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Transfobia em cena

Nas Gargantas Soltas de hoje, Shenia Karlsson fala-nos sobre a intervenção-denúncia da última semana.

Opinião de Shenia Karlsson

©Flávio Tepperman

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“Transfake, transfake!”Gritos do público. 

Entra Keyla, uma travesti imponente, veste apenas uma calcinha preta e botas. De cabelos longos e soltos, invade a cena:

“Tenha respeito por esse lugar, tenha respeito por esse lugar. Gente, boa noite, eu me chamo Keyla Brasil, sou atriz, sou prostituta e trabalho com…”

As cortinas se fecham.

“Não, não não…o que está acontecendo aqui é um assassinato, um apagamento da nossa

identidade como travesti. Por favor não toquem em mim. Eu preciso de três minutos para falar para vocês. Se contrata quatro mulheres, três homens, por que não contratam duas pessoas trans para fazer a personagem?

Sabe por que eu tô chupando pau como Agrado e como Lola? Porque nós não temos espaço para estar aqui nesse palco, neste lugar sagrado. Por que se contratam quatro mulheres e quatro homens e não contratam duas travestis? É por falta de dinheiro? Todo mundo aqui pagou. Eu faria de graça o espetáculo. 

Semana passada eu estava trabalhando como prostituta e um homem me apontou um revólver na minha cara, eu ia sendo morta. 

“Sabe por que eu ia ser morta?” Keyla esmurra o palco.

Por causa disso, por causa disso. Eu queria pedir para a produção dessa casa, para as produtoras que financiam e a produção artística de Portugal, sejam nossos aliados. Não contratem somente mulheres, homens, contratem travestis pelo menos para subir ao palco, para contar a nossa história e as nossas narrativas, porque isso pode custar às nossas vidas. Muito obrigada!”

Keyla é ovacionada pelo público do Teatro São Luiz.

Caros leitores, parece parte de um roteiro mas trata-se da vida real de uma travesti. Sim, aconteceu de verdade,  como se diz por aqui : “a sério”. Imagino a confusão do público ao pensar que talvez tal intervenção fizesse parte do espetáculo, o que seria uma solução artística genial para levantar aquela cena chata que se dava naquele momento. Mas seria pedir demais num país onde a arte é tão convencional e pouco corajosa, sempre mais do mesmo, elencos inteiros monocromáticos e longe de expressar a bela diversidade da sociedade atual. 

A tal intervenção denúncia, revela a realidade de uma brasileira no mercado da prostituição em Portugal, especialmente uma travesti, exposta a todo o tipo de violência devido a sistemática exclusão que tal grupo sofre. Quando adentramos tais realidades não é difícil ouvir histórias de invisibilização, marginalização e desumanização.  Não sou eu uma atriz? Como subalterna posso falar? São tensionamentos produzidos por Keyla Brasil naquele momento, tal como Sojourner Truth e Spivak. 

A autora Patrícia Hill Collins em seu livro O pensamento Feminista Negro coloca em discussão como as matrizes de opressão nos auxilia a estender a reflexão sobre corpos não normativos. O corpo trans é tratado como abjeto, algo a ser escondido, rejeitado e reduzido aos conjuntos de estigmas que ele carrega sem que lhe sobre algum resquício de humanidade. A autora diz:

(...) conjunto de imagens que formatam o controle dos corpos, indo desde a objetificação até os estereótipos lançados pelas instituições sociais que compelem os sujeitos à reprodução dos modelos apreendidos durante os processos de colonização e que se seguem até os dias atuais. (COLLINS,2000,p.69)

Não é uma surpresa que a produção do espetáculo Tudo sobre a minha mãe não considere um erro gravíssimo tratar de questões de travesti sem uma  travesti. São os resquícios da colonialidade, inconscientemente (ou propositalmente, nunca se sabe) reproduz insistentemente o modelo de sujeito universal ignorando outras formas de experiências no mundo e, empurra tudo que não é branco e português para as periferias da vida. 

“Querida, nós estamos aqui a fazer uma espetáculo que defende a vossa causa, um espetáculo que defende a vossa luta….EU não estou a excluir….EU trabalhei com atores trans desde os meus dezoito anos, eu adoro a vossa causa, eu estou pela vossa causa”.

Essa foi a fala no mínimo patética da Maria João Luis, uma mulher branca no esforço de tentar explicar o inexplicável, aliás, como diz Frantz Fanon: “o branco está sempre se auto referenciando”. A transfobia também se dá através da exclusão, querida Maria. A transfobia produz vítimas diariamente. As travestis não são aceitas no mercado formal de trabalho, não tem seus talentos e habilidades reconhecidos, são pessoas que incomodam, que perturbam o ambiente e causam desconforto. Esse é o motivo pelo qual Keyla não sobe no palco. A cisnormatividade é uma doença social que se assemelha a branquidade, no entanto, não há culpados. A fala da Maria João nos lembra aquela máxima: “ Eu não sou racista, tenho amigos negros”. Sabe batom na cueca? Por mais que se esforce, fica difícil contornar essa situação. 

A intervenção de Keyla nos ensina a necessidade da denúncia, são situações que devem ser expostas e ser motivo para vergonha pública. A arte tem um papel político fundamental de fomentar discussões e estimular mudanças, fazer com que as pessoas sejam tocadas profundamente e possam fazer suas reflexões. A arte não pode ser mais do mesmo, não há licença poética para tal postura. As lutas sociais fervem, devemos nos comprometer a cada oportunidade de criar espaços de avanços e nunca de retrocessos.

Deixo minha solidariedade e meu imenso respeito por Keyla e todas as travestis que submetem-se a trabalhos precarizados e colocam suas vidas em risco todos os dias, tanto em Portugal quanto em toda Europa. Vocês são importantes. EU VEJO VOCÊS!

- Sobre a Shenia Karlsson -

Preta, brasileira do Rio de Janeiro, imigrante, mãe do Zack, psicóloga clínica especialista em Diversidade, Pós Graduada em Psicologia Clínica pela PUC-Rio, Mestranda em Estudos Africanos no ISCSP, Diretora do Departamento de Sororidade e Entreajuda no Instituto da Mulher Negra de Portugal, Co fundadora do Papo Preta: Saúde Mental da Mulher Negra, Terapeuta de casais e famílias, Palestrante, Consultora de projetos em Diversidade e Inclusão para empresas, instituições, mentoria de jovens e projetos acadêmicos, fornece aconselhamento para casais e famílias inter racias e famílias brancas que adotam crianças negras.

Texto de Shenia Karlsson
A opinião expressa pelos cronistas é apenas da sua própria responsabilidade.

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