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Uniformes escolares: “tradição” é o principal argumento para manter distinção por género

Em Portugal, é comum os colégios privados instituírem o uso obrigatório de uniformes escolares. Os fabricantes atestam que, nas duas últimas décadas, cada vez mais instituições optam pelo uso de uniforme e, apesar da tendência contemporânea de adotar vestuário unissexo, as mais conservadoras continuam a implementar regras rígidas e a traçar distinções entre o fardamento masculino e feminino. Mas por que razão se usam uniformes? E porque são estabelecidas diferenças de género?

Texto de Débora Cruz

Ilustração de Frederico Pompeu

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No ano letivo de 2023/2024, a filha mais velha de Helena (nome fictício a pedido da entrevistada) vai entrar para o 1.º ciclo de ensino básico. Atualmente, a menina frequenta o ensino pré-escolar num colégio privado, em Lisboa. A t-shirt, a bata e o panamá são as peças de roupa que a aluna e os colegas usam diariamente nas instalações da escola. Porém, o regulamento interno da instituição dá conta de que, em setembro, com a entrada dos novos estudantes no ensino básico, as regras que regem o vestuário sofrem algumas alterações. No inverno, os meninos que frequentam o 1. º e o 2.º ciclos devem usar camisa, pulôver, calções, meias altas ou collants e casaco polar. No verão, calções e meias curtas, enquanto a camisa e o pulôver são substituídos por um polo. Já as meninas usam camisa, vestido ou polo de manga comprida e saia, meias altas ou collants, e casaco, no inverno. Durante o verão, vestem um polo, e o vestido é substituído pela saia conjugada com meias curtas.

Quando inscreveu as duas filhas no colégio, Helena já sabia que o uso de uniforme a partir do primeiro ano de escolaridade era obrigatório. “Não sou fã de fardas, mas aceito”, conta, “só tenho as minhas filhas no colégio porque quero e sabendo desta condicionante”. Ainda assim, as distinções instituídas entre o uniforme masculino e o feminino, assim como a inflexibilidade das regras para o vestuário, incomodaram-na. “Trata-se do poder de escolha [entre as opções disponibilizadas pelo colégio]. Tem muito que ver com identidade de género e com quão castrador e limitativo é ser-se obrigada a usar saia”, começa por explicar. “Isto tem implicações para a forma como as meninas brincam, se movimentam e se expressam, porque [com saia] as ‘pernas têm de estar sempre fechadas’ [ou] porque têm o período e não é confortável, etc.”

No ano passado, Helena entrou em contacto com a instituição de ensino para averiguar a possibilidade de a filha mais velha poder usar as calças ou os calções do colégio quando começasse a frequentar o 1.º ciclo, caso preferisse estas peças de roupa à saia imposta pelo regulamento interno. “Primeiro, houve uma resistência, mas depois de alguma luta foi instituído que as crianças podem, dentro das opções existentes na farda, escolher o que quiserem [vestir].” Entre o primeiro email enviado para a instituição e a subsequente alteração das regras, passou-se cerca de um ano.

Na troca de correspondência entre Helena e o colégio, a instituição argumentou contra a mudança do código de vestuário ao enumerar os benefícios do uso de uniforme em contexto escolar. A igualdade entre os estudantes, a sua respetiva segurança e identificação, a promoção de um sentimento de pertença, a praticidade, a economia e a sustentabilidade encontram-se entre os argumentos apresentados.

Os pontos destacados pela instituição sobre as vantagens do uso de uniforme escolar são semelhantes aos apontados por muitos outros colégios a nível nacional. Os mesmos argumentos são utilizados com frequência para justificar o próprio uso do uniforme.

Por que razão se usam uniformes em contexto escolar?

O sociólogo Vítor Sérgio Ferreira, investigador do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa, dá conta de que o uso de uniforme é, sobretudo, uma tradição anglo-saxónica, ainda que não de forma exclusiva. “Entrei na escola primária logo a seguir ao 25 de Abril, em 1977, e ainda vestia a bata branca, que não era propriamente um uniforme, mas já era algo que uniformizava os corpos infantis”, esclarece. 

