Tenho a vantagem de ter começado e feito o meu percurso nas áreas da sexologia e sexualidades de forma atípica. Quando há mais de dez anos comecei a trabalhar com sexualidade, o meu primeiro contacto foi através da venda de tecnologias para o prazer, vulgo sex-toys e cosmética sexual, mas um ano depois, dei por mim a organizar rodas de conversa à volta de temas das sexualidades, apoiada por investigação na área dos estudos de género, a conduzir conversas à volta de filmes pornográficos, eróticos ou com conteúdo sexual e político; dois anos depois, estava a criar e ministrar workshops que, a partir da criação de um espaço mais seguro, permitiam uma exploração das ideias e práticas, que construídas colectivamente, se reflectem nas vidas de cada pessoa; e, desde 2015, após a formação em sexologia, que recebo pessoas, individualmente, em casal e em constelação, no meu gabinete para aconselhamento sexual. Este meu percurso permitiu-me algumas vantagens: um ponto de partida através do prazer e não da patologização, uma visão de que também os desejos têm uma economia própria e que também esta é ditada por uma sociedade que determina quem tem direito a desejar e a ser desejado e como se pode ou não ter prazer (e quem o pode acessar).
Partir do prazer é acreditar que este é parte intrínseca do que somos, mas que as formas como o podemos usufruir ou não são restringidas e aprendidas através de variados guiões sociais.
Vivemos numa sociedade que se revela sexocompulsória, contando que tenhamos sexo de determinada maneira (penetrativo / procriativo) quando pertencemos a determinadas identidades e orientações (preferencialmente binárias*, cisgénero* e heterossexuais*), unitivo e monogâmico e com determinados corpos (endosexo*, eficientes, normativos, produtores e reprodutores). Acabo de num parágrafo piscar o olho a Gayle Rubin, que, em 1989, publica o “Pensando sobre sexo”, amplamente disponível na internet e que aconselho quem quer que tenha interesse sobre o tema a ler.
Vivemos numa sociedade sexofóbica, onde sexo que não encaixe no tal círculo encantado da Rubin é conotado como sujo, doente, criminoso, proibido, ilícito. E onde a culpa por fazermos ou não fazermos é um eixo comum entre todes nós.
O que nos resta ser e praticar de acordo com as normas que estabelecem o que é normal é curto, limitado e limitador e entra em confronto com muitos dos nossos desejos ou não nos permite buscar outros desejos que não os ensinados.
Assim torno-me ume Educadore Sexual Sex-positive feminista: reconhecendo que diferentes camadas de opressão se cruzam em cada pessoa permitindo maior ou menor acesso ao prazer e que vimos e vivemos numa tradição onde homens cisgénero heterossexuais fisicamente aptos lhe têm maior acesso e sofrem uma menor regulação sobre os seus corpos e desejos e inclusive uma tradição em que esse acesso pode ou é feito por vários meios, inclusive através de meios financeiros.
Ser Sex-positive não é promover o comportamento sexual compulsivo nem forçar todos a viver determinada sexualidade ativa. Não traz consigo distinções morais entre orientações, práticas ou experiências. E contém em si a defesa de uma educação sexual que engloba as várias identidades, corpos, orientações sexuais, orientações relacionais, desejo, bem como práticas.
Interessante perceber como nos é tão simples perceber um conceito como biodiversidade quando aplicado a tudo que não nós enquanto espécie humana. É critico, percebendo que os nossos desejos são legítimos e que alguns deles são apreendidos, outros não.
Supostamente todes nós deveríamos ter tido as noções de educação sexual ao longo da vida. O sexo, se visto enquanto natural, não necessitaria de aprendizagem e qualquer pessoa saberia o que fazer para: procriar, ter prazer e brincar. Mas como nada, ou muito pouco, é natural, vivemos e fazemos o que nos ensinam a fazer, essencialmente, e quando fugimos à regra, encontramos a quem nos confessar. Ao padre ou ao médico. Na procura da prescrição que nos ponha nos eixos.
Eu já encontrei o melhor diagnóstico. Polimorficamente perverse. E encorajo quem me encontra, a procurar prazer e viver a sexualidade num sentido mais lato. Encontrando um guião próprio, comunicando-o e partilhando, sem constrangimentos de menos ou mais e com o corpo todo. Seja qual for o corpo que habitamos e os corpos que nos acompanham. Tornar qualquer encontro, a sós ou acompanhade, numa conversa, onde procuramos perceber quem somos a cada momento e de que forma podemos ter e dar mais prazer.
Identidade de género binária*- uma identidade que se pauta pela identificação com os géneros femininos ou masculinos, permitindo uma só opção.
cisgénero*- pessoa cuja a identidade de género corresponde ao género atribuído aquando o nascimento.
heterossexual*- pessoa cuja orientação sexual é pelo suposto género oposto - apenas pessoas com uma identidade binária são heterossexuais.
endosexo* - pessoas cujas 6 categorias do que é comumente chamado sexo biológico - cromossomas, hormonal, orgãos sexuais internos, orgãos sexuais externos, traços, caracteres sexuais secundários, morfologia geral - encaixam numa definição e corporalização binária.
-Sobre Carmo G. Pereira-
Carmo Gê Pereira é/tem um projeto português ligado à sexualidade com workshops, formações e tertúlias, sessões de cinema, ciclos de eventos e aconselhamento sexual. Atua de forma ativista paralelamente. Assumidamente LGBTQIA+, sex-positive de forma crítica tem-se destacado como: formadora de educação não formal, educadora sexual para adultos, na área do aconselhamento sexual não patologizante, expert em segurança, recomendação e utilização de tecnologias para a sexualidade. Formada em sexologia e doutoranda do Programa Doutoral de Sexualidade Humana da FCEUP, FMUP e ICBAS. Mais informação em www.carmogepereira.pt