No dia em que recebemos uma resposta para o pedido de entrevista ao Vítor Sanches, chegou-nos a notícia de que tinha atingido o objetivo da angariação de fundos que lançara há pouco tempo: 650€ para montar um atelier de serigrafia na Cova da Moura. Não só o atingiu, como o ultrapassou. Neste momento constrói, com a ajuda de amigos, família e pessoas que vai conhecendo pelo projeto, aquele que será um espaço não só para a produção da sua marca de roupa, Bazofo, mas também para a comunidade.
A ideia não é de agora e surge, naturalmente, pelo interesse de Vítor pela serigrafia, que foi crescendo à medida que via, também, a sua marca crescer. “O momento certo chegou agora porque tenho um espaço apropriado na Cova da Moura e conheci o Bruno do Atelier Ser, que tem me ensinado a fazer serigrafia. E, obviamente, abrir o atelier vai ser possível graças à angariação de fundos. Fiquei emocionado pela ajuda de tantas pessoas e o sucesso da campanha foi uma grande motivação”, partilha.
No universo de Vítor, profundamente ligado ao lugar que o viu crescer e ao qual regressou, após uns tempos em Londres, a Cova da Moura, a comunidade vive no centro. No centro das preocupações, no centro da cultura, no centro de todas as questões. Além do atelier de serigrafia, em construção, e da Bazofo, a marca que criou em 2016 e que assenta em princípios ecológicos, também dá a cara pela Dentu Zona, um lugar de partilha e encontro e que acaba por reunir todos os seus projetos. Na verdade, todos os projetos de Vítor podem partir de si, mas vivem da teia de pessoas que os co-habitam.
Com o atelier que está agora em construção, pretende controlar a “qualidade dos materiais” da Bazofo, “utilizar tintas ecológicas e vegan” e “evitar desperdício” — mas não se vai “limitar a trabalhar com a Bazofo”. “A minha ideia é oferecer acesso fácil aos serviços de serigrafia (t-shirts, cartazes, panfletos, cartões de visita, etc) para pessoas envolvidas por exemplo em música, activismo e artes, ou que tenham uma pequena empresa. Quero também fazer oficinas na comunidade e assim partilhar o meu conhecimento. No futuro gostaria de poder empregar algumas pessoas”, conta Vítor.


Na Dentu Zona vivem Vítor, a tia Alice, Angela Davis e Djamila Ribeiro
Tudo começou na Tabacaria Tropical, um espaço que surgiu em 2015 e “acabou por ser um ponto de encontro, livraria e um espaço de ativismo”. Como nessa altura tinha mais espaço, Vítor conta que “foi possível fazer eventos como um cineclube, conversas e atividades para crianças da comunidade”. “De certa forma não foi uma novidade porque a Cova da Moura sempre foi um espaço de ativismo e de iniciativas de resistência, mas penso conseguimos contribuir e trazer aqui eventos e conversas importantes, graças a todas as pessoas que participaram. Também foi positivo ter um espaço desse género fora do centro de Lisboa, mas tive de fechar há dois anos.”
Neste momento a loja integra o projeto cultural Dentu Zona — “uma expressão do crioulo cabo-verdiano que significa ‘no bairro’ ” — e que criou este ano para “agrupar todas as actividades dentro de um conceito”. Além da marca Bazofo e da loja que ganhou o nome do projeto, Dentu Zona “inclui mercados para promover os criadores das comunidades negras e sessões musicais na Cova da Moura, para dar palco às artistas”. O atelier de serigrafia, naturalmente, passa a ser mais uma das peças a compô-lo. O objetivo principal, segundo Vítor, é “empoderar a comunidade da Cova da Moura e outras comunidades marginalizadas”.
Quem se dirigir à loja encontra “produtos feitos na Cova da Moura e outras comunidades negras, produtos da Bazofo” e se decidir ficar por lá um pouco, certamente acabará por conhecer alguém. Afinal, este é sempre “um ponto de encontro” — seja com alguém que visite a loja, com a literatura de Angela Davis, Djamila Ribeiro, Bell Hooks ou Amílcar Cabral ou até com os produtos costurados pela tia Alice, a tia de Vítor que é costureira e apoia Bazofo desde o primeiro dia.
“Sentes que esse lugar de encontro que pode ser a literatura, em que conseguimos encontrar-nos ou encontrar as origens de quem somos e leituras sobre o mundo, é essencial em lugares marcados pela segregação social?”, perguntamos-lhe.
“A primeira questão é a questão do acesso. Não é muito fácil encontrar esse tipo de literatura em Portugal e só de ver tantos livros escritos por autoras negras e autores negros, traz um entusiasmo. É importante que as crianças tenham acesso a literatura que as representa, e que também contribui para conhecer as suas raízes e valorizá-las. E o mesmo também é importante na ficção para adultos. Ler sobre a história das lutas anti-coloniais, as lutas anti-racistas e feministas em várias partes do mundo é uma forma de empoderamento e fortalecimento”, respondeu-nos.
Djunta mó e tudo vai dar certo
Na Cova da Moura a cultura não é um elemento que precise de ser levado a. A Cova da Moura vive da cultura de quem lá vive, “alimenta a unidade do bairro e “é uma maneira de valorizar as raízes e passar o conhecimento para os mais novos”. Do festival Kova M à música cabo-verdiana ao vivo, que frequentemente cria a banda sonora da zona, até à Kolá San Jon, uma festa tradicional cabo-verdiana. Vítor vê tudo isto como “uma forma de resistência e sobrevivência”.
“As pessoas de fora parecem sentir muita curiosidade pela parte cultural. Quando vêm ao bairro normalmente ficam curiosas para conhecer mais do dia-a-dia. É positivo quando vejo que essas mesmas pessoas estão connosco não só nos momentos de diversão, mas também nos momentos de luta”, diz-nos.
No trabalho que desenvolve diariamente, “djunta mó”, que quer dizer junta as mãos em crioulo cabo-verdiano, é o mote. “É um conceito de entre-ajuda que marca o dia-a-dia aqui no bairro”, explica. “Nós aqui crescemos a ver os adultos a fazer isso. Foi assim que o bairro foi construído, com ajuda uns dos outros. Então, para mim é natural trabalhar com pessoas, e dá mais gosto também. Quando um de nós sobe, todos subimos.”


Para entender as necessidades da comunidade, é necessário “falar com as pessoas e estar na rua”. E porque as escolhas de uns se refletem nas vidas de outros, todos os detalhes contam: “Se eu quero contribuir com algo positivo, para mim tem que ser em todas as frentes. Por isso, por exemplo, as t-shirts da Bazofo são de algodão biológico, são muito duráveis e têm o certificado Fair Wear. Eu acho que é lógico que se eu quero fazer algo positivo aqui, os materiais que uso não deviam contribuir para danificar o ambiente ou para oprimir trabalhadores em outras partes do mundo”. E é por isso que “também faz parte ser ativista e lutar para sociedades mais justas e contra as forças destrutivas”.
No caminho de Vítor, esse reflexo nxs outrxs e dxs outrxs é alicerce — e dá sentido à vida. Gostava de “contribuir para as pessoas verem que o bairro tem muito para dar e até ensinar, que tem muitas coisas positivas e muito talento aqui [na Cova da Moura]”, de tornar a sustentabilidade acessível e claro, de manter em mente o djunta mó. “Quero participar a manter a tradição do djunta mó, uma maneira de trabalhar em que todos ganham e podemos contar com o apoio de uns aos outros.”
Podes acompanhar a Dentu Zona, aqui.