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42: Panamericana

A crónica ficcional 42 trata de mudanças climáticas, avanços tecnológicos, e transformações sociais, políticas e científicas, centrando-se em Lisboa, na Europa e no mundo no ano de 2042.
No 16.º episódio, Alex viaja pela América devastada após a Grande Mudança, enquanto investiga o passado revolucionário da sua mãe e presencia o impacto das migrações climáticas, a resistência social e os efeitos da guerra e da revolução.

Texto de Redação

©Nuno Saraiva

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Já estava no continente americano há várias semanas, viajando de cidade em cidade para cumprir a missão que Gianni Fatin me tinha dado: fazer um relatório sobre a situação no continente na preparação da Assembleia Constituinte Mundial. Esse relatório não ia muito além de inquéritos a elementos do movimento ecomunista em diversas cidades do continente. A minha segunda missão era recolher informação sobre a Grande Mudança e - cada vez mais - descobrir o que tinha acontecido à minha mãe, revolucionária na Descarbonária e guerrilheira do Exército Verde. A missão principal corria bem, regular, enquanto a segunda dependia muito do acaso - a minha mãe tinha vivido e morrido os seus últimos anos na América Central e do Sul, depois de participar na Segunda Guerra Civil Americana. Excepto Luiz, que tinha sido seu aprendiz e camarada, as pessoas que eu encontrava eram demasiado novas para se lembrarem dela ou sequer indicar-me portas para explorar, deixando-me cada vez mais frustrado. O elevado ritmo de viagem não me deixava explorar as pistas que encontrava ou perceber melhor o que se tinha passado em cada país. Também me apercebia que a ideia de contar a história do mundo a uma criança - que Lia tinha plantado na minha cabeça - era muito ambiciosa, quando eu mesmo sabia tão pouco do tanto que se tinha passado. Excepto Gianni, Josephine e Fátima, veteranos dos movimentos, eram poucas as visões panorâmicas sobre o que se tinha passado. Um episódio aqui, outro ali, mas a grande história era difícil de contar. No entanto, via pela primeira vez com os meus próprios olhos este continente, um território fustigado pela guerra e pela devastação de secas, fogos e cheias, que as pessoas tentavam recompor depois da Grande Mudança, com a chegada das revoluções ecosociais e da paz.

©Nuno Saraiva

A minha última paragem antes de chegar à República da Califórnia foi Las Vegas. Esta famosa cidade tinha sido abandonada no fim da guerra civil. O comboio parou por trinta minutos, destinados a deixar os passageiros verem os restos da velha cidade. Um antigo painel publicitário explicava a tomada de decisão de abandonar Las Vegas no meio da seca da década no Oeste, após fortes tempestades de areia. A decisão então tinha sido deixar de desviar água das Rocky Mountains e do Lago Mead para ali e deixar de alimentar uma cidade em que tudo tinha de vir de fora. Las Vegas era um símbolo de luxo, opulência e desperdício que perdera o  sentido durante a Grande Mudança. A diversão, tão projetada ali, devia pertencer a toda a gente e não acontecer numa longínqua cidade artificial, corrupta e alienante, plantada no meio do deserto. O Nevada e o Arizona, durante a Guerra Civil, tinham ainda passado por um período de puritanismo anti-álcool e anti-drogas de que Vegas tinham também sido vítima, com fortes conflitos sociais , os famosos “secos contra molhados”. Cerca de 20 mil pessoas ainda viviam no que sobrava de Las Vegas, mas a velocidade com que a areia reclamavas os grandes edifícios era surpreendente - não que a cidades estivesse completamente debaixo de areia, mas estava toda coberta por uma película amarela acinzentada que ia de alguns centímetros a dezenas de metros. A areia apagou a cor e o velho brilho intoxicante da cidade. Perto da estação de comboio havia várias sucatas com toda a espécie de materiais tirados dos grandes hotéis e casinos - máquinas de jogos, móveis, eletrodomésticos, fios elétricos, caldeiras, ares condicionados, bombas de calor, velhos veículos - que eram enviados para outras zonas do país para serem reutilizados, para construir ou recuperar edifícios, e para serem recuperados nas oficinas de reparação. Um simpático sucateiro, gordinho e fumando um cigarro de palha, passou por mim com um quadro elétrico na mão. Parei-o e perguntei-lhe sobre como é que era viver ainda ali. Bob - apresentou-se o homem - explicou-me que a maior parte da população de Las Vegas só vinha no fim do outono apanhar materiais, partindo no início da primavera, porque a partir de então era quase impossível estar na cidade. Mas havia pessoas como ele e a sua família que ficavam o ano inteiro. Viviam em túneis subterrâneos reforçados e em alguns andares de hotéis que ainda estavam em pé. Algumas pessoas como ele faziam manutenção, mas muitos dos habitantes residentes eram os últimos “viciados do jogo”, já que nas ruínas de Las Vegas estavam os poucos sítios onde havia “casinos”. A proibição de jogos de azar a dinheiro tinha sido aprovada com o fim da publicidade comercial. Depois de me despedir do sucateiro, caminhei pela tábuas de madeira da “Strip”, agora sob alguns metros de areia, onde ainda se via claramente a pequena torre Eiffel e as ruínas do Hotel Bellagio e da famosa pirâmide do Luxor, que tinha colapsado sobre si mesma. Enquanto andava neste passeio o comboio apitou, avisando sobre a partida. Afinal, trinta minutos não chegavam para sequer começar a ver a ruína viva. Corri até à estação e arrancámos novamente.

