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42: Arame farpado na rebentação

A crónica ficcional 42 trata de mudanças climáticas, avanços tecnológicos, e transformações sociais, políticas e científicas, centrando-se em Lisboa, na Europa e no mundo no ano de 2042.
No 13.º episódio, Alex narra a sua experiência em Nova Jersey, onde recolhe informações sobre o Movimento Ecomunista, ao mesmo tempo que enfrenta os efeitos das mudanças climáticas.

Texto de Redação

©Nuno Saraiva

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O homem que me recebeu na doca de Nova Jersey era alto, vestia farda do Exército Verde e tinha uma farta cabeleira loira e óculos de sol. Chamava-se Edward Boston. Perguntou-me pela viagem e eu disse-lhe apenas que, se pudesse, evitaria repeti-la (escondendo a realidade sobre o terror que tinha sido para mim). A doca, cheia de poças, tresandava a peixe e havia moscas por todo o lado. Precisávamos sair dali. Edward disse-me que tínhamos um almoço à espera com membros do partido na sede do Movimento Ecomunista em Hoboken, a seguir ao qual poderia começar entrevistas. “Sim, claro. Vamos!”. Mas o homem não parecia ter grande pressa, continuando a falar. Eu podia ficar hospedado lá na sede. Começou a meter as minhas coisas na bicicleta e disse-me que ia demorar uns minutinhos até estarmos pronto. Decidi então afastar-me e ligar à Lia. Debatendo-me com as moscas, lá liguei. Ela estava na viagem de regresso a Lisboa. Tinha parado em Barcelona com o Ettore.

- Chegaste? - Perguntou-me, preocupada.
- Sim, finalmente.
- Não pode ter sido assim tão mau. - tinha conseguido fazer algumas curtas chamadas com Lia antes de sairmos do Mar do Norte, mas depois tínhamos ficado sem sinal.
- Já estou em pânico com a ideia da viagem de volta.
- Oh. Esperava que tivesses gostado. O que aconteceu?
- Muito mau tempo. Pessoas a cair ao mar. Estivemos todos dentro do salva-vidas prestes a abandonar o barco por causa do mau tempo.
- Oh não. Pessoas caíram ao mar?
- Sim. E acho que morreram. Mas ninguém pareceu ligar muito, o que foi horrível. Pelo menos não apareceram piratas. - forcei-me a rir enquanto enxotava moscas. - Como está o António?
- Alex, estás bem?
- Estou tanto quanto é possível. Rodeado de uma nuvem de moscas. Como está o António?
- Está bem disposto, muito animado. Tem dormido bem apesar de toda a agitação e viagens. Queres ouvi-lo? - Encostou o telefone e ouvi a sua respiração pesada durante uns segundos. Depois ficou mais agitado dando pequenos guinchos, altura em que a Lia voltou a falar. - Olha, falei com a Josephine e ela sugeriu que eu te ajudasse com o livro. Deu-me muito material. Uma parte vou enviar-te pela net. Será que também posso enviar coisas por correio?
- Acho impossível receber coisas por correio, vou estar sempre em movimento. Mais vale juntarmos o material quando eu voltar.
- OK. Olha, sabes que não és muito organizado, por isso vou-te enviando algumas coisas que acho que te podem ajudar, cronologias de eventos importantes ou a forma como as organizações se relacionam umas com as outras e assim.
- Isso vai ajudar imenso com as minhas pesquisas. Já percebeste que está tudo bastante confuso, não é?
- É normal, ainda estás a reunir a informação.
- Obrigado pela ajuda. Olha, parece que o americano finalmente se despachou e agora está a olhar para mim como se fosse minha culpa. Vai levar-me a almoçar ao partido ecomunista.
- Como é Nova Iorque? Já viste a Estátua da Liberdade?
- Não, viemos para Nova Jersey, mesmo ao lado.
- Oh, que pena. Se precisares falar mais tarde, liga. - Do outro lado, o bebé começou a chorar - Vou dar-lhe de mamar. Muitos beijos, meu amor.
- Amo-te muito, Lia.
- Eu também.

Edward tinha tirado a bicicleta dupla do estacionamento e colocada as minhas coisas num carrinho fechado de duas rodas que vinha atrás. Sentou-se à frente e eu no selim traseiro. Ligou o pequeno motor elétrico e arrancámos.

- Não precisa de pedalar, se não quiser.

