Porque é que eu existo? Esta parece-me ter sido uma pergunta feita por Herberto Helder quando escreveu Os passos em volta. Ninguém tem essa resposta na ponta da língua ou no bico da caneta, mas aquilo que se pode criar na escrita permite-nos certamente conhecer um pouco mais.
Herberto Helder foi um dos poetas mais importantes da língua portuguesa e esta foi uma obra fundamental para tudo o que viria a escrever depois. Quando falamos de talento madeirense, não nos podemos referir apenas ao nome de Cristiano Ronaldo.
Os passos em volta é um livro escrito em prosa, que reúne alguns contos brilhantes. Se podemos relacioná-los? Diria que sim. Há uma lógica que os liga a todos. Mas, ó leitor, diz-me tu o que pensas disto.
“Os comboios que vão para Antuérpia” é um dos meus textos favoritos, principalmente pela difícil ou inexistente relação com Deus:
“Esta minha vida de agora é circular e eu sufoco, sem dela poder sair, com o deus que lá existe, com Deus, com Deus... Comboios que não param de ranger e apitar. Comboios que partem. Durante a noite acordo muitas vezes com Deus a apitar. Mas de manhã a minha falta de fé parece ainda maior e compreendo que nunca hei-de sair deste quarto e que os comboios são simples pensamentos, como Antuérpia, uma inspiração difusa, confusa.”, lê-se na pág.47.
Em “Como se vai para Singapura”, conhecemos outro tipo de divindade: a força da literatura.
“Desabituei-me dos milagres. Sabe-se como é: quase todas as manhãs acordo angustiado, esforço-me por imaginar que este dia é virgem e primeiro, carregado de poderes enigmáticos, destinado às revelações. Literatura. Merda. Trata-se de mais um dia em que me vou chatear, aturar os meus semelhantes...”
A palavra literatura está muito próxima da palavra merda. Talvez esta junção nunca tenha feito tanto sentido.
O texto “Duas pessoas” foi o texto que mais vezes li. É um hino aos pontos de vista, um dos elementos mais bonitos (quando bem utilizado) da literatura. Herberto Helder coloca dois pontos de vista no mesmo espaço, uma prostituta e o cliente que ouve Bach e lê Hamlet, de Shakespeare.
“Brandy”, penúltimo texto, leva-nos até à infância e à relação com os outros, num ritmo fascinante, deixo-vos este excerto:
“Brandy. Encha o copo. Assim, até cima. Obrigado. Sabe que tive infância? Claro, não sou um sentimental. Pensa que disponho assim de desafogos morais, luxos do espírito, remansos culturais burgueses, para entregar-me a libertinagens da emoção? Tive infância, só isso. Ou seja: falta de jeito, indecisão, uma grande ignorância. Olhava para as coisas: eram fundas, enigmáticas, desorientadoras. Tudo estava cheio, porque o meu coração ávido tudo recebia: era um espaço palpitantemente vazio. Agora não, agora estou cheio de pessoas, lugares, acontecimentos, ideias, decisões. E tudo me parece deserto.”
Herberto Helder morreu em 2015. Sobre o que vem depois da sua morte, ninguém melhor do que o próprio para nos explicar:
“(...) é na morte de um poeta que se principia a ver que o mundo é eterno.”
Nós não precisamos de viver para sempre. Essa é uma ideia absurda. No entanto, aquilo que deixamos durará até ao fim, como cada palavra de Herberto Helder.
Dário Moreira