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42: Mau tempo no Atlântico

A crónica ficcional 42 trata de mudanças climáticas, avanços tecnológicos, e transformações sociais, políticas e científicas, centrando-se em Lisboa, na Europa e no mundo no ano de 2042.
No 12.º episódio, Alex enfrenta os perigos do Atlântico numa viagem turbulenta, marcada por tensões políticas e naturais, enquanto se dirige para Nova Iorque.

Texto de Redação

©Nuno Saraiva

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O comandante Groen era um simpático flamengo, alto, magro e com o cabelo muito vermelho. Enquanto nos afastávamos da doca, levou-me na direção de um mais velho do que nós.

- Enke, podes levar o nosso convidado até ao camarote do 2º piloto?
- Qual é? - Respondeu-lhe, com um ar frustrado. Era mais alto que o comandante, tinha cabelo e barba tão loiras que pareciam brancas. Os seus olhos eram cinzentos claros e desconfiados.
- Tu sabes qual é.
- No fundo da primeira coberta?
- Sim. Depois encontre-me na ponte, Sr. Águas.

O homem pegou a minha mala e ofereceu-se para levar a mochila, mas achei que não valia a pena. Estendi-lhe a mão para o cumprimentar e ele olhou-me, surpreendido. Hesitando, lá me apertou a mão. 

- Heitink, Enke Heitink. 
- Alex Aguas. - virou-me as costas e começou a andar, esperando que o seguisse, falando alto.
- Você é manda-chuva dos ecomunas, não é?
Liguei o meu tradutor de pescoço. Ele olhou para trás e sorriu.

- É mesmo. Esses Babel são difíceis de arranjar. 

- Eu estou a escrever um livro. Não sou ecomunista.
- Ahhhhh, duvido. Se não fosse ecomuna não ia nos camarotes finos. -
Depois de descermos as escadas e andarmos poucos minutos abriu-me a porta e despediu-se secamente. - Chegámos.

©Nuno Saraiva

O pequeno quarto amarelo tinha uma cama encostada na parede. O colchão levantava-se como a tampa de um baú, onde pude guardar roupas, livros e o computador. Tinha ainda uma pequena mesa com candeeiro, prateleiras e uma janela redonda. Olhei e estávamos uns 20 metros acima da linha de água. Conseguia ver a outra margem do rio Scheldt, oposta à rica cidade de Antuérpia, capital da Flandres. Depois de guardar as coisas saí do quarto e subi para procurar a ponte. O tradutor não servia de grande ajuda. Nos sinais podia ler: Dek, Dekking 2, Dekking 3, Kelder 1-10, Kelder 11-20, Nooduitgang e Brug. Subi as escadas que davam para o convés. Cá em cima havia uma espécie de edifício de 4 andares na parte de trás do navio, com contentores coloridos ocupando toda a superfície até à frente, erguendo-se apenas as enormes “velas” eólicas solares. A ponte seria no tal edifício. Subir umas escadas laterais até encontrar uma porta onde estavam várias pessoas e entrei.

- Bem-vindo, bem-vindo. - disse-me o comandante. - Este é o Sr. Águas, que vai acompanhar-nos até Nova Iorque. - Algumas pessoas sorriram, enquanto outras olhavam para o painel de instrumentos e pela janela. Já não se via Antuérpia.

- Esta é a Imediato do navio, Srª Buez. - Uma mulher muito alta, com largas maçãs do rosto cumprimentou-me. - Ela é que manda em tudo.
- Sr. Aguas, ouvi dizer que está a escrever um livro? Sobre o que é?
- É sobre a Grande Mudança.
- Tema pequeno. Vai falar sobre o quê? 
- Sobre como o mundo mudou, sobre quem esteve envolvido, as revoluções, as guerras…
- Aqui no navio tem pessoas dos dois lados da barricada, se é que podemos falar de dois lados.
- Sim?
- Claro. A marinha civil é quase toda assim. Eu e o primeiro piloto, por exemplo, sempre estivemos do lado da revolução, eu na Transpiness e ele no Exército Verde. Entre os tripulantes há principalmente neoluditas e muralhistas, embora também cá estejam alguns que simplesmente gostam de mar. Aqui o comandante era neolud, mas nós já o perdoámos.
- Riu-se.
- Mas só no início! - riu-se também, com os caracóis vermelhos abanando.

