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Viagem: a máquina de sonhos

Desde pequena que brinco aos “sonhos”. Costumava achar que tinha a capacidade de escolher com…

Opinião de Rita Maria

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Desde pequena que brinco aos “sonhos”. Costumava achar que tinha a capacidade de escolher com o que iria sonhar, era como se tivesse uma espécie de projetor de imagens interno que acionava através de uma manivela. Fechava os olhos com força e rodava com a mão direita a manivela imaginária, era assim que decidia com o que iria sonhar nessa noite. Ao pequeno almoço da manhã seguinte, entretinha-me com o meu irmão a contar as peripécias das aventuras noturnas, tornou-se um ritual que partilhámos durante muitos anos e que acabou na altura em que o mano, mais velho, partiu para a faculdade.

Sempre soube que amava a viagem, de todo o tipo, sempre achei que a minha iria ser bastante solitária e, talvez por ser tão nova e não entender o porquê desta sensação, assustava-me.

Lembro-me também de, na infância, no aconchego da cama quando já todos dormiam, cantar melodias inventadas e choramingar, bem baixinho, em jeito de embalo, para que ninguém ouvisse, até acabar por adormecer. Entristecia-me projetar-me no futuro: uma menina grande que iria viajar muito, mas sempre sozinha…

Até ao dia de hoje, para mim, Viagem e Sonho continuam inseparáveis.

De facto, cresci e tornei-me nessa menina grande que muito viajou e que a cada viagem se encontrou mais consigo mesma, mesmo quando perdida.

Comecei a viajar muito cedo e jamais tenciono deixar de o fazer, há algo de mágico e irrepetível em cada uma das viagens que fazemos, por mais pequenas que sejam, eu gosto de todas elas.

As primeiras viagens que me lembro de ter feito foram através da música. Fiquei viciada no poder que a música tem de nos transportar para outro lugar de nós, foi o meu primeiro encontro verdadeiramente transcendental.

Tenho uma memória grata de ser muito nova e andar a correr pela casa aos gritos enquanto se ouvia música clássica no gira discos do meu pai. Eram peças para orquestra, havia uma densidade sonora inebriante e o volume era também considerável. Tornava-se irresistível pular, cantar, que sensação de plenitude, puro estado de graça. No meio disto, o meu pai inventou aquela que seria para nós a receita mais genial de sempre: pão com manteiga polvilhado de açúcar, não nego que a adrenalina resultante da intoxicação por açúcar ajudasse em muito à intensificação da experiência sensorial!

É esse mesmo impulso de transcendência que me leva a olhar fixamente para uma paisagem verdejante, e que injusto é ver tantos matizes de verde e não ter nome para cada um deles. Como guardar na memória a cor da água de um riacho? Como distinguir uma pedra porosa de tanto ser batida pelas ondas do mar de outra sua semelhante? Uma era especial, era nossa no momento em que a olhámos determinadamente e se nos revelou, já a outra, mera pedra.

Viajei pelos livros com a mesma intensidade, de tal forma que, às vezes, confundo as minhas experiências com aquelas que li, não sei onde termina o que vivi ou viajei, dentro ou fora de mim.

Um belo dia fui parar ao Equador e poderia contar-vos os muitos episódios desse capítulo, mas não iria ter espaço para eles nesta crónica. O meu objetivo é outro.

Tenho a séria intenção de vos aliciar, de vos seduzir pela magia da viagem, qualquer uma delas, e de vos dizer que o mais próximo que alguma vez me encontrei dessa experiência da maravilha e do espanto que move a minha máquina dos sonhos, foi em viagem.

Há lugar na América Latina para sonhar, uma predisposição natural para que acontecimentos, no mínimo improváveis, tenham espaço para se desenrolar, quem sabe se existe um acordo tácito com todos que a habitam de que realidade e  fantasia se podem misturar sempre que quiserem.

É como se naquele espaço geográfico os princípios da existência se baseassem numa premissa essencial chamada: o livre exercício da imaginação.

Quem sabe se, por isso, associo a infância à minha passagem pela América Latina, o momento em que mais exercitei livremente a imaginação e, o que passou a não ter lugar, foi resgatado no outro lado do planeta. Por isso, digo, a cada viagem mais um passo ao encontro de mim própria. No meio dessa descoberta pela liberdade da imaginação, encontrei-me entretanto com a absolvição e paz, pela tentativa e o erro que toda a busca requer. No Equador redescobri a minha criança interior de uma forma absolutamente pagã, como todo o ser original. Degladiei-me com os meus monstros, tirei-lhes o freio, deixei-os gritar, fazer estragos, festejar, e, no fim,  apanhei-lhes os cacos, guardei alguns e parti.

-Sobre Rita Maria-

Rita Maria começou a estudar música aos oito anos e desde os catorze a cantar jazz. Estudou canto lírico no Conservatório Nacional de Música de Lisboa, Jazz na Escola de Jazz do Barreiro, ESMAE (Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo), no Porto, e também na Berklee College of Music em Boston como aluna bolseira. Passou parte da sua vida adulta entre Portugal, Estados Unidos e Equador. Deambula entre a improvisação do Jazz e a nostalgia do Fado, o Experimentalismo, a fusão com world music e o rock, já tenho partilhado o palco com diferentes músicos e integrando variadas orquestras. É cantora da Banda Stockholm Lisboa Project, lançou, em novembro de 2016, com o guitarrista e compositor Afonso Pais o disco “Além das Horas” e é cantora da banda Saga Cega. Recebeu o Prémio de Artista do Ano, Prémios RTP/Festa do Jazz 2018. Neste momento, está a desenvolver o seu trabalho artístico com o pianista e compositor Filipe Raposo com quem já lançou o primeiro disco “Live in Oslo”, em 2018, e lançará, em finais de 2020, “The Art of Song vol.1: When Baroque Meets Jazz”. Círculo é o mais recente trio colaborativo do qual faz parte e que se estreou em disco a janeiro de 2020 com os músicos Mário Franco e Luís Figueiredo.

Texto de Rita Maria
Fotografia de Alice Bracchi

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