Percorremos as ruas de Nova Jersey cheias de pessoas, bicicletas, skates e trotinetes. Pareceu-me muito mais caótico do que já tinha visto em qualquer outra cidade. Os telhados dos prédios brilhavam com o reflexo do sol nos painéis solares, enquanto a nível da rua pequenas farmácias e lojas de reparações pontuavam os largos passeios onde grupos de jovens se reuniam em conversas animadas. Árvores jovens e arbustos preenchiam o centro das ruas, intermediadas por pequenas fontes a cada 200 metros. No que parecia ser um antigo centro comercial, o “mall”, erguia-se agora um enorme complexo hospitalar, cujo nome em grandes letras soletrava “Veteran’s Hospital”. Um outdoor abaixo dizia “No fees or insurances”. O céu ficou cinzento e começou a carregar-se. Apesar do calor, caiu uma tromba de água mesmo em cima de nós. Tive receio que aquilo pudesse estragar os meus livros e computador. Toquei nas costas de Edward e ele encostou. Apontei para o carrinho. Ele tranquilizou-me: “It’s waterproof!”. Era à prova de água.

Mas a roupa não era e passado 20 minutos a pedalar pela faixa ciclável, finalmente chegámos ao edifício, mas eu estava encharcado. As ruas tinham-se esvaziado. Apesar da pesada chuva, pude apreciar o bonito edifício que era sede do movimento. Parecia ser bastante antigo, com letras metálicas descrevendo: ECOMUNIST MOVEMENT - US - NEW YORK DIVISION. O rés-do-chão era composto de montras de vidro, sob as quais estava pintado um enorme mural onde se viam membros do Exército Verde escavando o solo em conjunto com camponeses. Pareceu-me um pouco antiquado.

- You should go up to your room and change! (Vai ao teu quarto mudar de roupa). - apontou-me para uma porta metálica ao lado dos vidros e pôs um código que a abriu.

Quando entrei havia um homem muito grande e gordo no corredor, que me cumprimentou com um largo sorriso:

- Olá, companheiro. Bem-vindo. - Abriu-me a porta de um dos quartos que havia dos dois lados do corredor. - Estás encharcado. Vou buscar-te roupa seca.
- Obrigado. - Abri a minha mochila e de facto estava tudo seco. Tirei os livros e o novo computador que o Gianni me tinha dado. Havia net. Abri os correios que a Lia me tinha enviado. Entretanto, o homem bateu à porta e entrou. Trazia uma espécie de macacão verde, parecido com uma farda do Exército Verde, mas menos marcial. Ele próprio tinha um macacão parecido, embora o seu fosse azul claro. - Aqui tens.

Depois de mudar de roupa, sentei-me para começar a ler o que a Lia me tinha enviado quando Edward bateu à porta. - Vens? - disse a voz lá de fora. - Tens um monte de gente lá em baixo à espera para te conhecer.

- Vou, vou. - As leituras teriam de esperar. Pus os meu Babel.

Na sala principal estava uma mesa cheia de comida, com várias pessoas de pé à volta. Edward pigarreou e toda a gente se voltou na nossa direção.

- Olá companheiras e companheiros. Este é Alex Aguas, o companheiro que vem de Portugal numa missão para o Movimento. Ele poderá contar-vos um pouco sobre o que se passa na Europa, mas principalmente, têm de ajudá-lo com a informação de que ele precisa.

Um a um aproximaram-se de mim e apresentaram-se:

- Leticia Gold, energia. - fez uma ligeira vénia com a cabeça ruiva.
- Diego Patrizio, educação. - estendeu-me a mão.
- Lizzi Tyler, moral revolucionária.
- Ellie Lumpert, justiça.
- Oscar Gonzalez, calor.

Eram doze no total, cumprimentaram-me um a um, falando de diferentes áreas da sociedade em que os ecomunistas estavam envolvidos, que eram todas. Tinham entre vinte e trinta anos e  alguns vestiam os macacões verdes. No final, claro que não me lembrava do nome nem da área de ninguém. Tinha um formulário preciso de perguntas que Gianni tinha posto no computador. Propus falar com cada um após comermos, e toda a gente aceitou.

Durante a refeição fui bombardeado por perguntas sobre os mais variados temas - se ainda havia Muralha na Europa depois da amnistia, como corria a luta contra a Máfia, como se tinha lidado com o calor este verão, como estava a correr a guerra contra o Estado Islâmico no Médio Oriente e no Congo. Poucos me perguntavam sobre Portugal, do qual sabiam pouco. Apenas um homem latino, Óscar, me perguntou sobre Lisboa.