- Bem, temos de continuar a manobra, Sr. Águas. - disse a Imediato - Pode assistir, se quiser. Senão encontramo-nos mais tarde. A tripulação é pequena mas convém que os conheça. É importante não ultrapassar as barreiras sinalizadas, porque é perigoso, em particular no mar. - sentei-me numa cadeira, observando as pessoas entrando e saindo da ponte, enquanto serpenteávamos o rio. Passado algum tempo o rio começou a ficar mais largo, as ondas mais fortes e senti uma ligeira náusea. Estávamos a chegar à barra, a sair para o mar.  O meu enjoo aumentou um pouco e levantei-me para sair da ponte.

- Está bem? Se precisar de comprimidos, pode pedir ao Dr. Spinoza. - disse-me o comandante.

- Vou só apanhar ar. - Abri a porta e o ar frio com gotículas de água atingiu-me a cara, o que me melhorou logo a disposição. Olhei para o mar em frente e do lado direito vi a costa, coberta pelas paredes de pedra e cimento que se erguiam à frente das povoações da Zelândia. As cheias das últimas décadas tinham sido devastadoras, mas era com betão que a Holanda tentava combater a subida do mar. Um pouco à frente, uns sete navios, principalmente cargueiros, estavam parados em fila. O Hopp Winnen mudou de rota na sua direção. Abriu-se a porta da ponte e saiu a Imediato.
- Melhor?
- Muito. O que são estes navios?
- Vamos com eles em comboio. Ainda vamos apanhar outros em Felixstowe, Portsmouth e Edimburgo. E talvez algum irlandês. 
- Porquê?
- Segurança, principalmente. Estamos no último comboio do ano, por causa dos furacões e da agitação marítima. Daqui a algumas semanas fica mesmo perigoso, com as frentes frias polares a criarem tempestades, com armadas de icebergues e grandes ondas causadas pelo colapso do gelo da Gronelândia. A navegabilidade do Atlântico está reduzida a sete ou oito meses por ano. E de vez em quando, aparecem-nos os piratas do Ártico.
- Piratas do Ártico? Vêm de onde?
- A maior parte são embarcações de antigos territórios russos, mas com os verões sem gelo já houve ataques de piratas asiáticos, que atravessam o pólo Norte. Geralmente são lanchas rápidas, mas já vi até fragatas. Há rumores de cidades, indústrias e até refinarias piratas a funcionarem no mar de Kara.
- Onde é isso?
- comecei a ficar preocupado, nunca tinha ouvido falar em nada daquilo.
- Bem lá no Norte. Mas não fique nervoso. Estes ataques eram bastante frequentes há uns anos atrás mas baixaram muito. Além disso, vamos acompanhados por um barco de guerra, armado para dissuadir ataques.

Naquele momento começou a chover e a Imediato convidou-me a voltar para a ponte, mas preferi ir para baixo porque o embalo do barco aumentava. Enquanto descia as escadas vi as seis “velas” do Hopp Winnen rodarem sonoramente. Eram uma combinação de painéis solares com turbinas eólicas que produziam a energia necessária para fazer funcionar os motores elétricos do navio. Chegando ao fundo das agitadas escadas encostei-me à borda e vomitei o pequeno-almoço. Ligeiramente aliviado, meti pelo corredor na direção do meu camarote, enquanto o chão balançava de um lado para o outro. Enfiei a chave na porta do camarote e reparei que estava aberta. Em cima da cama estava uma nota e um saquinho de papel com comprimidos. A nota dizia em inglês “Para seu alívio, tome dois com bastante água. Dr. S.”. Tirei os aparelhos, tomei os comprimidos e deitei-me, ansioso que a agitação ou o meu enjoo passassem.

Acordei horas mais tarde, para uma tarde escura. Senti um ligeiro balouçar do navio, mas nada que se comparasse com a saída da barra. Estava muito melhor, sem dores de cabeça ou náuseas. Levantei-me e apercebi-me da fome que tinha. Saí do camarote. Não sabia onde ir para comer. Não havia nos sinais nada que indicasse comida, ou pelo menos não conseguia ler naquela língua. Caminhei novamente na direção da ponte, à procura de alguém que me pudesse ajudar. Foi o ruído que me levou até a uma porta exatamente igual às dezenas de outras pelas quais tinha passado, mas que dizia “Scheepskantine”. Quando entrei, várias cabeças viraram-se na minha direção. Era uma sala grande, com duas mesas brancas corridas onde estavam sentadas pessoas e vários sofás fazendo de anfiteatro para uma parede branca. De entre as pessoas sentadas nos sofás, o comandante levantou-se e veio ter comigo.

