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Um país contado atrás da porta: criadas de servir

Em 1923, a minha bisavó, Maria Nunes, tinha 13 anos. Nessa altura, o pai havia…

Texto de Raquel Rodrigues

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Em 1923, a minha bisavó, Maria Nunes, tinha 13 anos. Nessa altura, o pai havia emigrado para o Brasil e tinha duas irmãs e um irmão, embora outros dois já tivessem falecido. Mais tarde, nasceram mais duas meninas e um menino, contudo nunca partilhou a morada com estes. Com esta idade deixou a família, que habitava em Fermelã, uma localidade do concelho de Estarreja, distrito de Aveiro, para servir numa casa em Salreu, que ficava a cerca de 5,2km de distância. “Custou-lhe muito sair de ao pé da mãe e dos irmãos, mas tinha de ser”, diz a minha avó, recordando o que a mãe fora partilhando. Porém, passados três meses, a minha trisavó foi buscá-la, ao saber que passava fome. Não tardou a chegar uma proposta de uma família da sua localidade, que tinha mudado a residência para Santarém. Com 14 anos apanhou o comboio, com a direcção que, a partir daí, seria a do regresso, pois não voltaria a Fermelã, senão pontualmente. No centro da cidade, era o centro invisível da casa. Realizava as tarefas que mantinham vivo o espaço onde habitavam três gerações, onze pessoas, seis das quais eram crianças, que também estavam a seu cuidado. Era a única pessoa a desempenhar tais funções. Não havia dias de descanso e o salário ia directamente para os pais, até aos seus 20 anos de idade, sendo descontado o preço dos tecidos para o vestuário.

Na maioria dos casos de estudo de Inês Brasão, presentes na obra O Tempo das Criadas: a condição servil em Portugal (1940-1970), “não sendo determinantes, pré-existem” algumas “condicionantes impulsionadoras da partida”: “morte prematura do pai ou da mãe, entrada na fase legalmente aceite para o início do trabalho (entre os 10 e os 12 anos), necessidade de libertar o número de filhos a cargo, súbitos rompimentos familiares e, também, o «engano».”[1] A investigadora chama a atenção para o facto destes “movimentos internos modernos”, que começaram a ocorrer na década de 30, “terem assumido que as migrações são um destino masculino, precisamente pela relação directa que têm as suas procuras profissionais com a economia formal. Ainda hoje, a difusão de imagens, nos media, dos lugares desertificados enfatizam o despovoamento masculino e a paisagem humana.”[2]

Maria entra nesta longa história de passos silenciosos pelos corredores de um país, onde tantas mulheres não puderam ser meninas. Estavam sem ser. A liberdade de cada idade foi-lhes ceifada e a vida parecia não ser para se viver, mas para se cumprir. Eram elas que acendiam a primeira luz da manhã e apagavam a última da madrugada. Construíram as casas que não foram suas e embalaram os bebés que não pariram. Ficaram com o peso dos que aliviaram. Cada mão soube de cor o chão, atravessado por aqueles que podiam fazer caminho. Porém, cada uma fala a partir do seu corpo. E há corpos que se abraçaram às casas, a partir de dentro.

Em Portugal, nos anos 50, cerca de 39% da população activa do sexo feminino eram criadas de servir. A sua “inclusão generalizada (…) na base familiar atinge o seu auge na segunda metade do século XX (alcançando cerca de 200 mil mulheres representadas nesta categoria) e corresponde ao aumento do interesse pelas oportunidades oferecidas nas cidades, embora ainda se verifiquem fortes traços de um quadro de afiliação servil de cariz pré-industrial na modalidade de trabalho,”[3] afirma a investigadora.