- Ouvi dizer que as cheias na cidade há uns anos foram terríveis. Como estão agora?
- Agora estamos num ciclo das secas. Considerando o calor que esteve na cidade, este ano correu razoavelmente bem. E mesmo a nível de incêndios temos muita mais capacidade de combate em relação ao passado.
- Vocês não têm problemas de bolbo húmido mortal, não é? - acenei que não - Óptimo, é um alívio. Mas fale-me sobre a floresta. Vocês fizeram um grande projeto?
- Sim, mas mais no mundo rural do que em Lisboa. Plantaram-se ao longo dos últimos doze anos centenas de milhares de hectares com carvalhos e castanheiros, outras espécies locais e árvores do Norte de África. Foram plantadas no antigo deserto verde que era a paisagem portuguesa, que era uma mistura de eucalipto com acácias e outras árvores explosivas. Está a acontecer um grande projeto de substituição de paisagem. Até agora os incêndios têm baixado, mas também temos muito mais gente a viver perto de áreas florestais, então estão mais limpas e há maior vigilância. Aqui não há grandes problemas de incêndios, pois não?
- Aqui é muito comum apanharmos com o fumo vindo de outros locais: do Canadá, do Quebec, e do Sul, do Mississippi e do Alabama. Por vezes, até chega o da Amazónia. Por isso, nos meses mais quentes é frequente haver alarmes de ar perigoso e não podermos sair de casa. Às vezes os fumos e cinzas entopem mesmo as bombas de calor e sistemas de refrigeração. Mas arder, Nova Iorque arde pouco.
- Como está a situação de água e calor?
- A humidade aumentou bastante, e por isso temos grandes trombas de água. Felizmente os projetos de aumento de infiltração têm diminuído as cheias. Há pelo menos quatro anos que ninguém morre numa. Por outro lado, já tivemos emergências de bolbo húmido no verão mais que uma vez, e este ano instalámos os alarmes de bolbo húmido - olhe, está ali o gráfico. As pessoas ainda não se habituaram aos graus Celsius. Apesar do nevão de há umas semanas, em geral deixámos de ter invernos brancos. Para reduzir o efeito de ilha de calor, estamos a reduzir a altura dos arranha-céus, combinando com florestação e o levantamento do alcatrão, mas há muita gente a resistir.

©Nuno Saraiva


- A resistir?
- Sim, temos mesmo manifestações contra o desmantelamento de torres, bloqueios quando estamos a tirar alcatrão das ruas. Geralmente são as pessoas de Manhattan. Que ainda por cima é das zonas onde mais cheias há. - Fez uma pausa e olhou-me. - Que idade tens, Alex?
- Tenho 30, porquê?
- Nada, apenas curiosidade. E estás no movimento há muito tempo?
- Na verdade, não estou no movimento. Quer dizer, estou a fazer este trabalho, mas não sou oficialmente membro de nada. E até há uns meses apenas participava em Lisboa.
- Então como vieste aqui parar? - parecia desconfiado.
- Estou a escrever um livro sobre a Grande Mudança e um dos dirigentes italianos do movimento, o Gianrocco Fratin, propôs-me que viesse fazer este trabalho no continente americano.
- Fratin? É um dos grandes dirigentes europeus. Costumamos ler algumas coisas que ele escreve. Como é que ele é?
- É muito simpático. Mas a minha família também fazia parte do movimento. A minha mãe, por exemplo, era militante internacional. Chamava-se Marta Garrida.
- Não sei quem é. - sorriu.

Entretanto virei-me para Edward e perguntei-lhe também pela minha mãe.

- Marta. Ela foi dirigente do Exército Verde.
- Quando?
- Ela esteve cá no fim da Guerra Civil e nos anos seguintes.
- Do que eu sei, nessa altura não havia cá Exército Verde. Mas também só estou no movimento há quatro anos, Alex.

Terminado o almoço, as pessoas levantaram os pratos e comecei as entrevistas. Eram todas relativamente parecidas, mas ainda demorava uns 30 minutos a acabar a cada formulário. Demorei boa parte da tarde. As últimas pessoas que ficaram já estavam bastante aborrecidas e reclamavam com Edward, que lhes dizia que tinha de acontecer hoje. Quando acabámos finalmente, mais de três horas depois, enquanto o último saía, Edward reapareceu trazendo um prato de comida para mim.