- Está melhor, sr. Águas?
- Estou. Pode chamar-me Alex. 
- Guardámos-lhe um prato com o jantar. Vamos começar a ver um filme. Quer juntar-se a nós?
- Sim, claro. Mas tenho de comer.
- Johann, traz o prato do convidado! - Um rapaz com os seus vinte anos trouxe o prato, talheres e um copo com água e gelo, que pousou numa mesa. 

- Baixa a luz, põe o filme. - gritou o comandante. Na mesma mesa que eu estava sentado o mal encarado Enke.
- O filme de hoje é a grande aventura As rosas da fome”. 
- É propaganda comuna!
- gritou Enke. A sala riu-se. Uma mulher morena virou-se do sofá para trás e respondeu.
- Para ti todo o mundo é propaganda ecomuna.- toda a gente se riu, e Enke também.

Enquanto eu comia, começou a projeção. Era um filme de ação sobre acontecimentos históricos. Contava a história de Oan Reznan, adolescente ficcional de Bucareste. Durante o ano 1.8 e com o avançar do verão, ela sofria em casa com o calor e os cortes de energia cada vez mais prolongados. Vivia sozinha com a mãe e tiveram de gastar todo o dinheiro para comprar um ar condicionado. Depois de um alívio temporário, o drama agravava-se, com violinos nada subtis a puxarem as lágrimas enquanto a mãe de Oan morria com falta de ar a meio da noite, deixando-a sozinha no mundo. Oan acabaria a correr desesperada pela noite da cidade à procura de outros membros da família, enquanto sem-abrigo mortos na rua eram comidos por ratazanas. Depois de colapsar de exaustão, Oan tinha sido raptada por um clã de mafiosos e traficada para um bordel clandestino em Augsburgo, na Alemanha. Aí viveria uma horrível exploração sexual cujos detalhes o filme não poupava, que só acabaria com uma revolta conjunta com outras pessoas presas no bordel. Mataram os mafiosos que geriam a casa e ocuparam o antigo edifício, raptando e chantageando vários dos clientes com o objetivo de juntar dinheiro suficiente para organizarem o regresso aos seus diversos países. Nesse período também se treinavam para defender-se dos mafiosos, adquirindo armas e tornando-se temíveis com elas. Infelizmente para a sororidade, quando estavam próximas de ter o dinheiro suficiente, ocorreria o colapso financeiro após o Setembro Vermelho. Na convulsão social que atravessava a Europa, acabariam por ficar em Augsburgo e ligar-se aos movimentos revolucionários, assumindo o nome de Rosendorn (algo como “espinho da rosa”). No ano seguinte chegava a grande fome de ’27. A sororidade organizava assaltos a supermercados de luxo e distribuía os produtos pelas comunidades mais pobres, tornando-se um contrapoder dentro da cidade e uma das entidades mais odiadas pela extrema-direita em recomposição. Numa cena muito empolgante, as Rosendorn atacariam uma parada fascista da nova Muralha, um confronto que deixaria dezenas de mortos. A sala de cinema aplaudia. Após cenas de amor entre Oan e outras mulheres chegaria o final do filme, com as Rosendorn a liderar uma coluna de tratores que avançavam sobre Berlim, distribuindo comida pelo caminho.

Terminado o filme, as pessoas levantaram-se e começaram a sair. Enke aproximou-se de mim e puxou conversa. Ofereceu-me um cigarro, que aceitei. Saímos para a coberta.