Em 1942, Fernanda Mota tinha 9 anos de idade e vivia nos subúrbios de Santarém. Nesse período, os seus pés já pisavam a terra às 6h00, dando início ao trabalho agrícola. Pouco tempo depois, entrou como empregada de servir numa casa que se situava na mesma zona. Todavia, esse não foi motivo para que não ficasse em regime interno. “Dormia lá num sótão, que era por cima do armazém, onde tinham o azeite. Ela [dona da casa] punha o candeeiro nas escadas para eu ver, para me despir, para me deitar. Depois ia buscar o candeeiro e eu ficava às escuras. Chorei muito de noite. Chorei muito”, recorda Fernanda, já com 87 anos, numa casa donde avista a da última família que serviu, depois de ter passado por outras três. Ao longo da conversa, por vezes, dirige-lhe o olhar, como se naquelas paredes pintadas de amarelo torrado, procurasse as imagens ausentes. Nesta casa, já não dormia sozinha. “Tínhamos quatro camas. Aqui, na quinta, dormia eu, a Silvina e a Alda, e a cozinheira dormia à entrada do nosso quarto.” Também o pagamento do seu salário era entregue directamente à mãe. “Namorava o meu marido, e tinha 19 anos e, ainda o mês não estava pronto, já ela lá ia para receber o dinheiro. Depois, a minha madrinha dizia assim: ‘isso não pode ser. Então, tu não tens nada, namoras um rapaz… Quando casares, o que é que tu levas? A tua mãe tem de se deixar disso.’ Foi então que disse à minha mãe e ela deixou de ir lá buscar o dinheiro.” A madrinha, de que Fernanda fala, era a sua patroa. Os patrões foram os seus padrinhos de casamento. Trata-se de um dos elementos estruturantes das relações entre criados e patrões, que, segundo Inês Brasão, no contexto do período em estudo (1940-70), “tem que ver com o sistema de patrocinato e apadrinhamento, que se sobrepõe às relações de dominação no quadro da condição servil”[4].  Com o casamento, aos 22 anos, a sua realidade laboral, que, na verdade, não deixava nada de fora, altera-se. “A partir do casamento, trabalhei para mim.” O seu sustento passou pelo Mercado Municipal de Santarém e, mais tarde, durante quarenta anos, pelo café, que veio a comprar, com o marido. Contudo, manteve sempre uma relação próxima com esta última família. Pensou, mesmo, em dar o nome da sua madrinha à filha. “Ia a casa da minha madrinha, muitas vezes. À casa dos outros, não ia.” Também, para Maria Nunes, o casamento significou uma transformação completa na sua vida. Aos 26 anos, casou com o sobrinho do patrão, o meu bisavô, que também era empregado na padaria deste, e juntou-se-lhe no trabalho. Inês Brasão refere que o trabalho doméstico ao serviço de patrões, na maioria dos casos, é delimitado “por dois acontecimentos marcantes: (…) começou no início da adolescência e terminou com o casamento.”[5]

Em 1947, Emília Pereira tinha 10 anos de idade e já trabalhava no campo, em Marinhais. Passados três anos, a mãe faleceu. Porém, a violência exercida pelo pai sobre a família manteve-se. A irmã mais velha casou-se e Emília ficou com outra irmã, o irmão e o pai. “Eu era a eira para eles malharem.” Ia todas as semanas para o campo, onde dormia, regressando ao sábado, quando entregava a féria [salário pago por dia] ao pai, que não o geria devidamente, o que aumentava as carências familiares. Recorda um momento: “Ganhava 10 escudos por dia. Ora, eram 60 escudos, ao fim da semana. Entreguei os 60 escudos ao meu pai e ele foi para a taberna. Quando veio da taberna, disse-lhe: ‘Pai, tem de dar o dinheiro à Maria (a minha irmã que estava a governar a casa), para ela ir à loja (não se dizia mercearia) comprar o farnel para eu levar’. Ele diz: ‘- A tua irmã que vá comprar fiado, porque já não tenho dinheiro’. ‘- Então o que fez à minha féria, pai?’ ‘- Gastei 10 escudos na taberna e os 50 emprestei a um vizinho’, (a quem chamávamos o Camocho). ‘- Então, eu andei a trabalhar a semana toda para você dar o dinheiro ao Camocho, que nunca mais lho dá?’”, contestou Emília. Esse foi o seu quotidiano até aos 17 anos, idade com que foi para Lisboa, depois de um episódio em que o pai lhe trazia a morte nas mãos: “Ele bateu-me, fechou-me dentro de casa e corria com uma enxada atrás de mim. Saltei pela janela e disse: ‘Nunca mais entro nesta casa’. Naquela altura não podia fazer aquilo. Era menor. Antigamente, só eramos maiores aos 21.” Foi acolhida pela irmã e pelo cunhado e aí permaneceu um pouco mais de um ano. Levava apenas a enxada para trabalhar e um xaile. “Depois o meu cunhado, que Deus tem, que foi muito bom para mim, foi a casa do meu pai e trouxe-me a roupa. A roupa… tinha duas saias e duas blusas. A gente andava a semana toda com a mesma roupa. Não tenho vergonha de dizer que, quando vim para Lisboa, só tinha duas cuecas.”