- Terminaste todos os relatórios?
- Sim, felizmente. - Estava mesmo cansado.
- Amanhã tens o dia livre mas o plano é seguires de comboio para Minneapolis depois de manhã. Já te enviei pela NYNET a informação de transportes e coisas interessantes acerca da cidade.
- OK, eu vejo no quarto então. - Peguei no prato e no computador e levei-os comigo. - Levo a comida para o quarto. Vemo-nos amanhã?
- Estarei aqui de manhã. Se precisares de alguma coisa, pode pedir ao Karl, que deve andar pelo corredor ou no seu quarto, que diz “Cuidados” na porta. Boa noite.
- Boa noite, Edward.

Quando entrei no quarto deitei-me, exausto. Fechei os olhos alguns minutos. Depois sentei-me e peguei no relatório sobre a viagem da minha mãe desde as Honduras até à Califórnia. Li umas linhas, mas estava demasiado cansado. Abri o computador, voltando às mensagens da Lia.

A primeira era uma lista de todas as organizações sobre as quais tínhamos falado, e uma espécie de esquema de ligações das organizações entre si. Tinha não só as ligações próximas dos ecomunistas e Tratado Mundial, mas também as da Muralha e da máfia. Outro ficheiro que me enviou era um podcast de um livro sobre Moçambique, de onde era a minha avó paterna. Abri o documento e pu-lo a tocar enquanto comia. Era um livro escrito por Ali Macuácua, chamado “Riptide Barbed Wire”, “Arame Farpado na Rebentação”, uma história sobre o norte de Moçambique antes das guerras santas e das revoluções que levaram à criação da República Oriental Africana.

©Nuno Saraiva

I

O dia começou nebuloso e cinzento. O Ibo tinha sido um lugar tão solarengo desde a chegada, há alguns meses, que hoje parecia um sonho. Rassaba sabia que o dia ia ser uma loucura. Tinha de juntar os seus poucos pertences, as roupas dos miúdos, os brinquedos e os medicamentos de Ali antes de partir. Tinham sido convidados por TiAlice para ficarem em sua casa com a família dela, pois as tendas brancas dos refugiados não podiam aguentar a tempestade. Ainda assim, não havia ninguém para fechar as tendas e guardá-las. Com sorte, alguma coisa poderia sobreviver. Ou talvez a tempestade não fosse assim tão má. Se calhar depois da tempestade o administrador conseguisse encontrar uma casa para eles, como tinha prometido no dia em que ela e o irmão tinham desembarcado. Ou talvez houvesse uma forma de regressar a terra firme. Entre dormir e acordar, Rassaba tentava reunir um pouco de energia para aguentar o dia. As crianças estavam um pouco mais letárgicas, acordadas mas deitadas, em vez de gritarem e pularem. Tinham ficado cada vez mais assim desde que tinham perdido os pais. Assante, o mais pequeno, que tinha começado a falar com um ano, tinha parado de o fazer. Pelo menos na semana anterior tinha voltado a sorrir. Abriu metade dos olhos e Raissa, a segunda mais velha, estava a olhar para ela, com as duas mãos sob o queixo, sorrindo. Não havia mais como adiar, era altura de se levantar.

Quando abriu a tenda, reparou que toda a gente parecia estar com pressa. A lama era espessa e cheia de marcas de pés e chinelos. Acordou Ali com um beijo carinhoso e disse-lhe para ir fazer chichi. "Mas está a chover!", respondeu ele, mal-humorado, enquanto se dirigia para a rua. Rassaba estendeu a capulana no chão sobre a esteira de palha e começou a abrir os pequenos sacos de plástico um a um: dois pães, arroz cozido, bananas, coco e açúcar. Dividiu a comida entre as crianças mais pequenas, guardando o arroz e alguns pequenos pacotes de caril para mais tarde. Ela comeu apenas um pequeno pedaço de pão e uma banana. Esperava que as mulheres mais velhas lhes pudessem dar mais comida. Provavelmente também havia grandes sacos de arroz armazenados no posto administrativo.

Fechou os sacos com os restos de comida e a capulana azul e amarela com a cara de Josina Machel, e entregou-a a Raissa. Juntou o resto dos pertences num grande saco de arroz branco do PAM. Enquanto Assante e Ali brincavam com um carro de madeira e arame, imitando sons de motores, Rassaba pediu às crianças que esperassem enquanto ela ia ver o mar. Apesar de ter vivido sempre perto dele, nunca se tinha sentido muito à vontade perto da água grande. 

