“Desde o início de minha transição tenho tido dificuldade em encaixar-me. Ainda não sou reconhecida enquanto mulher trans, quando olham para mim eu percebo isso, é evidente.”
Mulher trans, negra, brasileira, 33 anos.
O feminismo tornou-se uma espécie de extensão de identidade, é super cool dizer que é feminista, parece um broche para ostentar. Feminismo não é uma bolsa da Gucci, mana, é trabalho árduo. Costumo considerar que qualquer movimento político só encontra sentido numa vivência vigilante, no ato, na postura, no comportamento. O feminismo é um movimento político repleto de disputas e contradições, sabemos bem, contudo, nós mulheres cisgénero devemo-nos esforçar em ampliar nosso olhar e alcance, isso inclui estar atenta às transformações sociais e nas interseccionalidades nela contidas.
A produção atual acerca da temática do feminismo nos convida a abandonar os engessamentos das discussões tradicionais sobre género enquanto categoria analítica e consequentemente avançar em produções com as quais dialoguem com a diversidade dentro desse movimento social. Sendo assim, os estudos da interseccionalidade proposta por Kimberlé Crenshaw nos permitem incluir um seguimento tão relevante quanto todos os outros, porém completamente isolado e ignorado, o feminismo trans.
Incluir as intersecções inerentes a diferentes vivências é um caminho de convergência e fortalecimento do movimento feminista como um todo, daí a necessidade em evocar vozes outrora silenciadas visto que é responsabilidade de qualquer momento social considerado sério e comprometido. O feminismo trans possui singularidades relevantes no entendimento desse coletivo extremamente marginalizado e periférico, que clama por reconhecimento, visto que sua legitimidade fortalece e enriquece a luta, ao contrário do que muitas mulheres cis pensam.
“É que você como mulher negra sempre terá dificuldade em entender a vivência de uma mulher trans e negra, é diferente, as violências que atravessam meu corpo são infinitamente maiores do que as violências que atravessam seu corpo, eu posso realmente morrer a qualquer momento e tenho medo, medo constante.”
Mulher trans, negra, de São Tomé, 26 anos.
Foi nos estudos da interseccionalidade e na inclusão da categoria raça a abertura de uma porta para se pensar diferentes vivências de grupos minorizados que puderam tomar posse de suas próprias histórias e, dessa vez, na primeira pessoa. A partir disso, surge uma valiosa oportunidade de reflexão coletiva e de diálogo, acompanhada de pautas em que antes não se colocavam à mesa. A mulher trans enfrenta inúmeros obstáculos, e o maior deles com certeza é a legitimidade em ser reconhecida enquanto mulher dentro do feminismo, por isso surge o transfeminismo.
A categoria género no sentido dicotómico, criou um problema pela sua natureza reducionista fazendo com que mulheres fizessem manutenção da herança patriarcal e indiretamente contribuísse para o aniquilamento de outras existências subjetivas, tudo o que está fora da normativa. O resultado é o tensionamento contraproducente entre o feminismo e o transfeminismo. A invisibilização de mulheres trans nos põe em risco ao passo que corrobora com o determinismo biológico e reduz género a características corporais, esse pensamento empobrece a experiência feminina.
É urgente reconhecer a humanidade de mulheres trans e construir ações para a maior inclusão desse seguimento. Devemos entender por completo que a identidade de género constitui o sujeito e esse direito deve ser assegurado, seja legalmente, seja socialmente. Essa reflexão aqui lançada tem o intuito de tornar a dignidade da vida soberana para que possamos viver com o máximo de liberdade. Todas nós mulheres podemos, hoje, decidir priorizar nosso bem-estar e saúde mental coletivo através da aceitação da diversidade entre nós. Firmemos esse compromisso. Nós por nós.
- Sobre a Shenia Karlsson -
Preta, brasileira do Rio de Janeiro, imigrante, mãe do Zack, psicóloga clínica especialista em Diversidade, Pós Graduada em Psicologia Clínica pela PUC-Rio, Mestranda em Estudos Africanos no ISCSP, Diretora do Departamento de Sororidade e Entreajuda no Instituto da Mulher Negra de Portugal, Co fundadora do Papo Preta: Saúde Mental da Mulher Negra, Terapeuta de casais e famílias, Palestrante, Consultora de projetos em Diversidade e Inclusão para empresas, instituições, mentoria de jovens e projetos acadêmicos, fornece aconselhamento para casais e famílias inter racias e famílias brancas que adotam crianças negras.