Chegou a esta cidade, dois meses depois do seu 18º aniversário, com a ajuda da tia do seu cunhado, que lhe arranjou trabalho como criada de servir, numa família que morava no Restelo. Na verdade, o novo tempo trazia a memória do passado lá dentro. Porém, acordava, muitas vezes, e ficava ali, reencarnada, sob diversas formas e em distintos lugares. Emília instalou-se na arrecadação. O casal tinha três filhos. “A miúda era uma santa, os miúdos eram travessos e a professora era neurótica. Tratava-me mal. Eu tinha as pernas todas negras porque os gajos davam-me pontapés. O senhor era agente da judiciária e era boa pessoa. Tinha de me levantar às 6h00 da manhã, para lavar a roupa no tanque, no quintal… no Inverno, sabe como é… Às 7h30 tinha de ter a roupa lavada, para ir ao pão e os patrões tomarem o pequeno almoço.” De quinze em quinze dias, tinha a tarde de domingo, servindo ainda o almoço e regressando a tempo de fazer o jantar. Decidiu abandonar a casa quando a patroa tentou atingi-la com uma faca. Combinou, com a senhora que a trouxe para Lisboa, um plano para sair daquela casa. “Você telefona logo, à hora de jantar, eu começo a chorar e venho chamar a patroa, para falar consigo, e você diz que eu tenho de me ir embora porque a minha avó está muito mal e as minhas irmãs e a minha tia não podem tomar conta.” Foi encaminhada para uma nova casa. “Era uma senhora, outra professora, já de idade. O marido era senhor tenente. Estive lá dois anos. Essa bateu-me. Uma vez estava a lavar a roupa no tanque…. Já não sei o que ela me disse e deu-me um murro nas costas. O senhor tenente não estava em casa. Ele tinha, ao pé de Águeda, uns terrenos e, no tempo das sementeiras, ia para lá. Eu levantei-me e disse-lhe assim: ‘A senhora não leva o mesmo, porque tem idade para ser minha avó. Se não tivesse, levava. Não pense que eu não sou capaz de lhe dar. Chegando o senhor tenente, vou-me embora.’ Então, saí de casa do meu pai porque ele me batia e, agora, vinha para casa de uma pessoa estranha que me fazia o mesmo?” O patrão insistiu e Emília acabou por ficar, mas fora apenas por dois meses, porque a situação repetiu-se.

Entretanto, já com 20 anos, leva as suas malas para a morada de um casal, perto do liceu Passos Manuel, que tinha um bebé. A senhora era enfermeira e trabalhava por turnos. O patrão não trabalhava e encontrava-se frequentemente alcoolizado. Mas, geralmente, ia buscar o leite ao hospital, onde a esposa estava, para que Emília pudesse alimentar o menino.  “Um dia chegou-se a hora de dar de comer ao menino e ele não aparecia. O que vou fazer? Então, mas o miúdo tem de comer…. Sabe o que fiz? Deixei o menino sozinho em casa. Fui para a paragem do eléctrico, porque ela trabalhava no Hospital CUF, na Infante Santo. O eléctrico não vinha, e eu fui a correr. Agarrei no leite. Ela deu-me dinheiro para voltar de eléctrico, mas nunca mais chegava, e vim a correr de lá. Ele [patrão] chegou à meia-noite. Eu já estava no meu quarto e tinha o menino na alcofinha. Ele entrou no meu quarto: ‘Quero o meu filho’. ‘Saia do meu quarto. Você não está em condições de levar o seu filho. (Antigamente havia umas coisas para pôr as revistas.) Ou você sai daqui, ou dou-lhe com isto na cabeça.’ Naquele momento, entra a senhora. ‘Amanhã de manhã, vou-me embora’,” disse-lhe.

Cansada e desiludida com o que foi encontrando, decidiu regressar à sua terra. Já estava escuro, quando apanhou o comboio no Rossio e, durante quase todo o percurso, foi assediada por um grupo de marinheiros, até dar uma bofetada a um. Foi trabalhar para uma quinta na aldeia de Escaroupim, em Salvaterra de Magos. Mas a sina permanecia ao abrir das mãos. “Outra professora neurótica.” A mesma senhora, Custódia, que tratava de lhe arranjar emprego como criada, em Lisboa, escreve-lhe com uma nova proposta. Regressa a Lisboa e instala-se no corredor, não tendo sequer um quarto, numa casa na Praça Paiva Couceiro. “Sabe o que ela [patroa] me deu a comer no dia de Páscoa? Cabeça de galinha com arroz. O que vinha da mesa era para mim. No dia de Páscoa, quando matei a galinha, era para deitar a cabeça fora, e ela disse para não deitar. Foi isso que veio da mesa.” Depois de seis meses, saiu.