Só precisava de andar alguns metros para chegar à praia e ver o Oceano Índico. Normalmente, era azul esverdeado límpido, mas hoje estava cinzento e branco. Diferentes ondas convergiam e batiam umas nas outras, produzindo explosões abafadas. Ela ficou ali, no meio dos barcos ancorados na areia, a olhar para o que parecia ser madeira à deriva a ir e vir. Passados alguns instantes, apercebeu-se de que era um cão castanho que nadava em direção à costa. No entanto, os seus esforços eram em vão, pois era sempre empurrado para o fundo do mar. Desapareceu durante alguns momentos para ressurgir alguns metros mais perto de terra, mas uma onda bateu-lhe na cabeça e ele foi puxado de novo para debaixo das ondas. O focinho preto encharcado apareceu no meio da água branca, com objectos a boiar ao seu lado - cordas, sacos de plástico, algas, restos de redes de pesca - e uivou fracamente, sendo empurrado de novo para a praia. Rassaba observou a cena durante alguns minutos, vendo o cão a lutar para se manter à tona e chegar a terra, enquanto se afastava cada vez mais das areias brancas. Por fim, já não conseguia ver mais nada e começou a choviscar.

Voltou para a tenda e chamou toda a gente. Os quatro - Rassaba, Raissa, Ali e Assante - saíram em direção à cidade de cimento, com os chinelos a baterem palmas nos pés quando se descolavam do chão lamacento. Começaram a andar na velha calçada de Ibo, debaixo de chuva. 

A TiAlice falava Mwani, ao contrário da maioria das pessoas do Ibo que a Rassaba tinha conhecido. Muitas pessoas de Macomia e mesmo algumas pessoas que Rassaba conhecia de Mocimboa encontravam-se ali. Tinha-se tornado um ponto de encontro regular, em particular para os refugiados mais jovens. A TiAlice era curandeira, embora alguns lhe chamassem feiticeira, e distribuía peixe seco ao grupo de vinte e poucos que se reunia no seu alpendre e debaixo das árvores da rua em frente à sua casa. O grupo não queria que outros se juntassem, mas a filha de Alice continuava a trazer mais pessoas e distribuía bananas aos outros moradores da rua que passavam, indo e vindo do acampamento.

Naquele dia, quando os quatro chegaram à porta da casa dela já chovia e não havia ninguém do lado de fora. Rassaba bateu à porta e a velha curandeira abriu-a com um sorriso largo, a que faltavam alguns dentes de lado. "Sejam bem-vindos, meninos, tirem os sapatos e sequem-se". Tinha um pequeno fogão a aquecer a cozinha, onde alguém estava a cozinhar amendoins. Os rapazes tiraram as camisolas (uma do FC Barcelona, a outra do Bayern de Munique) e secaram-se numa capulana xadrez que a TiAlice lhes tinha emprestado. 

Sentaram-se na cozinha enquanto outros foram chegando ao longo da manhã. Rassaba conhecia todas as pessoas que ali estavam. A maior parte tinha vindo do continente depois de o Al Shabab ter atacado as suas aldeias. Os quatro irmãos, agora sob a alçada da irmã mais velha, tinham perdido os pais para os terroristas e para a polícia. As histórias terríveis que tinham para contar sobre decapitações, violações, mortes, fugas e esconderijos escuros eram partilhadas com muitas das outras pessoas que ali se encontravam. Tinham acabado por se sentir confortados por essa herança comum de horror, dor e perda, pelo companheirismo de partilhar a miséria da deslocação. Muitas vezes choravam nos braços umas das outras, ela e as mães que tinham perdido os filhos e as filhas, os adolescentes e as crianças que estavam agora sozinhas no mundo, ou que simplesmente se tinham separado dos pais e não sabiam nada das famílias que lhes restavam. A TiAlice tornou-se um lugar comum e uma pessoa comum para esta assembleia de tristeza, que ela iluminava com a sua bondade, as suas sopas quentes e as suas canções. Era velha, mas ninguém sabia dizer quantos anos tinha. A filha devia ter uns cinquenta anos, e nunca viram outros filhos ou netos, o que era muito estranho, mas talvez não para uma feiticeira. Ela disse que agora era do Ibo, que tinha sido a sua casa durante muitos anos, mas que a sua casa tinha florescido com a chegada dos refugiados. Naquela manhã, ninguém estava a recordar as tragédias recentes. Todos estavam preocupados com o futuro, não com o passado.