O sociólogo conta que, em Portugal, a Revolução dos Cravos e a subsequente democratização do ensino fizeram com que a bata deixasse de ser usada nas escolas públicas, mas algumas instituições privadas mantiveram regras para o vestuário dos estudantes. “Os colégios privados sempre continuaram a manter este tipo de tradição, porque continua a ser um símbolo distintivo, não entre as crianças entre si, mas, sobretudo, um signo de distinção social para o exterior. Isso é importante para o colégio e, eventualmente, até para os próprios pais”, explica. “Quando [os estudantes] saem das portas do colégio, [o uniforme] é um símbolo distintivo para eles e, sobretudo, para o colégio”, atesta, “passa a ser um recurso de marketing e de propaganda que é lido de uma forma distintiva em termos sociais.”

O Colégio do Bom Sucesso, em Lisboa, foi fundado na primeira metade do século XVII, no reinado de D. Filipe III. Ana Cristina Mariz Fernandes é a diretora pedagógica há cerca de 23 anos e conta que o uniforme sempre fez parte integrante da história da instituição. “A escola tem o uniforme há centenas de anos, sempre teve, [mas] tem havido alguns ajustes ao longo do tempo”, explica. “Tem havido uma preocupação em ir atualizando os modelos. Algumas bainhas são mais curtas do que eram antigamente, que eram quase até aos pés, e, mais recentemente, [houve] a introdução de polares e de fatos de treino com logótipos e o nome do colégio, de forma bem mais moderna.”

Para a diretora pedagógica, o uso de uniforme traz vantagens para os estudantes. “Os miúdos não têm de escolher a roupa, [porque] têm o uniforme, é rápido a usar e não há aquelas coisas: ‘O que é que levo hoje? Vão criticar se levar isto?’”. Para além da praticidade, a igualdade entre os estudantes é também destacada. “[O uniforme] ajuda a não haver tanta competitividade ao nível material”, explica, “hoje em dia, há muito consumo de marcas e o uniforme escolar atenua muitíssimo as diferenças sociais.”

A investigadora Thais França, do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE), argumenta que o uso de uniforme escolar não deve ser visto de forma unidimensional. “[O uniforme] vai informar uma série de valores: onde é que aquela pessoa frequenta, qual o seu nível social [ou] quais são os valores daquela pessoa, isto se você olhar a forma como a escola comunica para o exterior. Mas [o uniforme] também pode ser uma forma de proteger a diferenciação dentro da escola.”

Thais França explica que o uniforme escolar pode ser visto como algo negativo, porque homogeneiza os estudantes. “O próprio nome diz — uniformização — principalmente se você for pensar como é que se dá a construção da escola, pensada enquanto um espaço que vai moldar esses estudantes para o tipo de sociedade que a gente vive”, sustenta. Ainda assim, a investigadora revela-se hesitante em ver o uniforme de forma exclusivamente negativa. “Se você pensar por outro lado, de uma certa forma, [o uniforme] vai proteger um pouco dessas grandes diferenciações, [então] fico um pouco reticente de o ver de uma forma tão negativista.” Thais França exemplifica: “você não vai ter pessoas indo com a roupa da Gucci ou com uma roupa dessas de marcas, e uma outra pessoa indo com uma roupa que já está velha.” 

Já Helena acredita que muitas das vantagens associadas ao uso de uniforme escolar, como a praticidade, beneficiam mais os pais do que os estudantes. “[No caso das alunas], usar saia nunca foi, nem nunca será prático. [Colocamos] o bem-estar dos adultos acima da praticidade e bem-estar das crianças”, defende. Também sobre a possibilidade de o uniforme atenuar diferenças sociais, a encarregada de educação tece críticas. “A discriminação vai muito para além da roupa. Na própria farda, que se apresente mais ruça do que outra, pode começar a discriminação. O uso de fardas não é impedimento de bullying e estas questões devem ser trabalhadas muito para além do vestuário”, sustenta.