Estando a par de muitas situações de abuso sexual, por parte dos patrões, a determinada altura, recusou-se a “servir em casa de casais mais novos ou que tivessem filhos rapazes, porque faziam o que queriam das criadas.” “Nas estatísticas dispensadas por maternidades e hospitais, esta categoria profissional ocupava o topo referente à práctica da interrupção da gravidez, situação que levava muitas vezes à morte da mãe. (…) Para as criadas de servir que esperavam filhos gerados pelos patrões, a decisão do nascimento significava uma situação de vergonha pública difícil de suportar ao longo da vida. O filho seria considerado ilegítimo, filho de pai incógnito, e provavelmente afastado da mãe. A discriminação entre filhos legítimos e os que «o não eram» só foi abolida em 1976 no código português, e a questão do modelo social da servilidade doméstica não pode ser desligada da moldura jurídica.”[6]

O seu último trabalho em regime interno foi em casa de um casal mais velho e aí encontrou maior conforto. “Quando fiz 23 anos, ele morreu com a cabeça neste meu braço.” Na falta de pais, foram os patrões que lhe “arranjaram casamento”, contra a sua vontade. “Vocês casam, ficam aqui no teu quarto e fazes o comerzinho para ti e para ele”, dizia a patroa. “Mas ela dar-se com o meu marido… e o meu marido dar-se com ela? Saí de lá. Fui morar junto com a minha cunhada. Dormia numa sala, onde ela passava, mais o marido, para ir para o quarto. Estive ali seis meses. Depois, aluguei um quarto, em frente aonde era o Diário Popular. Foi lá onde nasceu a minha filha mais velha. A minha cunhada arranjou-me uma casa para trabalhar a dias. Agora, são empregadas domésticas, mas, antigamente, eram mulheres-a-dias. Aí, fui sempre bem tratada. Os filhos deles é que são os padrinhos da minha filha. Telefono sempre no dia dos anos do menino. ‘- Parabéns menino!’ ‘- Oh Maria Emília… Um menino com 65 anos?’ Não sou capaz de o tratar por senhor doutor. Quando o senhor engenheiro fez 90 anos, convidaram-me para ir lá almoçar com eles.”

Já fora dos serviços domésticos, em casa de outros, a vida continuava no vaivém da sobrevivência. Teve uma mercearia de frutas e hortaliças, passou pelo bar dos bombeiros, trabalhou em dois refeitórios e na cozinha de um restaurante. Uma vez que a reforma é insuficiente, voltou às limpezas, há quinze anos, numa galeria de arte, em cuja porta me esperou para conversarmos, com um enorme molho de chaves de cada recanto daquela que, enfim, chama a sua casa, porque nela encontrou o afecto, que transforma os espaços em lugares.

Em 1976, Delfina Gaspar tinha 12 anos. Vivia na Caranguejeira, uma freguesia do concelho de Leiria, onde ainda reside. Em Junho desse ano, completara o 2º ciclo do ensino básico. Fora a primeira vez, na sua aldeia, que as crianças e os jovens puderam realizar o 1º e o 2º ciclos, através da telescola. Entre estas mulheres, é a única que estudou para além da quarta classe. Mais tarde, completou o 9º ano, através do Sistema Nacional de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (Sistema RVCC). Maria aprendeu a ler e a escrever, ainda em Fermelã, com o acompanhamento de uma senhora, que se dedicava a alfabetizar crianças e jovens. Em 1911, um ano depois de nascer, é publicado o relatório sobre os níveis de instrução, editado pela Direcção Nacional de Estatística, o qual “trouxe a público com indisfarçável perturbação os números do analfabetismo feminino em Portugal. Na maioria dos distritos, considerando o norte e o centro interior, cerca de 85 por cento da população feminina, não tinha desenvolvido quaisquer competências de leitura ou escrita, apresentando vários índices negativos em relação à população masculina. Em 1920, apesar de os números terem descido com alguma expressão, a percentagem do analfabetismo feminino cifrava-se em 72,5 por cento contra 56,7 por cento, relativa ao sexo masculino. É na nota introdutória ao censo extraordinário de 1925, limitado ao inquérito das populações de Lisboa e Porto, que encontramos uma das raras referências ao problema estrutural do analfabetismo. Nessa alocução, é levantada a relação entre o peso esmagador das profissões não qualificadas e subalternas e a reprodução das taxas de analfabetismo.”