Pelas onze da manhã chegaram as últimas pessoas: um homem forte e muito escuro entrou com a filha da TiAlice. Tinha uns 20 anos, mais velho que ela, e sorria para todos quando passava. Perguntou a Rassaba, em swahili, se se podia sentar ao lado dela e ela acenou com a cabeça em sinal de concordância. Rassaba estava sentada com Assante ao colo. O homem, que se apresentou como Ismail, estava encharcado e disse-lhes que estava mesmo a chover um dilúvio lá fora, com um rio no local onde uma hora atrás estava uma rua. O vento assobiava no telhado de zinco e nas janelas fechadas com tábuas. A Tia deu a cada um meio pão e alguns amendoins e todos os mordiscavam. Dois homens mais velhos fecharam a porta com pregos e um martelo. Por volta do meio-dia, a casa tinha trinta e uma pessoas e dois cães dentro. De vez em quando, outras pessoas batiam e gritavam lá fora, pedindo para entrar, mas a Tia não dizia nada e ninguém intervinha em seu favor.

As crianças cantavam alto enquanto a TiAlice e a sua filha consolavam as pessoas e distribuíam água. Havia um quarto nas traseiras com uma latrina no chão, protegida das vistas apenas com uma velha cortina colorida como porta. O teto da cozinha e das salas, mal iluminado por candeeiros simples, começou a pingar. Primeiro gotas pequenas, depois gotas grossas e, por fim, um fio constante de água corria junto às paredes e nos fios eléctricos que levavam às lâmpadas. Por fim, a eletricidade da casa entrou em curto-circuito, com o estrondo de uma das lâmpadas. Rassaba nem sequer sabia como é que a casa da Tia tinha eletricidade, pois não tinha visto nenhum gerador no exterior. A casa estava agora às escuras, com uns fios de luz a entrar pelas fendas das janelas e do teto. Raíssa e Ali, que até então cantavam meio divertidos meio assustados, sentaram-se ao lado de Rassaba, seguraram as mãos um do outro e choraram. Assante mantinha os olhos fechados, enquanto ela cantarolava canções de ninar ao seu ouvido. As horas foram passando.

O som lá fora era tão alto que parecia que em toda a casa havia pessoas a gritar e a bater para entrarem. A latrina não tardou a transbordar e vários centímetros de água fétida começaram a subir à sua volta. Rassaba sentiu nitidamente pêlo molhado roçar-lhe as pernas e, ao seu lado, Raíssa estremeceu quando uma ratazana tentou subir-lhe pela perna. Todos já estavam de pé, exceto Alice, que tinha um banco de madeira onde se sentava e fumava um cigarro Chesterfield ao contrário, com o filtro de fora. O som tornou-se tão alto que a maioria das pessoas tapou os ouvidos. As crianças choravam agora, mas já não se ouvia nada, exceto o vento e a chuva do ciclone Kenneth.

Quando a água lhes chegou aos joelhos, Ismail começou a gritar e dirigiu-se a TiAlice, apontando para cima. Rassaba entendeu: deviam tentar encontrar um sítio mais alto para ficar. Rassaba pensou no sítio onde tinham dormido naquela noite, muito abaixo do bairro de cimento, e em todas as tendas que lá estavam montadas. Já deviam estar completamente submersas, assim como todos que tivessem ficado, ignorando os avisos. TiAlice fez um gesto para que todos se acalmassem, segurando com as mãos alguns dos seus móveis que flutuavam. O som continuava a aumentar, e não se ouvia mais nada. Era como estar no meio de ondas de choque ininterruptas. As pessoas olhavam umas para as outras e gritavam, mas nada se ouvia, o que as obrigava a recorrer a sinais, pouco visíveis no escuro.

De repente, a cozinha ficou um pouco mais clara. A luz vinha da sala ao lado. Todos olharam para lá, onde o telhado de zinco começava a subir, deixando entrar luz, vento e chuva. As crianças agarraram-se a Rassaba e ela, por sua vez, agarrou-se ao braço de Ismail. Estavam agora a levar com muita chuva na cara. E então aconteceu.