Por outro lado, Ana Cristina Mariz Fernandes argumenta também que o uso de vestuário próprio do colégio promove a integração dos estudantes e um sentimento de identificação com a instituição. “Quando chega um aluno novo, o facto de imediatamente entrar com um uniforme, faz [com que seja] logo parte da equipa”, reitera. “É muito curioso, porque já aconteceu haver um aluno que, por qualquer razão, a mãe achou que podia vir sem uniforme no primeiro dia, e [o aluno] era, de facto, um elemento muito estranho, [porque] não fazia parte do conjunto.”

Vítor Sérgio Ferreira sublinha que o uniforme surge associado a valores e a práticas pedagógicas que se manifestam na sala de aula e, de forma mais abrangente, num determinado modelo de vida escolar que é promovido enquanto símbolo da instituição de ensino. “Os miúdos podem aderir e podem sentir isso relativamente à vida no colégio de uniforme. Não sei se sentirão todos os dias, mas, em alguns momentos, provavelmente, sentirão orgulho de fazer parte e de mostrar que fazem parte daquela escola.”

No Colégio Internacional de Vilamoura, o uso de uniforme é obrigatório para todos os estudantes, desde o pré-escolar ao 9.º ano. A diretora pedagógica da instituição, Cidália Ferreira Bicho, destaca também o sentimento de união entre os estudantes. “Por um lado, é um reforço do espírito de equipa e uma forma de promover a equidade entre os alunos. E, por exemplo, em contexto de visitas de estudo confere segurança e confiança, [porque a equipa da instituição] facilmente identifica o grupo”, defende. “[O uniforme] acaba por ser um fator de segurança e de união: estarmos todos vestidos da mesma forma e representados pelas mesmas cores, acaba por ser um orgulho grande para os miúdos.”

O uso de uniforme foi implementado desde que o colégio iniciou atividade, em 1984. “Sofreu algumas alterações ao longos dos anos, mas sempre fez parte do ideário, da filosofia e do regulamento interno: mudou de cor, ajustou-se o logótipo e foram alteradas peças em função das linhas de cada época”, explica a diretora. “Já tivemos uniformes mais clássicos, com camisa, gravata ou laço. Hoje é um uniforme muito confortável, com menos peças, a pensar no conforto dos alunos, na economia das famílias, e que está em sintonia com o espaço do colégio.”

Uniforme escolar do Colégio Internacional de Vilamoura. Fotografia cedida por Cidália Ferreira Bicho

Cidália Ferreira Bicho revela que identifica apenas um aspeto menos positivo no uso de uniforme. “O facto de, sobretudo na adolescência, a partir do sétimo ano, [os estudantes] deixam de gostar do uniforme, mas isso faz parte do ser adolescente, não esperávamos uma coisa diferente”, conta, “faz parte do crescimento, [estão] numa altura em que querem muito afirmar a sua identidade e especificidade, querem muito testar os limites e o uniforme é um limite, claro, mas não cria um conflito que me faça vê-lo como algo negativo, antes pelo contrário.”

A partir do 10.º ano / Year 11, os estudantes do Colégio Internacional de Vilamoura deixam de usar uniforme. “A escolha de não ter o uniforme no ensino secundário prende-se com a importância de trabalhar outros valores. Cultiva-se a ideia de que a escolha da roupa deve estar em sintonia com o contexto”, atesta a diretora. “Essa liberdade de escolha faz parte da formação para o futuro. Ter a noção de que cada contexto exige uma apresentação que seja compatível com a atividade é um ensinamento importante para a vida e para o mercado de trabalho, por exemplo.”

Para algumas crianças e adolescentes, o uso de uniforme pode ser sentido como uma imposição ou uma restrição da sua liberdade de expressão. “Tenho a certeza absoluta de que à medida que [os estudantes] vão crescendo, os recursos que vão ter para singularizar a sua própria imagem a partir do uniforme vão-se intensificando, e a linguagem do uniforme vai sendo individualizada”, defende Vítor Sérgio Ferreira. “[A linguagem do uniforme] não é uma linguagem partilhada pelos estudantes. Eles adequam-se, porque acaba por ser uma escolha dos pais e, sobretudo, do colégio.”