A chegada à Union Station, em Los Angeles, com o seu estilo de “missão no deserto” marcou para mim o fim da transição de paisagem. Tínhamos abandonado a América do Norte e estávamos prestes a entrar na América Latina. Deixámos para trás as paisagens das grandes planícies e das grandes florestas, entrando nos desertos. A devastação pós-guerra era visível em no Kansas e no Missouri, estados de fronteira com as novas repúblicas americanas, mas na Califórnia, o principal sinal de destruição eram os troncos e as madeiras negras das florestas ardidas. Apesar de não fazer parte do meu itinerário, eu queria muito ir visitar San Francisco e Suicide Valley. Tinha sido ali que, no pico das revoluções, dezenas de bilionários se tinham matado num suicídio coletivo contra o que chamavam “o fim da era tecnológica” e a traição ao longtermismo. Apesar do mais famoso apoiante da Muralha, Musk, não ter morrido nessa altura, a herança de Suicide Valley era o fim da tecnologia subjugada ao lucro. Infelizmente, seria preciso fazer um desvio grande demais ir até lá, pelo que me resignei apenas a ler algumas coisas sobre o assunto.

Desta vez ninguém me esperava à chegada na estação. Não havia placa com o meu nome ou alguém à minha procura. À saída do edifício havia uma enorme festa, em que as pessoas - principalmente mulheres - desfilavam mascaradas com as caras pintadas por riscos irregulares, daqueles que se tinham usado contra o reconhecimento facial. Eram milhares e ouviam-se batuques que lançavam as pessoas em danças agitadas, uma espécie de carnaval fora de época. Vários bonecos gigantes de papel reciclado desfilavam no meio da multidão, guerreiros medievais com um ar robótico. Fiquei largos minutos entretido a olhar para o colorido desfile, até que desisti de esperar que alguém me viesse buscar. Iria eu ter à sede do movimento ecomunista, na Avenida Nevin. Ficava num bairro popular, uma zona histórica para o movimento independentista californiano.