A parede de adobe onde se encontrava a porta de entrada ruiu subitamente para fora, arrastando consigo partes do chão. Uma jovem mulher foi arrastada para fora com o chão de terra. Se não fosse um grupo de mãos que a segurou e puxou, ela teria desaparecido na forte torrente de lama que corria ruidosamente lá fora. Toda a gente recuou do local onde se encontrava a parede. O telhado tremeu e as pessoas cobriram as cabeças. Mas em vez de desabar, simplesmente desapareceu voando pelo ar, fazendo com que todos os que estavam nas quatro divisões da casa semicerrassem os olhos por causa do clarão de luz que entrava em toda a casa. A parede da cozinha começou a desmoronar-se de cima para baixo, um tijolo de cada vez, enquanto Ismail apontava desesperadamente para cima. TiAlice também fez sinal para que subissem a rua das traseiras, apontando para a porta da cozinha. Correu para as outras divisões, cobrindo a cara para se proteger dos destroços que voavam pela casa. Fugir de casa era urgente e as pessoas começaram a arrancar as tábuas de madeira que protegiam a porta.

Rassaba agarrou em Assante e Ali, com Raissa ao seu lado, e seguiu-os para fora da porta. Queria trazer as suas coisas, mas Raissa não as tinha agarrado e agora era impossível encontrá-las. Carregando o peso dos dois irmãos mais novos e sendo agarrada pela irmã, ao sair, Rassaba pensou que não conseguiria andar muito tempo com todos a pesarem-lhe. 

Tinha perdido de vista TiAlice e a filha. A rua principal era um verdadeiro rio de água barrenta e objectos, e a velocidade da corrente ameaçando arrastar quem se atrevesse a aventurar-se nele. Por isso, começaram a andar por ruas mais pequenas, algumas pessoas subindo aos alpendres mais altos. Ao ar livre, ela podia ver que todas as palmeiras tinham caído, a maioria das casas tinha perdido as paredes e muitas não tinham telhados. No céu, voavam todo o tipo de objectos, mas sobretudo folhas de palmeira e telhas, em todas as direcções. Quando estavam a subir o beco que Rassaba pensava ser aquele que Tia tinha indicado antes de sair, um tijolo vermelho caiu mesmo nas costas de Raíssa, que por sua vez caiu na água lamacenta. Rassaba, com duas crianças ao colo, ajoelhou-se ao lado da irmã mais nova, gritando para que ela se levantasse. As suas lágrimas misturavam-se com a chuva forte, enquanto Raíssa lutava para se levantar, coberta de lama e com as costas a sangrar. Rassaba poisou Ali no chão e disse-lhe para lhe agarrar a perna enquanto ela ajudava Raissa a levantar-se e a andar. Caminhavam agora com os pés descalços no meio de um rio de detritos que chegava à sua cintura. Sentiu algo bater-lhe na perna e rasgar-lhe a pele debaixo de água. Teve a certeza de que não iriam sobreviver.

No entanto, o som rapidamente começou a desvanecer-se para quase silêncio e a chuva parou completamente. Agora ouvia distintamente toda a gente, incluindo ela própria, a chorar e a gritar ao longe. Um grupo de pessoas, liderado por Ismail, aproximou-se deles, falando invulgarmente alto, hábito das horas anteriores. Ele pôs Ali às suas costas e deu a mão às raparigas, guiando-as para o forte, rua acima.

Mal tinham entrado no forte quando o som estrondoso recomeçou, com a fúria do ciclone a regressar e os objectos a levantar voo novamente. O antigo edifício não vacilou, no entanto. Apesar da chuva intensa e do vento forte, Rassaba achava que não ia inundar, com sacos de areia a encher as entradas mais vulneráveis. Cães, gatos e ratos corriam de um lado para o outro, mas Rassaba deixou-se sentir mais segura. Pediu a Ismail que a ajudasse a encontrar um sítio para ela e para os irmãos e que alguém lhes tratasse das feridas. Ela tinha um longo corte a sangrar na perna esquerda, Raissa tinha um buraco nas costas e todos eles, exceto Assante, tinham cortes e hematomas nos pés. Ismail disse-lhe que seria difícil obter ajuda médica em breve, apontando para um grupo de macas no chão ao lado deles, onde pelo menos cinco pessoas sangravam abundantemente, rodeadas por duas mulheres com trajes de profissionais de saúde, e duas crianças mortas. Trouxe-lhes ligaduras e uma garrafa de água e tapou-lhes as feridas. Raissa chorou quando ele tentou limpar a sua ferida, que sangrava muito. Os rapazes dormiam numa esteira no chão entre um coro de lamúrias. A nova chefe de família sentia a boca completamente seca. As irmãs deram as mãos e Raissa perguntou: "Que dia é hoje?".