O uso de uniforme e o projeto educativo das instituições

Para além das vantagens frequentemente identificadas, o uso de uniforme surge também, muitas das vezes, associado ao projeto educativo dos colégios. Ana Cristina Mariz Fernandes acredita que o uniforme “tem a capacidade de criar uma imagem [do colégio] e de associá-la àquilo que são os valores defendidos pela instituição.”

“Posso dizer que o uniforme tem que ver com o desempenho daquilo que fazemos”, reforça a diretora. “Se for a um hotel, [o estabelecimento] tem o uniforme para os seus trabalhadores, um cientista tem uma bata, a polícia tem uniforme. [O vestuário] ajuda a perceber o nosso trabalho e a compenetrármo-nos de que estamos a trabalhar, [de que] temos um equipamento apropriado e respeitamos esse equipamento. Acho que isso é muito importante.” Além disso, Ana Cristina Mariz Fernandes sublinha o cuidado necessário a ter quanto à roupa usada em contexto escolar. “Temos que ter uma determinada apresentação que confere respeito àquilo que estamos a fazer, e acho que os alunos entendem isso, de uma forma geral.”

Vítor Sérgio Ferreira explica que o uso de uniforme pode estar associado aos valores que as instituições de ensino querem transmitir aos seus estudantes e à imagem que querem projetar para o exterior. “[O uniforme] é sobretudo a expressão da qualidade do colégio, está associado ao valor da disciplina e tradição, ao valor da higiene, à ideia da sobriedade, ou até ao valor da humildade, porque não serão peças muito ostentatórias, ainda que tenham alguma qualidade”, explica o investigador. “São valores que provêm de uma certa elite. Agora, o que acontece é que estes colégios já não são só para a elite, são também para uma classe média que tem alguma pretensão, e os próprios colégios cultivam esta imagem.”

No Colégio Internacional de Vilamoura, o projeto educativo é sustentado por “valores humanistas” e “assenta muito na ideia de família”, esclarece Cidália Ferreira Bicho. “Nada melhor do que o uniforme para reforçar esse sentimento de partilha, de fazermos parte de uma comunidade, de partilhar experiências e vivências, sem as distrações que a escolha da roupa, dos acessórios ou a escolha das marcas, regularmente trazem.” 

A diretora acrescenta que a sustentabilidade tem sido cada vez mais incorporada no projeto pedagógico do colégio, e que o uniforme também surge associado a questões ambientais. “Usar uniforme não incentiva ao consumismo, pois o número de peças necessárias para uma semana é mais reduzido do que costuma ser quando não há uniforme. A tendência de seguir a moda, não se coloca, logo, é uma opção mais sustentável”, defende. “[O uniforme] passa uma imagem de coesão, que é um valor importantíssimo em educação. Acreditamos que, entre muitos outros fatores, promove um ambiente de rigor e de excelência académica e humana”, reitera a diretora pedagógica.

Quanto à hipótese de o uso obrigatório de uniforme restringir de alguma forma a liberdade dos estudantes, Cidália Ferreira Bicho rejeita-a. “Pode ser visto como tal, mas é uma visão restrita do potencial do uniforme. Na escola, há seguramente espaço para a individualidade”, defende. “A escola, como espaço privilegiado para a expressão de liberdades, deve proporcionar contextos de aprendizagem que permitam a expressão e o desenvolvimento da individualidade, [mas] a roupa não é a única, nem a principal forma de a expressar.”

“Da mesma forma que numa equipa de futebol, numa orquestra [ou] numa companhia aérea existe um uniforme que distingue aquele grupo dos demais [e] lhe confere uma imagem representativa dos valores que representam, na escola é exatamente a mesma coisa”, continua a diretora. Cidália Ferreira Bicho acredita que “a forma como os alunos se relacionam entre si, a forma como usufruem das oportunidades de aprendizagem” e “as escolhas que fazem diariamente nas aulas ou nos momentos lúdicos”, são o resultado da expressão da individualidade de cada estudante. “O uso do uniforme não é fator de supressão da individualidade, antes pelo contrário. A criatividade e expressões individuais saem reforçadas, porque se manifestam para além da aparência.”