Juntei-me ao cortejo, depois de perguntar a alguns manifestantes se iam mais ou menos naquela direção. Era uma celebração organizada por fugitivas e famílias que tinham conseguido escapar da ditadura cristão do Texas. Meti conversa com algumas senhoras que me explicaram a festa: fazia cinco anos que cerca de vinte mil mulheres tinham conseguido escapar de uma só vez. No Texas havia uma guerra civil de baixa intensidade quase desde a independência, com as elites a dedicarem uma boa parte da capacidade de desenvolvimento tecnológico para dominar os grupos populares que militavam pelo fim do totalitarismo e do governo fundamentalista religioso. Os bonecos gigantes representavam os robôs que as elites usavam nos conflitos militares. Inicialmente - explicaram-me - havia pessoas dentro das máquinas, principalmente pessoas ricas. As senhoras garantiram que os megatechs, como lhes chamavam, eram praticamente indestrutíveis. Eram robôs com até 4 metros de altura, ao mesmo tempo uma ferramenta de dominação social e uma nova diversão para as elites. Mais tarde, novos modelos passaram a ser controlados completamente à distância, via satélites que os mantinham online durante missões ou confrontos. A grande fuga celebrada aconteceu após a publicação do decreto de gravidez obrigatória, feito pelo Presidente Moore. O Texas passava a exigir a inseminação de todas as mulheres em idade fértil nos dois anos seguintes. As fugas, até então organizadas pelo Underground Railroad, tornaram-se massivas. Megatechs controlados por jovens playboys vigiavam as fronteiras, acompanhados por soldados de carne e osso, os pobres recrutados compulsoriamente para as forças armadas cristãs. A grande fuga tinha sido tão volumosa que vários robôs tinham mesmo atravessado a fronteira para tentar apanhar as fugitivas. Do lado do Novo México, a situação mudava drasticamente. Vários megatechs foram neutralizados pelo Underground Railroad, que os deixou offline e desativados, tendo inclusivamente o filho do vice-presidente do Texas sido preso, o que desencadeou um incidente diplomático. No final do desfile, no meio de um enorme jardim rodeado de casas, os gigantes foram queimados numa fogueira enquanto a festa continuava, com música e barracas onde se podia arranjar comida e bebida. Lembrei-me das palavras do meu pai “É bom celebrar as vitórias”, continuando a minha caminhada.

A rua onde estava a sede do movimento era numa antiga zona industrial, agora com muitas cerejeiras, com fontes e bebedouros espalhadas ao longo do caminho. Numa antiga fábrica pintada de branco, com uma cobertura verde e mais de uma dezena de pequenas eólicas encontrei a placa métalica “Sede do Movimento Ecomunista, República da Califórnia”. Quando cheguei, o sol começava a por-se e uma sirene começou a tocar. Fui rapidamente puxado para dentro do edifício por dois homens. Devido às recentes tempestades na cidade, uma grande quantidade de mosquitos tinha eclodido em águas paradas, desencadeando surtos de dengue por toda Los Angeles. Tinha sido anunciado um recolher obrigatório de duas horas à volta dos períodos do nascer e do pôr do sol. Rapidamente me informaram que seria preferível dormir ali mesmo na sede, tal como outras pessoas fariam nesse dia. Por coincidência, várias das pessoas que eu queria entrevistas ficaram lá essa noite, pelo que despachei meia dúzia de inquéritos logo ali. A Lia voltou a ligar-me e não atendi. Respondi-lhe secamente por escrito às mensagens. Ela continuava a enviar-me informação por email, que aproveitei para ler. Era a ponte que mantínhamos, no meio da separação física e emocional em que estávamos.

Já estava em viagem e entrevistas há mais de uma semana e tinha perdido um pouco o ânimo para grandes passeios por cidades depois de Nova Iorque, Minneapolis, Omaha e Denver. Precisava tempo para descansar e para estudar o material que ia acumulando. No dia seguinte terminei as entrevistas e dei apenas uma curta volta pelo bairro. Los Angeles é uma das cidades mais populosas do mundo, frequentemente devastada por ondas de calor e pelo fumo dos  anuais incêndios florestais californianos. Por sorte, estávamos fora da época de fogos, o céu estava azul e limpo, mas a maior parte das pessoas andava na rua de máscara, ao contrário do desfile à chegada. Havia alarmes de qualidade do ar em todas as ruas e viam-se bombas de calor do lado de fora das casas. Los Angeles tinha uma maioria das ruas já desalcatroada, com tapetes verdes de plantas por todo o lado, criando um ambiente fresco e perfumado, pelo menos em Novembro. Apesar do meu cansaço, acabei por fazer um passeio guiado por Hollywood, onde se deu o movimento do renascimento do teatro, com a conversão de várias grandes mansões de Beverly Hills em espaços de encenação. Foi também em Los Angeles, a antiga sede mundial da indústria do cinema, que apareceu o influente movimento cultural “Life is Live”.