©Nuno Saraiva

Era o dia 25 de abril de 2019. Pelas 16 horas, o pior do ciclone Kenneth, o mais forte de sempre a atingir a África continental até então tinha chegado e passado sobre o Ibo, seguindo para o continente, onde devastaria Macomia e Quissanga, atingindo ainda Pemba, Mocimboa da Praia, Palma e toda a costa da província moçambicana de Cabo Delgado. O Kenneth atingiu Cabo Delgado em pleno período de seca. O calor no Canal de Moçambique (o oceano entre a costa de Moçambique e a ilha de Madagáscar) era suficientemente elevado para que Kenneth se intensificasse de uma tempestade de categoria 1 para uma tempestade de categoria 4 em apenas um dia. A velocidade dos ventos atingiu 215 km/h. Mais de 90% de todas as casas de Ibo foram destruídas. Rassaba fez 13 anos nesse dia.

©Nuno Saraiva

A província mais a norte de Moçambique, Cabo Delgado, teve muitas das suas cidades e aldeias devastadas, mas nenhuma mais do que o Ibo, uma ilha paradisíaca no Oceano Índico conhecida pelos seus edifícios históricos que datavam do século XV, misturando estilos africanos, árabes e coloniais. A ilha fica bem no meio do Parque Nacional das Quirimbas, uma das regiões de maior biodiversidade do mundo, onde tubarões, baleias, golfinhos, tartarugas, raias manta, elefantes, leões, hipopótamos, leopardos, búfalos, kudus, elandes, cães selvagens africanos, hienas e todos os peixes e aves de coral que se possa imaginar existiam.

Em poucos anos, milhões de pessoas seriam mortas e deslocadas, numa guerra entre o Estado Islâmico, o exército moçambicano, mercenários russos do Grupo Wagner e o exército ruandês. Durante esse período, a costa deste Maputo até Palma seria devastada por mais de doze ciclones, por vezes mais do que um por ano. O califado Aden Ayro seria erigido nesse período, ocupando a exploração petrolífera da francesa total no Rovuma, a exploração de diamantes, rubis e madeiras em terra e impondo uma devastação total das áreas florestais, contribuindo assim para o desaparecimento de milhões de animais, incluindo todos os leões, leopardos e cães selvagens africanos. A batalha pela reconquista do califado, constituído por partes do Norte de Moçambique e do Sul da Tanzania lançaria a criação da República Oriental Africana, declarada no ano do Leão, ano em que desapareceu o último leão em liberdade.

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Mariana Jones: “Os ataques à liberdade de expressão estão a normalizar-se”

4 Setembro 2024

42: Mau tempo no Atlântico

Academia: cursos originais com especialistas de referência

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Financiamento de Estruturas e Projetos Culturais [online]

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30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Criação e manutenção de Associações Culturais (online)

Duração: 15h

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30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Soluções Criativas para Gestão de Organizações e Projetos [online]

Duração: 15h

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30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Escrita para intérpretes e criadores [online]

Duração: 15h

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Iniciação ao vídeo – filma, corta e edita [online]

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30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Jornalismo e Crítica Musical [online]

Duração: 15h

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30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Fundos Europeus para as Artes e Cultura II – Redação de candidaturas [online]

Duração: 15h

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Viver, trabalhar e investir no interior [online]

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Comunicação Cultural [online e presencial]

Duração: 15h

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30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Narrativas animadas – iniciação à animação de personagens [online]

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Planeamento na Produção de Eventos Culturais [online]

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30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Introdução à Produção Musical para Audiovisuais [online]

Duração: 15h

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Investigações: conhece as nossas principais reportagens, feitas de jornalismo lento

22 Julho 2024

A nuvem cinzenta dos crimes de ódio

Apesar do aumento das denúncias de crimes motivados por ódio, o número de acusações mantém-se baixo. A maioria dos casos são arquivados, mas a avaliação do contexto torna-se difícil face à dispersão de informação. A realidade dos crimes está envolta numa nuvem cinzenta. Nesta série escrutinamos o que está em causa no enquadramento jurídico dos crimes de ódio e quais os contextos que ajudam a explicar o aumento das queixas.

5 JUNHO 2024

Parlamento Europeu: extrema-direita cresce e os moderados estão a deixar-se contagiar

A extrema-direita está a crescer na Europa, e a sua influência já se faz sentir nas instituições democráticas. As previsões são unânimes: a representação destes partidos no Parlamento Europeu deve aumentar após as eleições de junho. Apesar de este não ser o órgão com maior peso na execução das políticas comunitárias, a alteração de forças poderá ter implicações na agenda, nomeadamente pela influência que a extrema-direita já exerce sobre a direita moderada.

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