Helena concorda que existem situações em que o uso de uniforme é preferível à heterogeneidade do vestuário dos estudantes. No entanto, argumenta que as crianças se sentiriam mais seguras se tivessem oportunidade de escolher. “Nas visitas de estudo, a uniformização parece-me totalmente adequada”, ressalva, “[mas] continuo a sublinhar que a liberdade de escolha das peças de vestuário por parte das crianças e das famílias deveria ser um direito.” Helena destaca também que “o mais importante deveria ser, não os resultados escolares, mas criar crianças com direito à liberdade de expressão e empoderamento, com respeito pelo seu corpo e identidade. Só assim poderão crescer e tornarem-se pessoas felizes e bem-sucedidas.”

Por outro lado, Ana Cristina Mariz Fernandes salienta que “há apresentações completamente impróprias” para um contexto escolar e que não preparam os estudantes para uma vida profissional. “A maioria dos trabalhos têm dress code, portanto, demasiada liberdade na apresentação na escola não leva [os estudantes] a criarem respeito uns pelos outros e, muitas vezes, pelos próprios professores”, argumenta. “Sem qualquer autoritarismo, acho que é uma iniciativa que tem bastante valor e que é muito valiosa numa sociedade democrática. Às vezes, democrático não é cada um fazer o que quer, mas aquilo que é melhor para o conjunto das pessoas, e penso que isso ajudaria muitos jovens a crescer e a integrarem-se melhor.”

A loja Cigarrinha está presente no ramo das fardas e uniformes escolares, desde 1972. A proprietária, Helena Henriques, explica que são sobretudo as instituições privadas que recorrem ao uso de uniforme escolar. “As escolas públicas têm uniforme para as crianças mais pequeninas, até à primária. [Utilizam-se] os bibes, os panamás, o equipamento de ginástica e, agora, também os polares”, explica, “nas escolas privadas é desde a creche até ao 12.º ano.” A lojista crê que esta diferença possa ser causada por uma questão de “tradição”. “Frequentei as Doroteias há mais de 40 anos e já usávamos uniforme. Antigamente, acho que nos liceus se usava a bata branca, que depois caiu em desuso, já ninguém usa.”

Ana Cristina Mariz Fernandes recorda-se de quando frequentava o ensino público, antes da Revolução dos Cravos, e usava uma bata com o símbolo da escola. “Depois, com o 25 de Abril, isso caiu, talvez nos colégios privados não tenha caído, porque se manteve uma certa regra e autoridade”, elucida. “As regras mantiveram-se nos colégios que entendiam que o uniforme era algo importante e conseguiram fazer vencer essa indicação. Acho que no [ensino] público também devia haver alguma forma de os alunos se identificarem com a escola”. A diretora considera que “há um sentimento de pertença que faz muita falta hoje em dia” e que seria benéfico os estudantes se “tornarem um bocadinho mais homogéneos na sua apresentação.”

A diretora pedagógica do Colégio Internacional de Vilamoura reconhece também a questão tradicional. “No nosso país, talvez nos últimos 50 anos, o uniforme não tem sido uma tradição nas escolas públicas. Noutros países, nas escolas públicas de Inglaterra, por exemplo, há uniforme”, declara, “os colégios privados [portugueses] têm essa tradição.” 

Apesar de as instituições privadas serem os principais clientes dos fabricantes de uniformes escolares, José Alberto Castro, o CEO da Dauti, empresa que produz, desenha e comercializa fardas e uniformes escolares, desde 2017, dá conta de uma nova tendência. “Há cada vez mais [escolas] públicas a quererem imagens únicas e a pensarem nas suas equipas”, defende. No entanto, o CEO acredita que as instituições de ensino privadas recorrem com mais frequência ao uso de uniformes, porque “pretendem passar uma imagem das suas equipas mais cuidada. Para além disso, em muitos casos, no [ensino] público, o único fator de decisão é o preço.”