Seria em finais dos anos 30 que Fernanda estaria a iniciar a escola. Porém, nunca isso veio a acontecer. De acordo com Maria Filomena Mónica, referida na obra em estudo, o problema da alfabetização, entre 1926 e 1939, derivava da impossibilidade de uma participação assídua nas aulas, devido à elevada mão-de-obra infantil.  Nesse período, registava-se 51,9% de analfabetos, sem distinção de sexos. “Em números absolutos, esta cifra diz respeito a 1449 367 homens contra 2119 864 mulheres. Se avançarmos uma década, o Censo de 1940 fixa um valor de 49 por cento de analfabetos, mas é importante notar que 51,1 por cento deste número é representado por mulheres. Se levarmos em conta as taxas de analfabetismo verificadas a partir do Censo de 1940, a média nacional dos alfabetizados situa-se nos 47,5 por cento (52,5 por cento de analfabetos). Na cidade de Lisboa, o número de serviçais alfabetizados – homens e mulheres – está contabilizado em cerca de 66 por cento (33 por cento de analfabetos). Comparando estas taxas com as declaradas para o grupo profissional das serviçais, estes números dizem-nos que os valores estavam em quase paridade com os valores nacionais, com um diferencial de cinco pontos percentuais em relação ao total nacional e ao total regional (cidade de Lisboa).” Há que ter em atenção que “eram considerados alfabetizados todos aqueles que frequentaram a escola, possam ou não tê-la abandonado antes de atingir o 3º ano de escolaridade.”[7] É apenas no final dos anos 60, que Emília, com 22 anos de idade, completa a primeira classe. Nessa década, “o comportamento deste grupo profissional relativamente à instrução não revelou mudanças drásticas em relação a períodos anteriores. (…) O salto decisivo no processo de democratização do acesso à escola ocorre apenas nos finais da década de 1960”, através de um “esforço na cobertura do ensino primário em número de postos, recursos e equipamentos”, bem como maior controlo das prácticas de abandono escolar. Contudo, “este costume era amparado pelo texto legislativo que estipulava, em 1930, 10 anos como a idade mínima para iniciar uma actividade profissional, e, nos anos 40, 12 anos, tendo regredido para 10 anos (…) na década de 1950.”[8]

No final da década de 60, ocorreu uma mudança de paradigma. “As famílias abdicam da convivência e da permanência da criada no espaço privado, e a casa transforma-se, ela própria, impondo outras regras de uso.”[9] Apesar disso, três meses depois de terminar o 2º ciclo, Delfina já se encontrava nesta espécie de destino colectivo das meninas de famílias mais pobres e, repare-se, tem um ano a mais do que uma das três filhas de Emília. Há lugares onde o tempo não passa pelos corpos e as gerações parecem diluir-se. “Antigamente, os casais que tinham bebés pequeninos, vinham sempre às aldeias à procura de mocinhas para ajudar na lida da casa e tomar conta dos filhos. Como eramos, e somos, sete irmãos, eu sou a mais velha…. Lá ia a menina. A mãe prometia. A patroa ia-nos buscar a casa. Vinha-me buscar ao domingo à noite, e só me trazia no próximo sábado. Eu era uma menina…. Precisava era de amor e carinho, não de ir para casa da patroa. Foi muito difícil, com 12 e 13 anos, deixar a família, com tantos irmãos que tinha…. Certamente que, para a minha mãe, era bastante difícil. Não fui só eu. As minhas irmãs foram a seguir, as quatro primeiras.” Como Maria, há 53 anos, não suportou mais de três meses na primeira casa. “Tinha tantas saudades. Chegava o domingo à noite, e começava a chorar. Não queria ir embora. Lembro-me, tantas vezes, que a minha mãe não tinha pão… (Eu gosto de contar, mas, quando estamos a contar, lembramo-nos e ficamos um bocadinho em baixo.) O meu pai tinha mais vinte anos que a minha mãe.… Não me lembro dele ser empregado. Ele não era má pessoa, não nos batia, mas não conseguia ver que tinha ali aqueles meninos todos, que precisavam de roupa, de comida, de estudar…. Estudar não é como agora. Vínhamos da escola, chegávamos a casa, e já a mãe nos tinha delegado ir buscar, não sei quantos, sacos de erva para as ovelhas.”

