Jornalista de formação, Vítor de Sousa concluiu o mestrado na vertente da educação para os media e dedicou a sua tese de doutoramento em Teorias da Cultura aos conceitos de portugalidade e lusofonia. Explica o investigador que a utilização, em dias atuais, da expressão que se estabeleceu nos anos de ditadura causava-lhe ruído, pelo que se debruçou na área da identidade e da memória social, com o objetivo de impedir a perigosa naturalização de um estereótipo.
Em causa está o modelo social do lusotropicalismo, desenvolvido por Gilberto Freyre a partir de 1933, no qual o sociólogo brasileiro defende a distinção dos colonizadores portugueses dos restantes imperialistas europeus, baseada numa alegada predisposição do povo lusitano para a miscigenação cultural, fator que, segundo o autor, resultou num processo de colonização suave. O conceito foi propagado pelo Estado Novo, juntamente com a noção de portugalidade, que consistia num conjunto de características inatas do cidadão português, como a grandeza e a empatia.
Em videochamada com o Gerador, Vítor de Sousa argumenta a favor do reconhecimento da história e da prioridade à novas políticas de cooperação na comunidade lusófona.
Gerador (G.) – Explicas, na introdução do teu artigo “As Marcas Do Luso-tropicalismo nas Intervenções do Presidente da República Português (2019 – 2021)”, que a ideia surgiu depois de reparares num “fio condutor” das declarações oficiais de Marcelo Rebelo de Sousa (MRS). Podes detalhar os primeiros passos da investigação?
Vítor de Sousa (V. S.) – O click para escrever sobre isto foi em 2016, depois do discurso de tomada de posse de MRS. O Público fez um dossiê e ouviu várias personalidades, entre as quais o historiador Diogo Ramada Curto, que analisava o discurso do novo presidente e falava das demarcações e do desenterramento de assuntos que já tinham sido enterrados, nomeadamente a Batalha de Ourique. Comecei a ver o fio condutor e as permanências ideológicas no percurso de MRS, alinhado mais à direita e com estes valores a serem disseminados. No próprio discurso, como assinala Diogo Ramada Curto, estando presente Filipe Nyusi, Presidente de Moçambique, [o Presidente português] dizia "este é um povo de soldados". Quem disse isto foi o Mouzinho de Albuquerque, que foi governador do distrito de Lourenço Marques (atual Maputo) e um sanguinário.
Ora, cai o regime com o 25 de Abril e nunca ouvimos, por exemplo, ninguém associar os capitães de Abril, responsáveis pela revolução, à portugalidade – pelo contrário, eles derrubaram-na. Mas é interessante que o nosso presidente da República atual, no primeiro mandato, aquando da morte de Mário Soares, num discurso de poucos minutos, usa oito vezes a ideia de que Soares foi construtor de portugalidade. Nós, nas ciências sociais e humanas, temos de refletir sobre as palavras e os discursos. Mário Soares ajudou a derrubar o Estado Novo e a sua portugalidade, portanto cria aqui um bocado de ruído.
G. – Trata-se, então, de um constante regaste dos feitos históricos?
V. S. – Há aqui uma colisão muito grande quando entra em cena o discurso político. O Jorge de Sena, em 1977, no primeiro dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, assinalado depois do 25 de Abril – antes era o Dia da Raça, em que se assinalava a superioridade portuguesa –, fez o chamado Discurso da Guarda, que ainda hoje é de sublinhar, onde ele fala do aproveitamento dos politiqueiros, digamos assim, de Camões, Pessoa e etc. É engraçado que, ainda hoje, nos dias de efemérides, e eu tenho acompanhado isso a par e passo, lá se vão invocar [os autores], falar da descoberta, etc. Claro que nós não podemos meter a cabeça na areia e dizer que não houve história, mas devemos contextualizá-la e olhar para a frente, não dizer que em Portugal não há racismo, que o português é universalista e ecuménico – isso é o discurso lusotropical.