As distinções entre o uniforme masculino e feminino

Para além do uso obrigatório de uniforme, múltiplos colégios estabelecem distinções entre o vestuário para as alunas e alunos. “Para os meninos, os colégios mais tradicionais têm as calças ou calções. Para as meninas, têm as saias e as kilts, com as respetivas camisas, que são diferentes e variam: os modelos de rapazes têm camisa normal, e as das meninas têm uma gola redonda, por exemplo, ambos os modelos com padrões clássicos”, explica Helena Henriques.

A proprietária da Cigarrinha crê que os colégios que estabelecem regras mais rígidas para o uso de uniforme tendem a ser os mais tradicionais. “Há colégios que são extremamente rigorosos. Normalmente, são ligeiramente mais elitistas e frequentados por estratos sociais mais elevados”, sustenta. A proprietária salvaguarda, no entanto, que mesmo entre os colégios de elite se começam a verificar regras mais flexíveis para o vestuário. “Noto que colégios bastante bons estão cada vez mais a simplificar o uniforme, [até mesmo] numa tendência de unissexo. Também se vê nos colégios mais tradicionais uma mudança de mentalidade, no sentido em que começam a permitir calças de ganga e a uniformizar só as camisolas.”

Thais França explica que as regras rígidas e diferenças de género que se verificam nos uniformes escolares são um espelho das normas de género existentes na sociedade. “A escola não é um espaço de transgressão, por mais que ela pudesse ser pensada como tal. A escola é um espaço de reprodução do aparelho do Estado, então, se você está num país onde as normas de género são muito demarcadas, a escola vai reproduzir isso.” 

A investigadora esclarece que mesmo em escolas menos conservadoras, em que não existem diferenças de género no vestuário, o uso de uniforme continua a ser moldado por referência ao masculino. “O uniforme ainda vai ser balizado pelo masculino, porque na nossa sociedade o modelo do que é bom e prático é o masculino. A maioria dos avanços que acontecem em relação à igualdade de género, [representam] as mulheres aproximando-se daquilo que é tido como masculino”, elucida. “As primeiras mulheres que começaram a usar calça de ganga foram um grande choque na nossa sociedade. É claro que existe uma praticidade na calça, a questão não é essa: a questão é que, a priori, os meninos não são permitidos usar saia.”

Considerando a escola como um aparelho que reproduz os valores do Estado, Thais França argumenta que este exerce um maior controlo sobre o corpo das mulheres do que sobre o dos homens. “Desde o uso da pílula anticoncecional ao aborto, a tantas outras questões. Se você for pensar porque é que o uniforme das meninas é muito mais cheio de regras do que o dos meninos, é uma forma também de controlar esses corpos e o tipo de comportamento que elas podem ter: é muito mais fácil você correr se você está de calça, por exemplo.” 

A investigadora sublinha ainda que existem diferenças entre o ensino público e o privado na instituição de diferenças de género no uso de uniforme. “As escolas privadas tendem a ser mais conservadoras, porque aí tem que ver com a classe social, com a questão da elite e das ideias, e essa elite não tem interesse em ter transformações. Qualquer elite precisa de manter a diferença entre o que sou ‘eu’ e ‘quem não é do meu grupo’”, explica. “A escola privada precisa de continuar garantindo essa diferenciação e comunicar os valores de género, ou seja, do que é o homem, do que é a mulher, do que é que faz uma mulher, e o que faz um homem.” Já as escolas públicas são mais suscetíveis de responder às pressões da sociedade para desconstruir esses valores, diz a investigadora.

No Colégio do Bom Sucesso, a saia é o uniforme usual das raparigas que frequentam os três ciclos do ensino básico, já os rapazes usam calções no 1.º ciclo e calças no 2.º e 3.º ciclos. “Há, de facto, uma base tradicional. [O Colégio do Bom Sucesso] era e é um colégio de freiras e há essa cultura que se tem prolongado e que, de uma forma geral, é bem aceite”, explica Ana Cristina Mariz Fernandes, que não rejeita a possibilidade de o uniforme sofrer alterações no futuro. “A farda, quer das raparigas, quer dos rapazes, pode vir a tender para algo mais unissexo. Mas, nesta fase, não sinto nada de especialmente polémico relativamente ao uniforme”, confessa, “às vezes, temos questões sobre a alimentação, se é saudável ou não, [mas] relativamente ao uniforme, os próprios pais gostam e os estudantes também.”

