“2023 foi um ano excecional, com recordes climáticos a cair como dominós”, comenta Samantha Burgess, vice-diretora do Copernicus Climate Change Service (C3S). No comunicado de imprensa divulgado, acrescenta ainda que “2023 não é apenas o ano mais quente alguma vez registado, é também o primeiro ano com todos os dias mais de 1ºC mais quentes do que no período pré-industrial” e que as temperaturas “provavelmente excedem as de qualquer período em pelo menos os últimos 100.000 anos”. Carlo Buontempo, diretor do C3S, aponta também que os “extremos que observámos nos últimos meses fornecem um testemunho dramático de quão longe estamos atualmente do clima em que a nossa civilização se desenvolveu”. Na conferência de imprensa que acompanhou o lançamento do relatório, o diretor do C3S reforçou precisamente estas ideias: não só 2023 foi o ano mais quente de que há registo como, “com toda a probabilidade, acabámos de passar pelo ano mais quente da nossa história, e muito possivelmente o mais quente (ou dos mais quentes) dos últimos 100.000 anos”.
“Isto significa”, continua o cientista, “que as nossas cidades, as nossas estradas, os nossos monumentos, as nossas quintas, na prática, todas as atividades humanas, nunca tiveram de lidar com um clima tão quente” – simplesmente não existia nada disso “neste planeta na última vez em que as temperaturas estiveram tão altas”. Tudo isto, conclui, “exige repensar de forma drástica a forma como avaliamos o nosso risco ambiental, uma vez que a nossa história já não é um bom indicador do clima sem precedentes que já estamos a viver. […] A menos que consigamos estabilizar rapidamente a concentração de gases com efeito de estufa na atmosfera, não podemos esperar resultados diferentes daqueles que temos visto nos últimos meses. Muito pelo contrário: seguindo a trajetória atual, dentro de alguns anos, o ano recorde de 2023 provavelmente será lembrado como um ano frio”.
Pontos principais do relatório 2023 Global Climate Highlights:
- 2023 está confirmado como o ano mais quente nos registos de dados de temperaturas médias globais, que remontam a 1850.
- 2023 teve uma temperatura média global de 14,98°C (graus Celsius), 0,17°C superior ao valor anual mais elevado anterior, que foi em 2016.
- 2023 foi 0,60°C mais quente do que a média de 1991-2020 e 1,48°C mais quente do que o nível pré-industrial de 1850-1900.
- É provável que em janeiro ou fevereiro de 2024 seja excedido o limite 1,5°C acima dos níveis pré-industriais.
- 2023 marca a primeira vez desde que há registo em que todos os dias num ano ultrapassaram 1°C acima do nível pré-industrial de 1850-1900.
- Perto de 50% dos dias foram mais de 1,5°C mais quentes do que o nível de 1850-1900, e dois dias em novembro foram, pela primeira vez, mais de 2°C mais quentes.
- As temperaturas médias anuais do ar foram as mais quentes já registadas, ou muito próximas das mais quentes, em partes consideráveis de todas as bacias oceânicas e de todos os continentes exceto a Austrália.
- Cada mês de junho a dezembro de 2023 foi mais quente do que o mês correspondente em qualquer ano anterior.
- Julho e agosto de 2023 foram os dois meses mais quentes já registados. O verão boreal (junho-agosto) também foi a estação mais quente já registada.
- Setembro de 2023 foi o mês com um desvio de temperatura acima da média de 1991–2020 maior do que qualquer mês no conjunto de dados ERA5.
- Dezembro de 2023 foi o dezembro mais quente já registado globalmente, com uma temperatura média de 13,51°C, 0,85°C acima da média de 1991-2020 e 1,78°C acima do nível de 1850-1900.
- As temperaturas médias globais da superfície do mar permaneceram persistentemente e anormalmente altas, atingindo níveis recordes para a época do ano de abril a dezembro.
- 2023 viu uma transição para o El Niño. Na primavera de 2023, a La Niña acabou e as condições do El Niño começaram a desenvolver-se, com a Organização Meteorológica Mundial a declarar o início do El Niño no início de julho.
- As temperaturas da superfície do mar elevadas na maioria das bacias oceânicas, e em particular no Atlântico Norte, desempenharam um papel importante na quebra de recordes de temperaturas da superfície do mar globais.
- As temperaturas da superfície do mar sem precedentes foram associadas a ondas de calor marinhas em todo o mundo, incluindo em partes do Mediterrâneo, Golfo do México e Caraíbas, Oceano Índico e Pacífico Norte, e grande parte do Atlântico Norte.
- O ano de 2023 foi notável para o gelo marinho da Antártida: atingiu níveis recordes para a época correspondente do ano em 8 meses. As extensões diária e mensal atingiram os mínimos históricos no mês de fevereiro.
