Nestes dias que continuam a ser estranhos, lembrei-me de um episódio que presenciei numa reunião de trabalho a Paris com visita posterior às instalações do impressor oficial do estado francês, em Périgueux, uma comuna situada na Região da Dordonha, Nova Aquitânia.
Zona trufeira, como sabem, Perigueux vive muito do turismo gastronómico relacionado com a rainha dos cogumelos. E como os franceses são mestres na arte da sinergia alimentar, pululam na região os restaurantes, bistrots, ou simples bares, onde se faz o casamento entre a trufa (branca ou negra) e o foie gras.
Os colegas levaram-me a conhecer alguns desses “bistrots” onde era usual que, para beber meia garrafa de champagne, viessem duas tostas de foie gras trufado a acompanhar. Mal comparado (muito mal mesmo) eram assim uma espécie de “tremoços” para dar seguimento a umas “bejecas”.
E foi num desses locais que ouvi a história de um cozinheiro cuja vida correu mal financeiramente. Teve de fechar o restaurante e despedir o pessoal. A sua vida familiar igualmente se ressentiu da crise que então se atravessava no caminho de todos (estávamos ainda na ressaca da crise do “subprime”. Lá para 2009 ou 2010).
Era um homem admirável, todavia, que não se conformou a uma vida de mão estendida à providência do estado francês.
Segundo me contaram, alugou uma carrinha de mudanças que podia ser conduzida com carta de ligeiros, transformou-a em atelier de confeção de refeições, e passava a primavera e o verão a dar almoços no campo, convocados pelas redes sociais e limitados a 12 participantes, com preço fixo de 50 euros, mas com um constrangimento: cada conviva tinha de trazer o seu vinho.
Pode parecer caro para nós, 50 euros por cabeça e sem vinho. Mas para preços da Gália não era nada de especial, sobretudo porque se tinha direito a uma refeição preparada por mestre do ofício. E com trufas!
Esta “loucura” pegou mesmo na região, e a malta ficava em fila de espera de semanas para estes almoços especiais.
Um dos colegas locais que tinha tido a sorte de estar presente confidenciou-me que foi uma experiência notável, pela qualidade e equilíbrio dos pratos que foram servidos. O único ponto negativo terá sido a ausência de casa de banho…
Mas a malta filosoficamente encarava a experiência como uma espécie de pic-nic arvorado. Arvorado como em “árvore”, se bem me entendem…
Terminou esta aventura com a “maldosa” perseguição do fisco. Os inspetores não descansaram enquanto não travaram a orgia refeiçoante que retirava aos cofres públicos o imposto sobre os 50 euritos. Pudessem era os senhores em causa preocupar-se com as gradas contas avulsas em paraísos fiscais e outros offshores. Mas a vida é assim. Persegue-se o que está mais à mão de semear.
Cá em Portugal – bem sei que noutra conjuntura de tempo e de modo – o fisco foi mais compreensível.
Tendo alguns funcionários das finanças locais reparado - para seu grande espanto - que o restaurante onde iam comer quase todos os dias não tinha contabilidade organizada, para não perderem o lugar nem a comidinha saborosa aguentaram algumas semanas o processo das “sevícias” e trataram eles próprios de organizar os “livros” ao prevaricador. O restaurante chama-se Albertino, perto de Gouveia. E esta história faz parte da mitologia daquela antiga casa de bem comer.
Os tempos é que eram outros…
-Sobre Manuel Luar-
Manuel Luar é o pseudónimo de alguém que nasceu em Lisboa, a 31 de agosto de 1955, tendo concluído a Licenciatura em Organização e Gestão de Empresas, no ISCTE, em 1976. Foi Professor Auxiliar Convidado do ISCTE em Métodos Quantitativos de Gestão, entre 1977 e 2006. Colaborou em Mestrados, Pós-Graduações e Programas de Doutoramento no ISCTE e no IST. É diretor de Edições (livros) e de Emissões (selos) dos CTT, desde 1991, administrador executivo da Fundação Portuguesa das Comunicações em representação do Instituidor CTT e foi Chairman da Associação Mundial para o Desenvolvimento da Filatelia (ONU) desde 2006 e até 2012. A gastronomia e cozinha tradicional portuguesa são um dos seus interesses. Editou centenas de selos postais sobre a Gastronomia de Portugal e ainda 11 livros bilingues escritos pelos maiores especialistas nesses assuntos. São mais de 2000 páginas e de 57 000 volumes vendidos, onde se divulgou por todo o mundo a arte da Gastronomia Portuguesa. Publica crónicas de crítica gastronómica e comentários relativos a estes temas no Gerador. Fez parte do corpo de júri da AHRESP – Associação de Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal – para selecionar os Prémios do Ano e colabora ativamente com a Federação das Confrarias Gastronómicas de Portugal para a organização do Dia Nacional da Gastronomia Portuguesa, desde a sua criação. É Comendador da Ordem de Mérito da República Italiana.