Quando soube do mais recente caso do Vinícius Júnior, jogador do Real Madrid, que num jogo contra o Valência foi alvo de insultos racistas por parte dos adeptos da equipa visitada, a minha mente transportou-se até ao livro que li de Galeano. Eduardo Galeano, musa homérica deste texto, foi um nome incontornável da literatura da América Latina e – diabos me mordam – adepto fervoroso de futebol. A beleza de Galeano foi sempre a de tentar transmitir a elegância do futebol a quem lhe era reticente e enaltecer a beleza do que este representa para as pessoas. E por isso, perguntei-me o que pensaria Galeano ao ver a forma como as instituições lidaram com este caso de racismo.
As respostas dos órgãos máximos de decisão no futebol aos casos de racismo têm sido anémicas. O simbolismo já gasto das braçadeiras negras, do ajoelhar no início dos jogos e das hashtags entraram já no estado de putrefação. Este é apenas o reflexo de um sistema de gestão oco por dentro, sem valores e que vive para o lucro que o desporto representa, sem qualquer consideração pela integridade do futebol e dos jogadores. Isto está intimamente ligado com os abismais direitos dos futebolistas. A profissão de futebolista, apesar da sua visibilidade nos meios de comunicação social e elevado patamar financeiro, ainda é precária ao nível do direito laboral. O gradual aumento do número de jogos por época que coloca em causa a integridade física dos jogadores, o completo abandono destes jogadores às redes de empresários movidas por dinheiros e interesses ou a relação de poder desmedido dos clubes sobre os jogadores são só algumas das áreas em que o futebol tem muito que evoluir. Portanto, a discriminação dentro dos estádios é ao mesmo tempo um sintoma e uma causa deste sistema condenado.
Voltando ao livro, que reúne várias compilações de textos sobre o desporto-rei, Galeano traça como ninguém a relação siamesa entre o futebol e a política. O futebol serviu sempre como um espaço de resistência, um espaço popular onde as pessoas sentiam liberdade de expressar livremente as suas ideias. Um espaço de comunhão, de união, de fé. Um espaço em que a descriminação era rapidamente conquistada pelo amor ao jogo. Através destas histórias, algumas que parafraseio em baixo, é possível compreender a importância histórica deste desporto. O futebol, dado o seu entrosamento com a sociedade, acabou por transformar-se em algo político, quer se goste quer não. E como exemplos deixo aqui três histórias que Galeano relata:
- Em 1942, aquando da ocupação nazi do território ucraniano, os alemães organizaram um jogo de futebol que colocava frente a frente os operários do Dinamo de Kiev e a seleção nacional das forças armadas alemãs. Num estádio “ao barrote”, os alemães chegavam ao intervalo a perder 2x1. Perante esta situação impensável, foi feita chegar uma advertência ao balneário da equipa de Kiev: “Nunca perdemos em territórios ocupados, se ganham fuzilamos-vos”. A segunda parte recomeçava. Terceiro golo, quarto golo. O jogo terminava antes da hora e os operários triunfavam. Esses mesmos homens acabariam fuzilados ainda com os equipamentos na pele.
- O caso do Chile, cujo estádio de futebol de Santiago serviu como prisão de presos políticos logo após o assassinato de Salvador Allende e a consequente tomada do poder de Pinochet. O estádio de futebol iria ser palco das maiores atrocidades que a humanidade já existiu e por isso, visto como símbolo de resistência ao regime.
- O icónico caso de Sócrates, lenda do futebol brasileiro, que liderou a tomada da direção do clube Corinthians e implementou uma estrutura democrática. Num contraste profundo com o contexto de ditadura militar que se vivia na altura, tudo era decidido entre todos: sistemas de jogo, métodos de trabalho e até como o dinheiro era distribuído. Na camisola de jogo podia ler-se “Democracia Corintiana”.
Nestas histórias fica patente a coragem de defender os seus valores e ideais, o terreno de jogo que virou arena política e a restituição do poder por parte dos jogadores. O futebol é político porque pertence a todas as pessoas. Que melhor palco para exercer esta luta contra a discriminação que este lindo desporto com tradição de resistência e de luta?
Portanto, honrem a herança do futebol! A esperança nos dirigentes das instituições responsáveis, desde FIFA, UEFA, até à FPF, os próprios clubes, é baixa. Mas o futebol somos todos nós - adeptos, jogadores, simpatizantes, sócios, amigos. Temos de ser nós a bater o pé. O racismo não pode ter espaço no futebol. Se há coisa em que acredito é no poder das pessoas para mudar o mundo. Uma ação robusta no futebol pode trilhar o caminho para uma sociedade mais inclusiva.
-Sobre João Lopes-
João Lopes é um entusiasta de Políticas Públicas, especialmente sobre as que incidem sobre os temas da Juventude, Educação ou Cultura. Vai fazendo vida entre Lisboa, onde está a tirar mestrado em Políticas Públicas, e Tomar, de onde é natural e integra a direção da Associação Cultural Marquesa de Ciranda que dinamiza a cena cultural na cidade. Não sabe se a sua escrita está tão solta quanto isso mas nada como o Gerador para o desafiar.