©Nuno Saraiva

Life is Live - Movimento cultural toma de assalto cinemas e redes sociais

A América aderiu à performance de filmes ao vivo, transmitidos em direto nas salas de cinema e redes sociais. O fenómeno explodiu depois da morte do actor Kurt Russel no filme de guerra Broken Country, filmado ao vivo na fronteira entre o Alabama e o Mississippi, no meio da Batalha de Red Bay. A crítica de vários realizadores ao movimento não tem impedido que o mesmo se popularize e esteja a colocar em causa as grandes produções e os grandes estúdios, que procuram travar o fenómeno através de ações legais. A filósofa Marie van Niks explica que o movimento revela a urgência do derrube da barreira entre ficção e realidade, quando o mundo colapsa frente aos nossos olhos, em que não é possível manter a bolha de proteção psicológica, em que já não há quarta parede: todos somos atores, quer da ficção, quer da realidade, quer queiramos, quer não.

Foi na Califórnia que apanhei a Panamericana, a histórica autoestrada de escala continental. Eram mais de 30 mil quilómetros desde o Alasca até à Patagónia, onde antes circulavam carros, motas e camiões, mas onde agora está instalada uma linha de comboio ladeada por alcatrão, acompanhada em por dois muros de painéis solares que alimentam o movimento diário dos comboios. As carruagens da Panamericana iam mais cheias do que em todo os trajetos que eu tinha feito até agora dentro dos Estados Unidos e Califórnia. A minha nova mala, um grande objeto de plástico muito duro já não cabia perto de mim. Tinha-me sido dada pelos ecomunistas em Los Angeles quando viram a quantidade de coisas que eu transportava sem conseguir fechar a mochila e com saco de pano que eu tinha entretanto adoptado. Os ecomunistas californianos tinham sido muito simpáticos comigo, mais do que os seus camaradas do lado dos Estados Unidos. Tinham mais curiosidade sobre o que o “partido” estava a fazer em outros sítios. Atribuí essa curiosidade ao facto de, ao contrário da Califórnia, os ecomunistas não terem tanto poder formal nos Estados Unidos, onde não estavam nos governos nacionais. A herança anti-socialista e anticomunista da história estadounidense ainda tinha um peso grande, mesmo com a secessão dos estados mais conservadores.

Na Panamericana iam principalmente pessoas da América Central, regressando por um ou outro motivo aos seus países de origem, a maior parte para visitar a família. Da Califórnia atravessámos lentamente pelo México, fustigados por duas tempestades de areia, que nos paralisaram horas a fio. Das duas vezes o comboio foi tapado por uma cobertura tipo alumínio para reduzir o sobreaquecimento na zona desértica, mas mesmo dentro das carruagens arrefecidas por bombas de calor e ares condicionados (que funcionavam à vez, apenas recirculando o ar interno, que ia aquecendo), finas partículas de pó circulavam, visíveis sob a luz das lâmpadas. Frequentemente havia fortes ataques de tosse, com toda a gente cobrindo narizes e bocas com máscaras ou panos. Várias conversas percorriam o espaço, e eu fingia que dormia enquanto escutava. Uma jovem irritava-se com um rapaz que dizia que não ia haver eletricidade na sua cidade. Ela insistia em que se produzia energia mesmo durante as tempestades de areia porque apesar de se reduzir a produção de solar, mantinha-se ou até aumentava a energia eólica.