A diretora conta que o colégio nunca foi confrontado com a questão de um aluno querer usar o uniforme das alunas, mas refere que o contrário já aconteceu. “Resolvemos a situação com o fato de treino do colégio. [Os estudantes] vêm duas ou três vezes de fato de treino para a aula de Educação Física e permitimos que essa rapariga viesse, todos os dias, com o fato de treino”, explica. “Era uma situação especial e, portanto, tivemos essa abertura, [mas] não permitimos propriamente que viesse de camisa e calças dos rapazes, também nunca se pôs essa questão.”

Helena defende que dar a liberdade às crianças de escolher o que vestir entre as diferentes peças de vestuário disponibilizadas pelo colégio, não colocaria em causa a homogeneidade entre os estudantes ou a imagem da instituição. “O importante é respeitar um projeto pedagógico que visa manter o respeito e a disciplina como formação integral dos alunos, eliminar a competição entre eles e uni-los num só grupo. Não vejo onde o uso de umas calças por parte das meninas possa interferir com o respeito, formação integral e eliminação de competição e desestabilize a união”, argumenta. Além disso, a encarregada de educação frisa que esta liberdade de escolha não prejudicaria nenhum dos benefícios do uso de uniforme identificados. “A praticidade para os pais mantém-se, a economia e a sustentabilidade também. A criança continua segura e identificada pelo corpo docente, discente e externos, e a pertença e igualdade continuam a aplicar-se”, reitera.

O Colégio Internacional de Vilamoura é um pouco menos rígido quanto às suas regras. A instituição possui duas versões de uniforme: o modelo mais formal, composto por saia/calça e polo, e a versão desportiva, constituída por calça ou calção e t-shirt. Já os polos, t-shirts e hoodies [camisola com capuz] do colégio são iguais para todos os estudantes. “Somos bastante flexíveis em relação ao uso do uniforme, o mais importante é que [os estudantes] realmente o tenham. A localização [do colégio] é tão apelativa para a atividade no exterior que o mais importante é que [os estudantes] se sintam confortáveis e possam usufruir e viver os intervalos de forma livre”, defende Cidália Ferreira Bicho.

A diretora conta que é frequente as alunas pedirem para usar peças do uniforme masculino. “Não somos radicais, procuramos manter a flexibilidade que permita esses ajustes. Já aconteceu meninas não gostarem de usar saia ou preferirem os calções de ginástica dos rapazes, por serem mais compridos e mais largos, não há obstáculos a isso”, reitera. “Temos de respeitar as necessidades individuais. A regra base é usar o uniforme, a marca distintiva que identifica o grupo. O facto de existir uma versão feminina e uma versão masculina não se sobrepõe ao conforto que o aluno ou aluna deve sentir ao usar o uniforme.”

O uniforme escolar: as tendências

Desde que desenha, produz e comercializa uniformes escolares, a Dauti tem testemunhado um crescimento anual do número de instituições de ensino que requisitam os seus serviços. “Neste momento, trabalhamos com cerca de 60 instituições, entre públicas e privadas”, diz José Alberto Castro. O CEO tem verificado que existe uma preocupação crescente por parte dos clientes em tornar os uniformes escolares mais padronizados e adaptados às realidades e ao dia a dia dos estudantes, “tanto ao nível dos cortes e detalhes, como ao nível dos materiais utilizados, que facilitam depois a utilização.”

Helena Henriques também identifica a tendência de tornar o vestuário mais prático. “Há imensos colégios que estão a permitir o uso de jeans e a adotar o uso do polo, de manga comprida ou de manga curta, com o logótipo da instituição, normalmente até tendem a ser modelos unissexo”, conta. “Há muitos colégios a adotar esse sistema para abolir a farda mais rigorosa, da kilt ou da saia de pregas, e do calção até ao joelho ou das calças cinzentas.”