Eu queria verificar exatamente aquilo que a Cláudia Castelo já tinha fixado há alguns anos. Se, no passado, o lusotropicalismo, dizia ela, serviu para legitimar o colonialismo português, hoje é utilizado para dar corpo ao “mito da tolerância racial dos portugueses e até de um nacionalismo português integrador e universalista, em contraponto aos maus nacionalismos fechados, etnocêntricos e xenófobos”. Ora, da análise das intervenções de MRS, é como se fosse um pronto a vestir, serve à medida. Não estou a dizer que MRS seja xenófobo, nada disso, é um democrata. Estou a comentar que às vezes olho para os discursos dele como ridículos, dizendo que quando Portugal é bom, é o melhor do mundo. E quando é mau? Também podemos perguntar. É um bocado caricato e um lusotropicalismo levado ao limite. A linguagem está datada. São neste tipo de coisas que, às vezes, uma boa ideia cai por terra devido a estas incongruências que não fazem sentido nenhum.
G. – No teu trabalho, analisas o momento em que o Presidente, na cerimónia do 25 de Abril de 2017, fala de um “nacionalismo patriótico”, levantando a incompatibilidade dos dois conceitos. Acreditas que é possível desassociar a portugalidade do nacionalismo?
V. S. – Claro que não. A portugalidade é uma essência, criada durante a vigência de um estado fascista, e os nacionalismos vivem desse recorte. Hoje em dia tenta-se adornar a questão e dizer que não era bem fascismo, mas era sim uma ditadura, não havia liberdade, havia polícia política e repressão. A portugalidade, em termos de imagem, é olhar para o outro para me ver a mim próprio ao espelho. Ele tem de ser igual a mim, senão está tudo estragado. Nós olhamos para o outro para ver a diversidade, que é de onde nasce uma coisa nova, novas oportunidades culturais e transnacionais, como dizia o Wolfgang Welsch. Há culturas, não cultura. Temos de perceber o que é identidade e o que é pertencer, sem haver clivagem.
Quando um povo massacra o outro, estamos mal, obviamente. Ver isto com naturalidade, mesmo numa guerra, perdoem-me, mas não vejo, nem nesta da Ucrânia. A partir do momento em que há mortos e vidas humanas em jogo, temos de olhar para as coisas de outra maneira, com os direitos humanos sob o pano de fundo. Nós somos um país que estamos no quadro das Nações Unidas e é nessa lógica que nos devemos mover.
Já o patriotismo, Eduardo Lourenço diz, não tem nada que ver com a xenofobia, nem com essa clivagem entre eu e o outro, mas há quem também encare o próprio patriotismo como pernicioso.
G. – Nesse caso, há espaço para uma identidade patriótica portuguesa? Ou continua a ser redutor, na tua opinião?
V. S. – O que é a identidade portuguesa? Eu não sei dizê-lo. Não há portugalidade nenhuma. Gilberto Freyre que dizia que a maneira dos portugueses de estar no mundo é única. Não há nenhum carimbo que diga que nós somos portugueses. Ser português é, constitucionalmente, ter a nacionalidade portuguesa. Pode ter nascido na Malásia, por exemplo, mas será português na mesma. Qual é a diferenciação que é intrínseca ao português? A colonização de Portugal sobre os outros países foi doce, como quer passar a ideia do lusotropicalismo? Há alguma colonização doce? Vamos pensar um bocadinho. Um país existe – pode não existir enquanto país, mas tem os seus habitantes –, chega outro país, subjuga-o e impõe determinadas regras. Isto é violento, obviamente.
G. – Consideras que a lusofonia é uma herança desses ideais ou trata-se de algo mais compatível com uma verdadeira interculturalidade?
V. S. – A palavra-chave é mesmo interculturalidade, que vai para além do Dicionário da Expansão, que diz que a interculturalidade é aquilo que existia no tempo dos descobrimentos. Peço desculpa, mas no tempo dos descobrimentos havia a dominação de um povo por outro.
Quando Fernando Pessoa dizia "a minha pátria é a língua portuguesa", o Mia Couto altera para “a minha pátria é a minha língua portuguesa", porque ela tem vários sotaques. A língua portuguesa não é só uma, é um condomínio que não é português, é um condomínio de todos. A interculturalidade existe quando estão todos ao mesmo nível. Na prática, isso não acontece, pelas relações de poder. Há países pobres, ricos e outros em estágios de desenvolvimento, mas, em termos relacionais, estão todos ao mesmo nível. Ainda bem que "em português nos desentendemos", porque todos a pensar da mesma maneira é que não deve ser. Acho que a diversidade tem que ver com todas essas lógicas, com a língua falada de diferentes formas e em diferentes espaços. Só assim é que há inclusão e respeito pelo outro.