- A extensão do gelo marinho do Ártico no seu pico anual em março foi classificada entre as quatro mais baixas para a época do ano no registo de satélite. O mínimo anual em setembro foi o sexto menor.
- As concentrações atmosféricas de dióxido de carbono e metano continuaram a aumentar e atingiram níveis recordes em 2023, atingindo 419 ppm (parts per million, ou partes por milhão) e 1.902 ppb (parts per billion, ou partes por mil milhões), respetivamente. As concentrações de dióxido de carbono em 2023 foram 2,4 ppm superiores às de 2022 e as concentrações de metano aumentaram 11 ppb.
- Um grande número de eventos extremos foi registado em todo o mundo, incluindo ondas de calor, inundações, secas e incêndios florestais. As emissões globais estimadas de carbono dos incêndios florestais em 2023 aumentaram 30% em relação a 2022, impulsionadas em grande parte por incêndios florestais persistentes no Canadá.
Este serviço que acompanha a evolução das alterações climáticas é um dos vários que integra o programa Copernicus, uma componente do programa espacial da União Europeia e o seu principal programa de observação da Terra, que engloba seis serviços temático (atmosfera, alterações climáticas, emergência, terra, marítimo e segurança). Coordenado pela Comissão Europeia, é implementado em parceria com os estados-membros e várias organizações, entre elas o European Centre for Medium-Range Weather Forecasts (ECMWF), a entidade que opera o C3S e o Copernicus Atmosphere Monitoring Service (CAMS). Para além de boletins climáticos mensais, o C3S publica anualmente um relatório com os destaques climáticos do ano.
Mauro Facchini, chefe da unidade de observação do planeta da Direção-Geral da Indústria de Defesa e do Espaço da Comissão Europeia, explica na apresentação à imprensa que o C3S “dá acesso a uma ampla gama de produtos de última geração que combinam milhões de observações por satélite e in-situ com resultados de modelos para produzir mapas sem falhas, descrevendo o estado do nosso clima em todo o planeta a qualquer hora”. Desta forma, o programa, bem como o CAMS, “contribui significativamente para a informação que apoia a elaboração de políticas baseadas em evidências, tais como os últimos relatórios de avaliação do IPCC”, o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas da Organização das Nações Unidas (ONU). Para além disso, devido às políticas de acesso gratuito e livre, “qualquer pessoa pode utilizar o satélite Copernicus, as observações in-situ, modelos e outros produtos sobre o clima passado, presente e futuro, e transformá-los em informações úteis para a resiliência climática”. Estes dados são conhecidos como ERA5, a quinta geração de reanálise do ECMWF para o clima e condições meteorológicas globais como parte dos serviços do Copernicus.
A NASA também já confirmou a avaliação do serviço europeu: cientistas do Goddard Institute for Space Studies (ou GISS) da agência espacial norte-americana reportaram que 2023 foi o ano mais quente desde que há registo. O relatório apenas “confirma o que milhares de milhões de pessoas em todo o mundo experimentaram no ano passado: estamos a enfrentar uma crise climática. Do calor extremo aos incêndios florestais e ao aumento do nível do mar, podemos ver que a nossa Terra está a mudar”, comenta Bill Nelson, administrador da NASA, no comunicado de imprensa divulgado. “O aquecimento excecional que estamos a experienciar não é algo que tenhamos visto antes na história da humanidade”, conclui ainda Gavin Schmidt, diretor do GISS.
Os dados recolhidos pelo C3S e pelo GISS correspondem a duas das seis bases de dados internacionais a que a Organização Meteorológica Mundial (OMM) da ONU recorre para estabelecer conclusões e orientar medidas. O relatório final State of the Global Climate 2023 vai ser publicado em março, mas a agência especializada da ONU já emitiu um comunicado a validar os alertas dos vários serviços de monitorização climática. António Guterres, secretário-geral da ONU, afirma no mesmo comunicado que as “ações da humanidade estão a queimar a terra” e que o ano que passou “foi uma mera antevisão do futuro catastrófico que nos espera se não agirmos agora”. “Devemos responder aos aumentos de temperatura recorde com ações pioneiras recorde”, defende ainda o secretário-geral.
Algumas curiosidades esclarecidas pelo Copernicus
Como é que é possível medir dados de há 100.000 anos?