Foi nessa casa, em Leiria, que começou a aprender o que os seus próximos anos lhe pediriam. A mãe não a obrigou a ficar. Quando saiu, foi trabalhar para o campo. “Era uma garota muito franzina. Para já, a alimentação não era como hoje. Eramos muito mal alimentadas e tínhamos de puxar muito pelo nosso corpo. Lembro-me de me levantar, sentar na cama e pensar assim ‘Ai, meu Deus, como me vou aguentar com a enxada todo o dia?’.” 

Entretanto, quando Delfina tinha 14 anos, outra senhora fora a sua casa falar com os pais, propondo trabalho em regime interno na sua quinta. Delfina seguiu com quem, hoje, diz ter sido a sua “segunda mãe”. Na quinta, dividia-se entre o trabalho do campo, que era menos duro do que o que até então havia conhecido, e o da casa. Alimentava os animais, matava-os, transportava os feixes à cabeça, lavava a roupa para o Seminário Diocesano de Leiria, ajudava na confecção de hóstias e partículas, a que a patroa também se dedicava e tratava das tarefas domésticas. Uma vez que essa casa também acolhia rapazes órfãos, que trabalhavam no exterior, Delfina, estava encarregue de lhes levar o almoço.” Ia a pé durante meia hora, três quartos de hora, pelo pinhal, até ao local onde estavam a trabalhar. Era a menina, a garota, a empregadita.”

“Quando fui para essa quinta a senhora já me pagava muito bem. O primeiro dinheiro que deu à minha mãe foi 25 tostões. Talvez, aqui, uma senhora no campo ganhasse uns 100 ou 120 escudos. Ganhei para os meus pais, sempre, até aos 23 anos. Ou seja, fui empregada de servir, trabalhei no campo, fui empregada fabril e eram sempre os meus pais que recebiam.” “De acordo com Maria Joannis Baganha, entre 1950 e 1988, as messas representaram 13 por cento das exportações na década de 1960, 25 por cento nos anos 60, 56 nos anos 70 e 45 por cento nos anos 80.”[10]

Durante um curto período de tempo, foi interna na casa dos patrões da fábrica, onde começou a trabalhar aos 16 anos. Também aí se sentia bem. “A patroa começou a ser muito minha amiga. Foi ela que me começou a explicar determinadas… se calhar muitas conversas que não tinha com a minha mãe …. Essa senhora já me dava, por semana, 2800 escudos. Nessa casa também trabalhava de sol a sol. Não havia festa nem descanso, nem hora de almoço. Quando já era de noite, ela dizia-me: ‘Delfina vai andando, porque já está escuro e tens de atravessar o pinhal, e eu tenho medo’. E eu também tinha.”

Entre estas mulheres, Delfina foi a única que deixou de ser interna antes do casamento. Hoje, trabalha como assistente operacional numa escola. No fim da nossa conversa, chamou a filha e, com alegria, disse-me que esta estava a fazer as malas para, no dia seguinte, ir para a faculdade.

“A desoficialização da categoria «criada de servir», só concluída no recenciamento de 1980, compreenderá elipses sucessivas noutros campos: no da família, no da instrução, no da oralidade, no da cena política, e, evidentemente, no registo escrito. (…) Na esfera das nomenclaturas profissionais, esta desoficialização também ocorre. Assim, a categoria «serviços domésticos» passa a designar como trabalhadores possíveis os seguintes: empregados domésticos, cozinheiros, lavadeiras, mordomos, jardineiros, motoristas, secretários particulares e outras pessoas trabalhando nas famílias”[11].

Actualmente, uma vez que as inscrições na Segurança Social não permitem distinguir as empregadas domésticas que residem nas casas onde trabalham, não é possível apurar os dados que nos informariam acerca desta realidade.

*O artigo encontra-se ao abrigo do Antigo Acordo Ortográfico

Texto de Raquel Botelho Rodrigues

Fotografia de Raquel Botelho Rodrigues


[1] Inês Brasão, «Introdução», O Tempo das Criadas: A condição servil em Portugal (1940-1970), Lisboa, Tinta da China, 2012, p.14

[2] «O universo da aldeia», Op.cit., p.54

[3] «Representações jurídicas, políticas e culturais», Op.cit., p.37

[4] «Visão histórica», Op.cit., p.34

[5] «Visão histórica», Op.cit.,p.34

[6] «A imaginação do corpo servil», Op.cit.,124

[7] «A estrutura do trabalho doméstico», Op.cit, p.89

[8] «A estrutura do trabalho doméstico», Op.cit., p.93

[9] «Visão histórica», Op.cit., p.34

[10] «O universo da aldeia», Op.cit., 54

[11] «Notas e impressões sobre o período antecedente», Op.cit., p.43


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