- Vocês gostavam que as coisas tivessem sido como no filme, mas não foi assim.
- Esteve lá, Enke?
- Lembro-me bem desta altura, já era bem adulto. Velho, mesmo. Lembro-me dos governos darem ordem às pessoas para apagarem luzes e manterem apenas aparelhos de ventilação e refrigeração. Lembro-me das corridas aos ares condicionados e dos especuladores venderem os aparelhos a dez vezes o preço normal. Lembro-me das pessoas morrerem de calor às centenas em festivais de verão e presas em filas de trânsito. Lembro dos partos prematuros e dos abortos espontâneos no calor e no fumo. E das crianças que nasceram na altura a morrerem pouco depois, sem conseguirem respirar. 
- Isso foi na Alemanha?
- Não, eu sou holandês. E lembro-me que não foram essas putas e travecas que travaram os malucos da Muralha.
- Quem foi então?
- Descarbonários e o Exército Verde. Gente perigosa.
- Se calhar na Alemanha não foi assim. Não se passava lá o filme? E não é ficção?
- É propaganda vossa. 
- Você não era da Muralha, então?
- Não. Mas eu vi a Muralha crescer na Holanda. Com a fome, dois grupos explodiram de tamanho: Muralha e Ecomunistas. E não há grande dúvida que as paradas da Muralha, as suas manifestações, eram um grande sucesso. Eram um movimento muito popular nessa altura, especialmente entre os jovens rapazes, que olhavam para tudo aquilo com fascínio, apesar dos comunas serem muito espetaculares na ação. Mas a Muralha é que dominava o que ainda havia de redes sociais e uma boa parte dos jornais.
- Então mas você era o quê?
- Eu era do CLODO.
- CLODO?
- Comité Liquidatório e de Subversão dos Computadores. As pessoas chamavam-nos Neoluditas.

- Os neoluds não estavam do lado dos revolucionários?
- Nós estávamos do lado da ação. Sabotagem. Mas não estávamos com os ecomunistas, a sua ideia de sociedade era e é uma traição. Querem travar o inevitável e fingem que são diferentes dos que lá estavam antes, mas continuam obcecados com tecnologia. Muitos do nosso lado, neoluditas, passaram-se para o lado dos ecomunistas. Eles é que me denunciaram, por isso é que estou aqui.

- Está a cumprir punição?
- Sim. Há dois anos. Mas querem que fique dez. Muito justos. A tal da justiça climática”. - fez sinal com os dedos, sorrindo.
- Mas punição por quê?
- Fui acusado de destruir estaleiros de mega eólicas na Dinamarca.
- E destruiu?
- Ninguém se queixou quando a fábrica da Jaguar em Solihull, ou a sede da Bayer em Leverkusen explodiram.
- Mas destruiu as mega eólicas? - Enke olhou para mim e reacendeu o seu cigarro, que se tinha apagado. Fez uma pausa antes de voltar a falar.
- Depois das revoluções europeias, eu e vários companheiros abandonámos a CLODO em protesto contra a aliança com os comunas. Nunca nos perdoaram. Por isso começou a perseguição política. É por isso que estou aqui. Você sabe como funcionam as coisas no novo sistema. - desisti de insistir.
- E as outras pessoas aqui? Os outros tripulantes?
- mais uns companheiros do CLODO. E três muralhistas, mas quase não aparecem nos espaços comuns. O resto são uns pobres coitados. Até mandam para aqui ecomunistas párias quando não obedecem aos chefes.
- Quem são os chefes?
- Há vários. Mas o topo topo, que eu saiba, são as borboletas. Nunca se sabe bem quem, eles escondem-se em comissões e comités. Mas depois há assembleias para tudo, reuniões para tudo. Adoram. - riu-se. 

-Bem, vou dormir, Battacharaya.
- Porquê Battacharaya?
- Não é o nome do vosso escritor de serviço?
- O Sukumar?
- Sim. - Virou-se e começou a abrir a porta para entrar.

- Vemo-nos por aí?
- Se tiver de ser.
- respondeu-me, atirando o cigarro para o mar.

O dia seguinte passou rápido, chuvoso mas com ondulação tranquila. Ainda assim senti os enjoos quando tentava pegar nos livros. Quando abandonámos o Mar do Norte, já num comboio de quinze navios, tudo piorou. Recebemos a informação pelo sistema de som que era obrigatório andar sempre de colete salva-vidas fora dos espaços comuns. Ficava horas no quarto, preso, tendo de correr para a messe e de volta. Se pusesse um pé fora, ficava encharcado. Estava a ser uma viagem infernal, dias e dias de náuseas e vómito, mesmo com os comprimidos do médico. Ainda bem que a Lia e o António não tinham vindo. 

A meio da noite acordei, projetado da cama contra a parede. Um alarme sonoro ensurdecedor tocava. Era difícil manter-me de pé, tal era o balançar do chão. Pus o colete salva-vidas e saí para o corredor, onde já estava a maior parte dos tripulantes. A Imediato começou a falar. 