A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), que é o espaço âncora da lusofonia, podia ser muito melhor. Acho que está a fazer coisas interessantes, como a aprovação da mobilidade entre Estados-membros, que pode ser um passo em frente, em termos culturais, para a juventude, nomeadamente. Sendo que Portugal está na Europa, é importante servir de ponte para esses países, mas não como, digamos, o pai. O importante é haver acordos, se [os outros países] não querem usar a palavra lusofonia, não tem problema, desde que ela se pratique nas trocas e na proximidade.
G. – Porque se rejeitaria a palavra lusofonia?
V. S – Em 1996, quando foi criada a CPLP, não existia uma única vez a palavra lusofonia no tratado, porque remete para luso, português. Depois de tantos anos de Portugal a dominar, as então colónias rejeitaram, digamos, esse tipo de lógica. Eu só olho para a lusofonia se ela for inclusiva, se não olhar para a dinâmica portuguesa como se fosse uma colonização doce e se ficar longe do ressentimento.
Tenho muitas participações em universidades do Brasil, de Moçambique e de outras mesmo na Europa. Na Galiza, por exemplo, desprezam muito, digamos, o português. É interessante que Fernando Venâncio escreveu um livro a dizer que o português vem do galego e não ao contrário. Isso vem desconstruir narrativas. Nós temos é que descolonizar um bocado a cabeça, porque as narrativas que foram impingidas ficaram. Hoje, por exemplo, ainda não se evoluiram os manuais escolares. Isso está estudado pelo Centro de Estudos Sociais de Coimbra e, no meu centro de investigação, a Rosa Cabecinhas desenvolveu estudos no quadro do Projeto Aga Khan em Moçambique sobre manuais escolares cá e lá. Os manuais escolares portugueses, de história, nomeadamente, são lusotropicais, e os de lá puxam para a narrativa moçambicana.
G. – A reforma começa pela educação, então?
V. S. – As mentalidades são difíceis de mudar. No meu mestrado sobre educação para os media, ficou logo claro que um povo mais educado percebe todas as lógicas e desconstrói aquilo que nos é apresentado. Às vezes dá-me a ideia de que os Estados não querem povos bem-educados, porque quanto mais educados, mais exigentes, e quanto mais exigentes, menos votam. É interessante este fenómeno de aumento da abstenção, mas tem acontecido. Portugal tem índices cada vez maiores em termos quantitativos de educação e os níveis de abstenção andam pelos 50%, é muita gente. Acho que era importante era votarem todos. A minha convicção é de que vai demorar muitos anos. A descolonização foi feita em 75, já lá vão alguns anos e ainda assim grassa na sociedade portuguesa esta lógica lusotropical, que português é que é bom, que português é grande, diferenciado. Eu digo que os portugueses são como os outros, são de carne e osso, têm sentimentos como os outros, têm o seu contexto, têm a sua relação, mas não há um português igual ao outro.
Estou convicto de que é pela educação que vamos lá chegar, formando professores primeiro, virados para essas dinâmicas e não tendo programas em que é preciso cumprir objetivos muito estritos em termos de matérias, mas abrindo a discussão na própria turma, a participação e a reunião.
G. – E as ações de reparações históricas são um avanço?
V. S. – O caminho para a frente passa por assumir claramente o passado e de falarmos também de restituições históricas, sejam elas quais forem, dentro das condições difíceis que vão ser, seguramente. O passado colonial ainda não passou, como dizia o Roberto Vecchi. É verdade. Ainda agora, o Primeiro-Ministro pediu desculpas em Moçambique por causa do massacre de Wiriyamu, em 1972, indo em contrapé com aquilo mesmo que MRS diz que não faz, que é pedir desculpas. Assume, digamos, a responsabilidade portuguesa pelo massacre em Bafatá (Guiné-Bissau), mas não pediu desculpas. Para mim, se não forem sucedidas por um processo normal de desenvolvimento de relações, as desculpas não valem nada. Mas é um bom sinal e é simbólico.