Saí de casa da minha mãe para alugar um quarto a dois quarteirões dali, do lugar onde cresci. Queria ficar por pouco tempo para eventualmente agarrar novas oportunidades (lá fora, cá dentro, quem sabe?) mas, curiosamente, as minhas decisões acabaram sempre por me empurrar noutro sentido. Enquanto colegas de casa iam e vinham, acabei por ficar naquela casa cinco anos, coleccionando tantas memórias quanto possível que se materializavam em detalhes pitorescos pela casa fora. Fui tendo crescente dificuldade em separar a paixão pela ecologia e pela sustentabilidade com a tendência para acumular – poderá ser uma herança de família, mas é também uma forma de lidar com o medo de perder.
Penso muito em praticar o desapego. Alimentei tanto o medo de me apegar, que acabei por fazê-lo com demasiada intensidade nas coisas que não importam. Os meus armários, móveis e despensa estavam entupidos de tralhas e mais tralhas e eu sentia-me bem com ela ali, porque deitá-la fora era um exercício desconfortável, doloroso.
Tendo muitos problemas estruturais típicos de uma casa antiga de Lisboa, a casa começou a tornar-se decrépita a um ponto muito pouco saudável e foi-me difícil reconhecê-lo. Racionalmente, sabia que tinha de sair dali, mas passeava-me pelos anúncios de casas para arrendar e nunca nada era ideal para mim, ou nunca nada me parecia acessível. Quanto mais queria sair dali, mais me custava imaginar-me noutro lado qualquer. Parecia que estava fisicamente grudada àquele ambiente para sempre.
Quis o destino que o momento de mudança chegasse repentinamente no início deste ano: uma decisão tomada com o coração, com paixão, com vontade, e sem olhar para trás. Uma lufada de ar fresco, no fundo. No entretanto, fui empurrando com a barriga a necessidade de me desfazer de memórias que se tornaram em caixas e caixas e caixas de coisas que “poderão um dia dar jeito”, ou coisas que marcaram um determinado momento.
Agora já estou na nova casa, agora já agarrei várias mudanças que a vida me apresentou, mas também há que deixar ir o que já não é e essa é a parte que me está a atingir como uma bomba. Está a ser um processo no mínimo interessante. Parece que nunca ninguém no mundo teve de lidar com estas questões e que não sou muito boa a “adultar”. Estou baralhada entre o que fica e o que vai, porque tudo o que está naquelas caixas sou eu e eu preciso de mim, de outro modo não sei quem sou.
Já se passaram algumas semanas desde que dormi pela primeira vez nesta bela e acolhedora casa. As caixas continuam ali, na sala, observando-me, como quem me julga pela minha incapacidade de agir. Crio ansiedade e penso que, no meio deste caos de confinamento, receios, perdas, saudades e dúvidas, todos lidamos com alguns fantasmas, que o desapego é necessário e que há problemas maiores na vida.
*Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico
-Sobre Catarina Maia-
Catarina Maia estudou Comunicação. Em 2017, descobriu que as dores menstruais que sempre tinha sentido se deviam a uma doença crónica chamada endometriose, que afecta 1 em cada 10 pessoas que nascem com vulva. Criou O Meu Útero e desenvolve desde então um trabalho de activismo e feminismo nas redes sociais para prestar apoio a quem, como ela, sofre de sintomas da doença. “Dores menstruais não são normais” é o seu mote e continua a consciencializar a população portuguesa para este problema de saúde pública.