A proprietária da Cigarrinha destaca ainda que os uniformes têm cada vez mais peças de roupa que podem ser consideradas informais, como as sweatshirts e os hoodies, e peças que não fazem distinção de género. “Tendem cada vez mais a usarem modelos unissexo, o que vai também no sentido da corrente de hoje em dia, porque temos que nos adaptar às novas realidades”, explica, “já não se vê o cor-de-rosa ser para a menina e o azul-bebé ser para o rapaz.”

José Alberto Castro menciona também que é cada vez mais comum as instituições de ensino pedirem propostas integradas de uniformes. “[Os pedidos vão] desde o corpo docente aos estudantes e às cozinhas, e estende-se a toda a área do colégio ou escola”, refere. No Colégio do Bom Sucesso, o corpo docente não usa uniforme, mas os auxiliares e educadoras têm uma farda de verão e de inverno. Já no Colégio Internacional de Vilamoura, os docentes, psicóloga e bibliotecárias não usam uniforme, mas os restantes colaboradores utilizam. “Torna-se mais fácil localizar os auxiliares ou a enfermeira, facilitando a identificação, por exemplo, nos intervalos, é uma forma de identificar quem trabalha nas instalações. Cria harmonia, confiança e sentimento de unidade”, argumenta Cidália Ferreira Bicho.

Vestuário utilizado pelos colaboradores e colaboradoras do Colégio Internacional de Vilamoura. Fotografia cedida por Cidália Ferreira Bicho

Sobre a maior ou menor procura de uniformes por parte de instituições de ensino, Helena Henriques declara que notou diferenças ao longo das décadas. “Há cerca de 15 anos, as pessoas estavam a rejeitar um bocadinho a ideia dos uniformes. Tem que ver com questões sociais: as pessoas questionavam a individualidade dos miúdos e a liberdade de escolher.” No entanto, a proprietária acredita que a tendência se inverteu. “Hoje em dia, nota-se que as pessoas e os colégios querem cada vez mais o uso de uniforme, não se nota que as pessoas estejam contrariadas.”

Vítor Sérgio Ferreira acredita que a aceitação ou o não questionamento do uso de uniforme pode estar relacionado com a relação entre o ensino privado e o público. “A seguir à instauração da democracia, de facto, a ideia do uniforme era uma coisa lida de forma muito conservadora, ou mesmo reacionária, e só os colégios muito reacionários continuaram a ter uniforme, nomeadamente instituições religiosas e militares”, explica. “Hoje em dia, não, é a mesma lógica do próprio uniforme académico: o facto de determinada família colocar a criança ou adolescente naquela escola é uma escolha, e desde o momento em que se adere, esta não vai ser questionada, porque já se sabe, à partida, que a criança vai ter, entre outras regras, que utilizar o uniforme.” 

O investigador argumenta que, neste contexto, o uniforme passa a ser, sobretudo, uma estratégia de marketing e de distinção. “A educação privada, nos últimos anos, ou na última década, tem competido em larga escala, ou tem tentado competir, com as escolas públicas e com a própria tentativa de descredibilização do ensino público”, atesta. “Desse ponto de vista, o uniforme passa a ser, mais uma vez, uma questão de linguagem e de distinção social.”

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As práticas de assédio moral e sexual são uma realidade conhecida dos estudantes, investigadores, docentes e quadros técnicos do ensino superior. Nos próximos meses lançamos a investigação Abuso de Poder no Ensino Superior, um trabalho jornalístico onde procuramos compreender as múltiplas dimensões de um problema estrutural.

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8 DE ABRIL 2024

A pobreza em Portugal: entre números crescentes e realidades encobertas

Num cenário de inflação galopante, os salários baixos e a crise da habitação deixam a nu o cenário de fragilidade social em que vivem muitas pessoas no país. O número de indivíduos em situação de pobreza tem vindo a aumentar, mas o que nos dizem exatamente esses números sobre a realidade no país? Como se mede a pobreza e de que forma ela contribuiu para outros problemas, como a exclusão social?

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