2020 nasceu há exactamente 347 dias no seio de uma sociedade habituada a levar uma vida sem grandes sobressaltos. Filho de um 2019 descontraído e aparentemente saudável, 2020 desponta como um ano encorajador, iluminado pelas ilusórias conquistas económicas do ano anterior.
Desde cedo, logo na sua juventude primaveril, revelou-se, no entanto, bastante diferente de outros anos que o precediam. Começou, lentamente, por alvoraçar terras orientais, sob o olhar desatento e ligeiro dos companheiros ocidentais, até trazer o temor e o pânico diário aos mais desenvolvidos.
Rapidamente se torna um ano com o intento de ser recordado. Demonstra uma enorme vontade, capacidade de adaptação e cobiça desmesurada, fazendo do encontro entre pessoas a sua principal força. E em pouco tempo manda fechar estradas, aeroportos, comércio, escolas, locais de trabalho e, acima de tudo, os afectos.
Será para sempre lembrado com um ano extraordinário. Naquele sentido mais incomum, excêntrico e bizarro, naturalmente. Teve a proeza de ser inesquecível e transformador do futuro, que não tem capacidade de ficar indiferente aos seus comportamentos. Mas será que 2020 também poderá ser evocado como um ano promissor?
Desde logo, alterou a relação com a saúde. A nossa certeza de super-homem, capaz de dobrar os desmandos da natureza, ficou abalada. Hoje temos consciência clara da nossa delicadeza, da capacidade de um mal atingir todos, desinteressado da riqueza e da prosperidade.
Ficou, também, conhecido como o ano que voltou a pôr a ciência na ordem do dia. Em tempos de guerra contra os factos, em que a informação vem de um tweet em letras grandes e a terra voltou a ficar plana, desejava-se o regresso da ciência. E, apesar de continuar a haver quem dela duvide, puxou para si os méritos da vitória no dia em que administra a primeira vacina.
A tecnologia, entretanto, passou a ocupar um espaço central no nosso trabalho e na nossa vida familiar, de uma forma mais consequente. Deixou de ser pertença apenas dos especialistas e tornou-se essencial na nossa vida emocional.
Foi, ainda, um ano que expôs, de forma mais crua, a importância das decisões políticas. Em Portugal, na Europa, nos Estados Unidos ou no Brasil, as opções tomadas tiveram repercussões positivas ou negativas, dependente da arte e dos credos dos políticos. É provável que as pessoas entreguem maior atenção à política a partir de agora.
E, claro, a cultura. 2020 foi intempestivo com a cultura. Maltratou os seus protagonistas, retirou-lhes chão e evidenciou a fragilidade de uma comunidade inteira que tem por missão trazer inspiração, criatividade e esperança para a sociedade.
Mas, também trouxe para cima do palco quem habitualmente está debaixo dele. Técnicos, operacionais, produtores, quem torna tudo possível atrás das luzes, passavam, até este ano, mais ou menos despercebidos do olhar da população. No futuro, espera-se, serão mais valorizados e disporão de maiores oportunidades.
E deu, por fim, uma chance ao ecossistema cultural e criativo de pensar em conjunto, de forma organizada, partindo organicamente das bases, com a criação de processos que podem vir a tornar-se fundamentais nos próximos meses.
2020 não deixa saudades. Mas deixa ambições.
Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico
-Sobre Tiago Sigorelho-
Tiago Sigorelho é um inventor de ideias. Formado em comunicação empresarial, esteve muito ligado à gestão de marcas, tanto na Vodafone, onde começou a trabalhar aos 22 anos, como na PT, onde chegou a Diretor de Estratégia de Marca, com responsabilidades nas marcas nacionais e internacionais e nos estudos de mercado do grupo. Despediu-se em 2013 com vontade de fazer cultura para todos.
É fundador do Gerador e presidente da direção desde a sua criação. Nos últimos anos tem dedicado uma parte importante do seu tempo ao estreitamento das ligações entre cultura e educação, bem como ao desenvolvimento de sistemas de recolha de informação sistemática sobre cultura que permitam apoiar os artistas, agentes culturais e decisores políticos e empresariais.