Samantha Burgess: “O nosso conjunto de dados remonta a 1940, e combinamo-los com outros centros globais de produção de dados para irmos até ao período pré-industrial de 1850. No entanto, quando combinamos os nossos dados com dados paleoclimáticos e proxy contido no Sexto Ciclo de Avaliação do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, o relatório do IPCC, que foi publicado em 2021, podemos ver como as décadas recentes se comparam aos últimos 125.000 anos. Obviamente, quando comparamos uma era muito bem observada dos satélites com os dados paleoclimáticos, a resolução desses dados é muito diferente. Sabemos que houve dois períodos muito quentes no nosso passado. Houve o período quente do Holoceno médio, há cerca de 6.000 anos, e sabemos que as últimas décadas foram mais quentes do que nesse período. E o último período muito quente foi há 125 mil anos. Assim, através da utilização destes registos paleoclimáticos – que estão contidos em arquivos como núcleos oceânicos, núcleos de sedimentos marinhos profundos, esqueletos de corais, espeleotemas, depósitos de cavernas, anéis de árvores, núcleos de lagos, núcleos de gelo – podemos reconstruir o clima quando esses registos estavam a ser depositados e obter uma visão geral de como o clima mudou ao longo do tempo. No entanto, quanto mais recuamos no tempo, menor é a resolução. Portanto, não podemos dizer, por exemplo, que o dia 1 de janeiro deste ano foi mais quente do que em qualquer altura dos últimos 125.000 anos porque a resolução não é a mesma. O que podemos fazer é observar o que esses registos de dados dizem em termos das temperaturas neles contidas em todo o mundo que, em geral, especialmente quando retrocedemos 100.000 anos, estão na escala centenária ou na escala milenar. Podemos dizer que neste momento estamos mais quentes do que em quase todo esse período, especialmente nos últimos 100.000 anos. A incerteza chega neste último período quente que ocorreu há 125.000 anos.”
Será que está na altura de aconselhar os decisores políticos a pararem de falar em limitar o aquecimento a 1,5ºC como um objetivo alcançável?
Samantha Burgess: A resposta curta é ‘absolutamente não’. Os limites de 1,5ºC e 2ºC foram estabelecidos no Acordo de Paris em 2015, altura em que todas as partes, todas as nações do mundo, se comprometeram a limitar o aquecimento global a 1,5ºC ou, no pior dos cenários, 2ºC acima do período pré-industrial. O IPCC definiu, na altura, qual a temperatura no período pré-industrial, e que ultrapassá-la funciona com média de longo prazo. Logo, não é um dia acima de 1,5ºC, não é um mês ou um ano acima de 1,5ºC, é uma média de longo prazo de 10 a 20 anos, dado que, se a trajetória ainda for crescente ao fim de 10 anos, então podemos dizer que ultrapassamos o limite do Acordo de Paris. É provável que ultrapassemos 1,5ºC, e isso é a física básica do sistema e da quantidade de aquecimento que está bloqueada no sistema. No entanto, a realidade é que cada fração de grau é importante, e sabemos que quanto mais quente a nossa atmosfera, mais quente o nosso clima, mais intensos e mais frequentes são os eventos extremos. Para mim, esta é também uma questão de equidade, e quem somos nós para dizer às gerações futuras o tipo de mundo que elas vão herdar de nós.
Como é calculada a temperatura global do ar na superfície? E é justo considerar as altas temperaturas em determinados eventos de temperatura extrema ao longo do ano como parte da contribuição para a temperatura global anual?
Carlo Buontempo: O principal mecanismo que usamos para observar a temperatura média global é a reanálise climática. Isto pode ser visto como um subproduto do que fazemos na ECMWF todos os dias, que é fazer previsões meteorológicas. E para fazer previsões meteorológicas, inserimos uma quantidade excecional de dados no modelo de previsão meteorológica – estamos a falar de centenas de milhões de pontos de dados recebidos todos os dias. E estes dados permitem-nos constituir o que chamamos de reanálise, que é uma descrição do valor de todas as variáveis físicas para qualquer lugar do planeta. Depois, podemos usar o mesmo mecanismo, e é isso que o Copernicus faz, para reconstruir o clima do passado. E através dessa reconstrução podemos caracterizar novamente todas as variáveis físicas para qualquer lugar do planeta, e podemos combiná-las para obter a média global. Então, se quisermos olhar para a média global no contexto do que tem sido nas últimas centenas de anos, há algumas correções que precisam de ser tidas em conta, e normalmente adicionamos uma compensação nas anomalias para remeter ao período pré-industrial.
Samantha Burgess: De um modo geral, a nossa reanálise global, que cria este mapa sem lacunas, é um produto de grelha de 30 quilómetros. Então, isso usa estações meteorológicas, pega efetivamente todos os dados de observação e combina-os com um modelo numérico de previsão do tempo. Por observação de dados, quero dizer satélites, quero dizer estações meteorológicas em terra, radiossondas na atmosfera e boias no oceano – assim, fazemos medições do espaço, da atmosfera, da terra e do mar. E é por isso que às vezes há uma diferença considerável entre o que relatamos no ERA5 e o que uma estação meteorológica local pode dizer, porque estamos a olhar para uma grade de 30 quilómetros, enquanto a estação meteorológica observa diretamente como está o clima naquele momento e espaço específicos. O que fazemos, no entanto, é comparar o nosso conjunto de dados com todos os outros centros produtores globais, para mostrar não só a variabilidade entre os anos, mas também que estes conjuntos de dados têm uma sintonia muito forte.