- Excepto quando está tanto vento que até destrói as turbinas - reclamou o rapaz. - E as tempestades de granizo são piores porque destroem mesmo os painéis solares, não há como lavá-los a seguir.
- Se os neoludistas não tivessem destruído as fábricas de hidrogénio verde na costa, talvez estivéssemos melhor para essas alturas. - reclamou a rapariga na direção dele.
- Eles tinham razão em destruir as fábricas. Se ainda existissem hoje a única coisa que íamos ter era ainda mais zonas cobertas de painéis e de turbinas eólicas para exportar energia, enquanto nós não tínhamos eletricidade. O lema que dizia “Transportar energia é destruir energia” estava certo!
- Sim, sim, mas depois continuaram a destruir as centrais de hidrogénio industriais, que já não eram para exportar, e destruíram as centrais solares e eólicas.
- Na revolta dos neoludistas ele destruíam tudo o que podiam. - Abri os olhos.
- Havia muitos neoluds aqui no México? - intervim finalmente. Várias pessoas olharam para mim.
- Acho que a maioria não era de cá, vieram por causa da guerra e da revolução e ficaram. A revolta deles foram meses de ataques e destruição. Quando chegou o calor significou ficarmos várias vezes sem refrigeração, uma catástrofe. - disse a rapariga.
- Havia muitos mexicanos. Neoluds e os que fingiam ser neoluds. A destruição só acabou quando os ecomunistas fizeram um acordo com os cartéis para acabar com eles, não foi? - perguntou o rapaz.
- Não sei nada sobre isso -, respondeu ela, que se encolheu no seu lugar. As pessoas olharam para o lado, desinteressando-se. - isso são assuntos que não interessam.
- Pois… — disse-me o rapaz, abrindo uma revista.

Um silêncio pesado caiu na carruagem, e eu voltei a fechar os olhos.

Mais tarde, terminadas as tempestades, o comboio aproximou-se de Tampico, na costa do Golfo do México. Por vezes parecia que nos deslocávamos por cima de água, enquanto passávamos ao lado de fábricas. Ramón, o rapaz da discussão, explicou-me o que eram: centrais de proteínas, quintas de insectos comestíveis - como as barritas com sabor fumado que eu tinha comprado no bar do comboio - e centrais de dessalinização, algumas abandonadas. No mar começaram a surgir, a poucas centenas de metros de nós, uma, depois outra, depois dezenas de plataformas petrolíferas abandonadas. Finalmente, havia um grande aglomerado de plataformas ligadas entre si por pontes metálicas. Pintadas de cores garridas, tinham árvores, painéis solares e moinhos eólicos. Rámon explicou-me que eram as “ciudades del mar”, onde viviam milhares de pessoas. A maioria das pessoas tinha fugido para ali durante os conflitos após a revolução na Cidade do México, agora Tenochtitlan. Explicou-me que era tudo provisório, que bastava um dos grandes furacões passar ali para acabar a brincadeira, mas que os anos iam passando e até agora as populações tinham conseguido ficar.

©Nuno Saraiva

Aliança América Indígena, Zapatistas e Ecomunistas tomam o poder: Revolução em Tenochtitlan

No fim, foi a falta de água que empurrou a aliança política entre as comunidades Nahua, Otomi, Mazahua, Via Ecologia e ecomunistas com o apoio do EZLN a arrancarem o poder das mãos dos cartéis e do establishment político. O dia zero da água chegara à cidade há muitos anos, a instabilidade comercial a Norte e a guerra pelos mercados negros e tráfico de pessoas tinham há muito tornado a cidade num barril de pólvora. Só as fugas permanentes da cidade, que sangravam habitantes ao ritmo de centenas de milhares por ano, e a aliança de terror entre PRI, Siglo XXI, Yunque e os cartéis da Unión Repito e Los Chapitos evitavam que a Ciudad de Mexico explodisse em violência. O governo mexicano já tinha mudado a sua sede para Guadalajara, depois de repetidos raptos de governantes e famílias. Demorou a começar, mas quando a revolta chegou foi veloz, expandindo-se pelo país, com forte adesão popular. Nas zonas agrícolas onde antigos narcos mantinham trabalho escravo para produzir comida deram-se os maiores confrontos, com o Exército Verde e milícias indígenas e populares enfrentando e derrotando os cartéis em Sinaloa, que recuaram de volta para as cidades periféricas, diminuídos.

