu o seu assento a von der Leyen – não numa tentativa de cavalheirismo, mas de respeito pelas circunstâncias circundantes. Vejo muitos homens a dizerem que não sublinham o comportamento machista de outros. Assumem até que se sentem ofendidos pela generalização mas, nestes gestos aparentemente menos relevantes, apresentam uma atitude muito aquém do que esperaria. Assim como Michel fez. Se Michel tivesse mostrado desconforto pelo estado de coisas, a História teria provavelmente sido traçada de forma diversa. E escrevo História com um H maiúsculo porque, para a história da Europa e da Turquia, este gesto pode ter sido decisivo. Este momento deverá ser importante o suficiente para que eu o explique às minhas descendências.
Trazendo um pouco de contexto: lembremo-nos que a Turquia saiu da Convenção de Istambul recentemente. Esta convenção obrigava a Turquia a respeitar certas orientações sobre a igualdade de género, nomeadamente no que à violência contra as mulheres diz respeito. No último ano, 2020, houve muitas manifestações na Turquia a implorar que o país se mantivesse na convenção (e até noutros países – por exemplo, na minha página de instagram, procurei abalar as consciências com o hashtag “#PortugalSupportsSistersInTurkey, trazendo para o diálogo o facto de o femicídio estar a aumentar desmedidamente naquele país). Ao sair da Convençao de Istambul, a Turquia deixa bem claro aos seus habitantes e arredores: não podiam estar-se mais nas tintas para os problemas que as mulheres, por terem nascido com vulva, enfrentam no dia-a-dia. Problemas esses que, muitas vezes, lhes custam a vida.
Assisto, tentando manter-me serena, a um aumento de narrativas misóginas na sociedade em que nós, longe da Turquia, nos encontramos. Desde que recebi mensagens desesperadas de amigas turcas, senti que seria uma questão de tempo até que estas questões se tornassem fragmentadoras aqui.
Ao ver a presidente da Comissão Europeia ser recebida e ser posta num lugar tão subserviente, noto que este problemático vírus está a chegar aqui, ao contrário do que muita gente pensava. Acontece sempre tudo lá longe até que, quando nos damos conta, está a acontecer aqui também. E eu levanto a questão: por quanto mais tempo teremos de reivindicar direitos que são nossos e que parecem “mimimi”? Por quanto mais tempo teremos sequer a liberdade para, por exemplo, escrever artigos assim sem que sintamos receio de represálias? O tempo de nos questionarmos e de respondermos é agora.
*Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico
-Sobre Catarina Maia-
Catarina Maia estudou Comunicação. Em 2017, descobriu que as dores menstruais que sempre tinha sentido se deviam a uma doença crónica chamada endometriose, que afecta 1 em cada 10 pessoas que nascem com vulva. Criou O Meu Útero e desenvolve desde então um trabalho de activismo e feminismo nas redes sociais para prestar apoio a quem, como ela, sofre de sintomas da doença. “Dores menstruais não são normais” é o seu mote e continua a consciencializar a população portuguesa para este problema de saúde pública.