©Nuno Saraiva

- Senhoras e senhores, devido ao mau tempo perdemos vários contentores a estibordo. O navio está desequilibrado e a virar-se. - as pessoas entreolharam-se, apreensivas. - Estamos em maus lençóis. Mas estamos a meio do comboio, se tivermos de abandonar o barco, será fácil sermos recolhidos, se tudo correr mal. Vamos tentar reequilibra o balanço lançando ao mar alguns dos contentores a bombordo. Preciso dos operadores de gruas e de dois estivadores de contentores no convés um. A restante tripulação deve dirigir-se aos navios salva-vidas. - O navio abanava e rangia.

Três homens que eu não conhecia e Enke aproximaram-se da Imediato, enquanto nós seguíamos na direção da ponte. O comandante dava ordens para entrarmos nos dois grandes botes salva-vidas cor-de-laranja. Uma vez lá dentro, sentei-me e abracei como pude as minhas pernas. Se arrependimento matasse… Porque me tinha metido eu nesta loucura? Toda a gente sabe que o mar é um sítio perigoso, e agora mais perigoso que nunca. A porta do bote estava aberta, com o piloto a olhar para fora, à espera de perceber o que fazer. Eu já tinha vindo aqui, já me tinham explicado como funcionaria. Sabia que se fosse para abandonar o navio, o piloto fecharia a porta redonda e viraria a grande maçaneta de roda até trancar a porta-estanque, altura em seríamos descidos até ao mar. Dentro do bote tudo abanava também. Éramos cinco lá dentro. Além de mim, que estava em pânico, as outras pessoas estavam estranhamente tranquilas.

- Vai correr tudo bem. No pior cenário vamos tomar o pequeno-almoço com os alemães ou os escoceses. - Disse-me uma mulher morena com os seus quarenta anos, colocando-me a mão sobre o ombro.

Senti tudo levantar-se e cair uns três metros de uma vez, batendo a minha cabeça no tecto e depois no lugar onde tinha estado sentado. Ficámos espalhados dentro do bote, com o piloto caindo para dentro connosco. A mulher sangrava do sobrolho depois de ter batido violentamente em algo. Tentámos recompor-nos. Nessa altura, o sinal de alarme parou de tocar. Outra tripulante olhou pela porta aberta, enquanto o piloto tratava do ferimento da mulher. Passado uns minutos ouvimos a voz da Imediato no sistema de som:

- Podem sair dos botes salva-vidas, a situação está controlada. 

De regresso à coberta dei de caras com uma grande comoção, não muito longe da porta do meu camarote. Enke e outro homem gritavam com o comandante.

- Mas eles não são da Muralha nem neoluds. São dos vossos!
- Oh Enke, não digas coisas estúpidas.
- respondeu o comandante. - Eles vão ser recolhidos pelo resto do comboio. Já os avisámos.

Dois dos tripulantes tinham caído ao mar na operação de despejar os contentores. Enke passou, furioso. Parou, dirigiu-se a mim e disse:

- E vocês também matam muitas vezes as vossas pessoas. Escreve isso na tua história.

Os dois homens não foram recuperados. Mais tarde a Imediato e o Comandante explicaram que teriam sido arrastados para o fundo, presos aos contentores. Os restantes dias da viagem, apesar da significativa melhoria nas condições do mar, foram passados com um péssimo ambiente a bordo, com a maior parte da tripulação simplesmente pegando a sua comida na cantina e levando-a para comer nas cobertas.

Quando finalmente chegámos aos Estados Unidos, os vários navios separaram-se, descendo rumo a Sul, enquanto nós entrámos na barra, acompanhados por dois navios alemães. Abrimos caminho no meio de um mar de medusas, a maior parte das quais brancas ou transparentes. Eram milhões naquela zona, empurradas por ali pelo vento. Durante a viagem tinham-me explicado que em vários locais havia mais medusas porque as populações dos seus predadores, peixes e outros animais marítimos, estavam em queda. Eram um péssimo sinal sobre o estado do oceano.

Estava à espera de subir o rio Hudson e ver a estátua da liberdade, Ellis Island e os arranha-céus, mas virámos à esquerda e subimos para Nova Jersey, aportando na Baía de Newark. Fui dos primeiros a desembarcar, abençoando a doca firme em que finalmente pisava. Não queria repetir. Depois de despedir-me do Comandante e da Imediato ainda olhei em volta à procura de Enke ou de outras pessoas conhecidas, mas não vi ninguém. Dirigi-me ao homem com a farda do Exército Verde, apresentando-me.

Texto de João Camargo

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