Quando arrancámos de Tampico rumo a Tenochtitlan, voltei a pegar o relatório da migração que Josephine me tinha dado. Foi aí que li sobre algumas das piores atrocidades feitas contra as grandes migrações.

©Nuno Saraiva

Relatório Interno: Travessia Migratória Honduras - Califórnia [trajeto Ciudad México - Guadalajara]

Segunda entrevista MG

O debriefing a MG decorreu uma semana após a chegada do último grupo de refugiados a San Bernardino, República da California. MG está em recuperação de ferimentos sustidos no ombro e perna durante o trajeto entre Ciudad de México e Guadalajara. É sobre esta parte do trajeto que incide a entrevista.

©Nuno Saraiva

MG: Nós já tínhamos aprendido com a catástrofe inicial à saída de Tegucigalpa, de onde vários campos de refugiados tinham começado a viagem de forma bastante improvisada. Tínhamos identificado grupos de mercenários que nos poderiam atacar, vindos dos esquadrões Bukele de El Salvador, dos cartéis de Guatemala e da Mara Trucha. Já não íamos mais aceitar as perdas para poder seguir com a caravana. Também já éramos mais, em vez de dois miseráveis pelotões. Estávamos equipados com drones que nos permitiam vigiar até 20 km de perímetro. Não que isso servisse de alguma coisa perto de populações. O principal ataque aconteceu quando viajávamos na direção de Morelia. Ao contrário do que era costume, atacaram a dianteira da coluna, separando umas três mil pessoas, que com motas e motodrones encaminharam a pé na direção dos pântanos de Isla de Tzirio. Apanhámos alguns dos atacantes, que identificámos como máfia michoacana. Comandei o batalhão que os perseguiu. Não tínhamos veículos, pelo que só alcançámos o grupo principal 5 horas após o ataque. Os nossos pisteiros apanharam alguns homens que os raptores deixaram para trás, que não falavam espanhol, o que me levou a concluir que não eram apenas máfias locais. Mais tarde em interrogatórios descobri que havia vários polacos e húngaros, de milícias de extrema-direita.

EN: O que aconteceu quando finalmente os alcançaram?

MG: Ainda antes de os alcançarmos já tínhamos encontrado vários corpos de membros da caravana, alguns mortos com crueldade extrema, decapitados e com as mãos decepadas. Um espetáculo de horror, pior do que o que tínhamos visto até aí.

EN: E quando os alcançaram?

MG: Quando os alcançámos fomos atacados pela polícia federal mexicana, que se colocou entre nós e eles, já numa zona pantanosa. Tínhamos ordens para não usar força letal contra as autoridades locais, mas a polícia disparou sobre nós com fogo real, atingido sete camaradas.

EN: Porque não desengajaram, então? Não tinha ordens para isso?

MG: Os elementos da caravana estavam a menos de 500 metros de nós, conseguia vê-los. Não ia desistir de tentar recuperá-los.

EN: O que fizeram, então?

MG: Deixámos dois pelotões a fixar a polícia e tentámos flanqueá-los, mas o pântano era muito difícil de ultrapassar. Então decidimos correr para a ponte mais próxima, a 15km, mantendo os nossos drones a acompanhar os raptores.

EN: Porque decidiu fazer uma perseguição de mais de 50km a pé?

MG: Porque já tínhamos perdido demasiada gente seguindo ordens para preservar a integridade de uma coluna principal que estava cada vez mais pequena e desmoralizada. Precisávamos salvar pessoas. A caravana precisava que salvássemos pessoas e as tropas precisavam salvar pessoas. E salvámos.

EN: E porque não arranjaram veículos? Motodrones?

MG: Porque na logística da travessia não havia orçamento para isso e porque de qualquer maneira a caravana estava toda a pé.

EN: Pode explicar-me como terminou a operação de resgate?

