Muito dado aos prazeres da mesa como sempre fui, tive contudo sempre algum cuidado em não abusar recorrentemente nem dos comes nem dos bebes.
Obviamente que existiram exceções, algumas das quais, pela anormalidade do ocorrido, foram já relatadas nestas crónicas.
Uma coisa que só me aconteceu uma vez, mas que ficou gravada como lição que nunca mais esqueci, deu-se em Bangkok durante uma viagem em trabalho ao Oriente que se prolongou por quase três semanas.
Tinha vindo com um colega meu, pessoa mais sensata e que me acompanhava no gosto pela gastronomia.
Cansados da longa viagem, já ligeiramente consolados por uma estadia ao balcão do bar do hotel, instalámo-nos num restaurante indiano do mesmo hotel, e pedimos um caril bem apimentado. Ou seja, “very hot” para ver se nos entendiam.
O caril chegou, provámos, e fruto do “andamento” causado pela estadia no bar, achámos que não estava ainda bem forte e mandámos para dentro.
Tornou a vir para a mesa. E foi pela segunda vez para a cozinha a pedir reforço do picante.
Tal foi a insistência que fizemos para que se apimentasse cada vez mais o caril, que o “chef” propriamente dito veio à sala, sorriu para nós e, de braço no ar, deu a entender que iria ele tratar pessoalmente do assunto.
Nessa altura compreendemos que teríamos sido algo imprudentes…
Quando chegou o tacho pela 3ª vez à mesa só comemos por vergonha.
Um jantar inesquecível, acompanhado pelo ininterrupto fluxo de lágrimas pela cara abaixo, e pelos vários jarros de chá gelado que íamos pedindo, para grande gáudio da malta trabalhadora daquele estabelecimento.
Tal foi a alarvice que ficámos o dia seguinte de cama, agarrados ao baixo ventre.
Eu, que ainda abusei mais, perdi o olfacto e o gosto durante 3 dias.
Na mesma viagem fomos dali para Hong-Kong.
Depois de um extraordinário jantar oferecido pelos colegas locais, no Mandarim Oriental, que até meteu o grande tinto italiano Brunello de Montalcino, enganámo-nos no caminho e fomos ter ao bar principal do hotel.
E, já que lá estávamos, sentámo-nos para aproveitar o ambiente. Tratava-se do clássico “Captains Bar” que, viemos a saber mais tarde, era um ícone de Hong Kong.
Recordo-me de que o número de referências na carta de whiskeys era espantosa, seriam mais de cem, de várias origens europeias e asiáticas.
Com satisfação, reparámos que lá estava o nosso amado Lagavullin, uma pérola da Ilha de Islay que, devido ao acentuado gosto e cheiro a iodo, nem todos apreciam.
Seria, decerto, raramente servido naquele lugar, pelo que o chefe do bar (um escocês das Terras Altas) quis saber quem eram os “atrevidos” que tinham ousado pedir um tal whisky.
Ao conhecer-nos decidiu que “estava entre a sua gente!”.
Como resultado só nos deixou sair do bar lá para as três da manhã, sempre a beber whisky e a enfardar ostras abertas por ele, mesmo a tempo de irmos buscar as malas e seguir para o aeroporto para a viagem de regresso.
Foi uma sorte darmos com o avião certo…
Esta foi uma viagem toda ela feita de “gargantas muito soltas”.
-Sobre Manuel Luar-
Manuel Luar é o pseudónimo de alguém que nasceu em Lisboa, a 31 de agosto de 1955, tendo concluído a Licenciatura em Organização e Gestão de Empresas, no ISCTE, em 1976. Foi Professor Auxiliar Convidado do ISCTE em Métodos Quantitativos de Gestão, entre 1977 e 2006. Colaborou em Mestrados, Pós-Graduações e Programas de Doutoramento no ISCTE e no IST. É diretor de Edições (livros) e de Emissões (selos) dos CTT, desde 1991, administrador executivo da Fundação Portuguesa das Comunicações em representação do Instituidor CTT e foi Chairman da Associação Mundial para o Desenvolvimento da Filatelia (ONU) desde 2006 e até 2012. A gastronomia e cozinha tradicional portuguesa são um dos seus interesses. Editou centenas de selos postais sobre a Gastronomia de Portugal e ainda 11 livros bilingues escritos pelos maiores especialistas nesses assuntos. São mais de 2000 páginas e de 57 000 volumes vendidos, onde se divulgou por todo o mundo a arte da Gastronomia Portuguesa. Publica crónicas de crítica gastronómica e comentários relativos a estes temas no Gerador. Fez parte do corpo de júri da AHRESP – Associação de Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal – para selecionar os Prémios do Ano e colabora ativamente com a Federação das Confrarias Gastronómicas de Portugal para a organização do Dia Nacional da Gastronomia Portuguesa, desde a sua criação. É Comendador da Ordem de Mérito da República Italiana.