Na Faculdade de Direito de Lisboa no final de cada semestre há orais de melhoria. Demorei uma semana a preparar a minha primeira oral: era de Direito Constitucional I, ia apresentar um tema relacionado com a ascensão do populismo na Europa - estava entusiasmada. Sentei-me na minha secretária, liguei o zoom e fiz a apresentação, até que, ao fim de uns vinte minutos, o professor me perguntou como resolveria o problema do Estado Islâmico.
Não soube responder - balbuciei que o faríamos através da cultura e educação e o meu exame acabou naquele minuto: não era de todo a resposta pretendida. Eu chorei um bocadinho (todos choramos durante este período) e a minha mãe, que tinha estado do outro lado da porta a ouvir, disse-me que estava orgulhosa - ao menos isso.
No dia 8 de Junho a Paula Rego morreu, no dia 22 de Junho morreram os direitos das mulheres nos Estados Unidos da América e no dia 26 de Junho disse aos meus pais que queria mudar de curso.
Quando somos pequenos perguntam-nos o que gostamos de fazer e o que queremos ser quando formos grandes. Disseram-me “Vai para Direito”, ao saberem que os Direitos Humanos me interessavam, e eu fui, convencida que era lá que estava o princípio da mudança.
Estava enganada - Direito é como estar numa torre muito alta a ver, através da janela, as pessoas passar: examina-se o que fazem, criam-se normas que regerão as suas atividades, uns professores dizem que devemos interpretá-las de uma maneira e outros de outras (lutam para ver quem é o rei da selva) e depois criam-se novas normas para novas coisas, num ciclo contínuo.
A mudança, na verdade, está nas pessoas que andam na rua e começa naqueles que as influenciam. O trabalho de Paula Rego é a prova disto: a sua série Untitled de 1998 (comummente nomeada de Abortion Series), onde retrata adolescentes e jovens mulheres a praticarem abortos clandestinos, teve um papel crucial na despenalização da interrupção voluntária da gravidez em Portugal, dando assim a volta à barriga de muita gente.
Desde o início da sua carreira, e vemo-lo nas colagens feitas nos anos 60 (como S. Vomiting the Pátria), transformou o mundo real – cortou-o, desmontou-o, trocou-lhe as voltas – de forma a desmascarar as suas falhas; citando-a “quando eu fazia as colagens, eu fazia os bonecos e depois cortava-os com a tesoura, e essa coisa do cortar, do arranhar e do ferir… é como se eu estivesse a arrancar os olhos de um quadro de Salazar, ou do Arcebispo de Lisboa!".
Hoje, já não precisamos de arrancar os olhos de Salazar, mas talvez fosse bom arrancar os olhos dos juízes Samuel Alito, Clarence Thomas, Neil Gorsuch, Brett Kavanaugh and Amy Coney Barrett - os juízes que votaram a favor da reversão da decisão do caso Roe vs Wade, que estabelecia o direito à interrupção voluntária da gravidez durante os três primeiros meses, nos Estados Unidos da América.
Se me perguntarem qual foi a coisa mais importante que aprendi em Direito, direi que aprendi que a Constituição é um conjunto de palavras e intenções, que podem ser revistas. Infelizmente, os legisladores não são perfeitos e a Lei contém conceitos indeterminados que são interpretados por juízes que não são perfeitos. Mais triste ainda é que Direito é lecionado por professores que dizem (alguns deles), em plena sala de aula, que a interrupção voluntária da gravidez deveria ser ilegal.
É assustador pensar que os direitos que tomamos como garantidos não o são, e enquanto jovem de 20 anos, não tenho grandes expectativas para o que nos espera. Ainda assim, mantenho a esperança e mantenho a resposta que dei ao meu professor: combatemos a opressão com a educação e cultura pois é através delas que formamos o sentido crítico e pensamos na informação antes de a encarnarmos.
Estamos a ser segurados por um fio: esse fio já não é a Paula Rego, mas antes os restantes artistas e os professores e os 365,4 milhões de euros destinados à cultura (só, apenas). Querida mãe e querido pai, não, não vou abandonar o curso: cada vez mais são precisos artistas em Direito.
Fica aqui um excerto da entrevista feita a Sophia de Mello Breyner Andersen pelo Jornal de Letras em 1982, “(…) quando estava na Assembleia Constituinte tive uma experiência importante. Saí um dia mais cedo e atravessei o Bairro Alto a pé. Na rua havia um pequeno grupo de crianças a brincar na soleira de uma porta. E chamaram-me e perguntaram-me se eu era a Sophia de Mello Breyner Andresen. Eu disse que sim, mas como é que elas sabiam? Elas responderam que a professora estava a ler uma história minha na aula e tinham visto um retrato meu. Fiquei a conversar com as crianças – e pensei, de repente, que escrever era a minha verdadeira participação política.[1]”
[1] https://purl.pt/19841/1/galeria/entrevistas/f1/pag1.html
-Sobre a Noa Brighenti-
Noa Brighenti começou por colecionar conchas e cromos aos 6 anos. Com 9 recitou o seu primeiro poema, teve o seu primeiro amor e deu o seu primeiro concerto no pátio da escola. Fartou-se dos museus aos 13, jurou que nunca mais pintaria aos 14 e quando fez 17 desfez este juramento. Com 20 anos, coleciona gatos e perguntas. Pelo meio, estuda Direito na Faculdade de Direito de Lisboa, anda, pinta e lê. De vez em quando escreve — escreve sempre de pé.