MG: Alcançámo-los um dia depois, em El Derramadero. Já só havia 1700 pessoas. A maior parte dos raptores morreu nos combates, não sem antes matarem várias pessoas. Conseguimos trazer os sobreviventes para junto da caravana principal dois dias depois. E ficámos com vários veículos que melhoraram drasticamente a nossa mobilidade.

EN: Mas entretanto a subcomandante não voltou com eles?

MG: Não, eu fui confirmar o que várias pessoas me tinham relatado.

EN: O que era?

MG: Que oitenta e duas pessoas foram mortas, torturadas e deixadas a morrer durante a noite à saída dos pântanos.

EN: Foram mortas como?

MG: Foram presas ao chão, amarradas pelos braços e pernas sob pequenas plantas de bambu.  Depois, o bambu cresceu rapidamente, perfurando os corpos das pessoas em vários sítios. Chama-se a tortura do bambu.

EN: Você viu isto?

MG: Vi, havia pessoas trespassadas no pescoço, no torso, no abdómen, nos braços e pernas… Tinham-se esvaído em sangue e imagino que com dores terríveis. Submeti um relatório, está tudo documentado, fotografado e filmado.

EN: Quem foi responsável por isto?

MG: Questionei todos os prisioneiros e todos me disseram que tinham sido mercenários a soldo de máfias de Ciudad Juárez. Que tinham sido enviados para fazer aquilo. Era uma mensagem da Muralha.

EN: E o que fizeram vocês?

MG: O batalhão retornou à caravana acompanhando as pessoas e eu comandei um pelotão até Uriangato, à procura dos raptores que tinham fugido.

EN: E o que aconteceu?

MG: Conseguimos encontrar alguns elementos locais, mas a maior parte já tinha fugido.

EN: O que aconteceu aos elementos que conseguiram encontrar?

MG: Quando os encontrámos, eles tentaram fugiram e nós abatemo-los.

Raios. A minha mãe não era pêra doce. Acho que toda a gente que viveu aqueles tempo tinha de ser dura ou enlouquecer. Como se continua a ser idealista numa situação daquelas, como se mantém a Humanidade? Como se luta pelo futuro quando tanto daquilo que se vê pessoas a fazerem algo tão mau, tão desumano, tão anti-humano?

Vários territórios que fomos atravessando depois do México e das novas repúblicas de Oaxaca e Chiapas - Guatemala, El Salvador, Nicarágua, tinham sido impactados pelas ondas de calor e tempestades do final dos anos 20 e início dos 30, em particular a Guatemala e as Honduras. Apesar de se terem recomposto, tinham perdido quase metade da sua população, principalmente fugindo quer para Norte, quer para Sul. El Salvador ainda tinha sofrido em cima das catástrofes climáticas a ditadura de Bukele e das suas gangues, que foi derrubada na revolução de 2032. Ao contrário da Europa, na América Central e do Sul existiam muito poucas cidades livres. Parámos na fronteira entre o Panamá e Colômbia, no famoso “Tapón del Darién”, local terrível, onde milhares de pessoas morreram numa batalha de anos entre o crime organizado e a Rota do Futuro pelo controlo da migração.

©Nuno Saraiva

O inferno de Darién

Este ano centenas de pessoas voltaram a morrer na selva de Darién, sob a lama dos pântanos,  as mordidas de cobras, as doenças dos mosquitos, o fogo dos narcos e dos milicianos de Cristo. Darién foi escolhido pela aliança entre várias gangues de toda a América para travar o projeto das Rotas do Futuro no continente americano. Tal como no ano passado, a aliança criminosa foi enfrentada pelo Exército Verde e pelas forças do Tratado Mundial do Clima antes dos migrantes da América Central organizados na Rota do Futuro chegassem ao local. A Rota do Futuro, desenhada para criar caminhos seguros organizados para as migrações das zonas mais afetadas por catástrofes climáticas, tem conseguido reduzir drasticamente as mortais marchas forçadas do crime organizado que, com o colapso do comércio internacional de drogas, passou a ter como negócio principal o tráfico e escravatura de pessoas.

Texto de João Camargo

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