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Dario Oliveira (Porto/Post/Doc): “O cinema aparece como uma forma de resistência das imagens”

Com uma centena de filmes, duas performances audiovisuais e um cine-concerto, o Porto/Post/Doc faz do…

Texto de Flavia Brito

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Com uma centena de filmes, duas performances audiovisuais e um cine-concerto, o Porto/Post/Doc faz do cinema documental um "um convite à reflexão sobre o estado do mundo, ou sobre o estado das ideias, da sociedade e daquilo que acreditamos que são conceitos que vão continuar a ser importantes para todos, mas que têm mudado muito o seu foco e muito rapidamente". Quem o diz é Dario Oliveira, diretor do festival, em entrevista ao Gerador. O curador fala-nos desta oitava edição, que ocupará vários espaços na Baixa do Porto, com uma programação centrada nas ideias de comunidade e de indivíduo.

Com quatro competições, um ciclo temático, dois focos de autor e um novo espaço de debate, o certame é a celebração do cinema do real, mas também um espaço para parar, ver e pensar, de 20 a 30 de novembro.

Gerador (G.) – O lema desta edição é “Ideias para Adiar o Fim do Mundo”, que é a frase título de um livro brasileiro de Ailton Krenak. Porquê este mote?

Dario Oliveira (D. O.) – Estamos numa época em que, cada vez mais, somos iludidos com uma realidade e uma ideia de comunidade, que não o é, de facto. É uma rede, é algo que cada um cria à sua própria imagem – a rede de amigos que temos nas redes sociais, algo que ficou potenciado com a pandemia, de as pessoas de se sentirem isoladas… No fundo, esta ideia entre rede e solidão. O individual, em que, a partir do sofá, se gera uma rede de amigos a achar que se cria uma comunidade. O facto de termos opinião sobre muitas coisas, mas às vezes não termos ideias. Este colapso a que se assiste, um pouco por todo o lado, das ideias de democracia, dos Estados soberanos, da diáspora, das identidades e dos conceitos de cidadania. São tantas coisas que estão a mudar, e tão rapidamente, que senti a necessidade de, este ano, fazer uma programação que pudesse contribuir para uma reflexão junto do nosso público, junto das pessoas que viessem ao festival.

Não só as ideias do Krenak estão, de alguma forma, espelhadas nesta programação, mas também ideias de outros pensadores como, por exemplo, o Zygmunt Bauman, o Noam Chomsky. São pessoas que preso muito e que nos ajudam a entender melhor a época que vivemos. É uma época muito especial, porque estamos numa espécie de regresso a uma certa liberdade que ainda não sabemos o que significa. Tudo isto contado a partir de filmes é um grande desafio, uma programação ambiciosa, mas que tem um sentido. E o sentido passa por esta confluência de ideias. As ideias não são minhas. Eu sou só alguém que tenta interpretar aquilo que está a acontecer, através de uma entrega destas coisas todas aos autores, aos realizadores, que têm pontos de vista. E, para isso, criei esta secção que acaba por influenciar e inundar o resto das secções do festival.

Estas “Ideias para Adiar o Fim do Mundo” é uma frase excelente. É uma frase que utilizamos no programa com a devida anuência do Ailton Krenak, que é uma pessoa com quem tenho falado ao longo desta preparação. Isto nasceu do nosso “período do sofá”, da pandemia, em que não sabíamos o que ia acontecer em novembro de 2021.

Acho que vamos conseguir fazer um festival com as pessoas nas salas, o que é uma grande conquista. E, se calhar, aqui está o grande desafio disto tudo. As pessoas estão inundadas de imagens, inundadas de conteúdos, têm, em casa, serviços de vídeo on demand, canais por cabo, entretenimento que chega por todos os lados, uma profusão enorme de informação, sem saber muito bem o que fazer com ela. E, se calhar, passa mais por uma necessidade natural de entretenimento, de escapismo, do que estar atento à realidade. Neste programa temos uma série de documentários que são de grande informação, de grande partilha de conhecimento, de pensamento, documentários autorais, mas também temos o lado que sempre definiu a nossa matriz de programação do Porto/Post/Doc, que é o novo cinema do real. Há quatro competições: o “Internacional”, o “Cinema Falado”, o “Cinema Novo” e o “Transmission”, que são a nossa grande aposta, para além do ciclo temático e dos dois focos de autor. É nestas competições que vemos o novíssimo cinema, que queremos partilhar com o público. Queremos desafiá-lo a discutir estes filmes, a usufruir desta oportunidade de ver cinema que, de outra forma, não chegaria ao Porto, não chegaria à cidade.

Também há uma nova secção no festival a que chamamos “Indústria”. É onde acompanhamos a progressão local e regional e a apresentamos a uma série de convidados profissionais, programadores internacionais, que estarão cá para ver filmes em fase de execução. São filmes que não serão mostrados ao público. Provavelmente serão mostrados na próxima edição. São filmes que ainda estão a ser feitos. São projetos inacabados, mas que queremos apresentar aos programadores nesta fase de abertura em que as pessoas já podem viajar e já podem participar ativamente, não só no Porto, mas no circuito de festivais europeus, que começou a bulir há muito pouco tempo.

Acho que este outono de 2021 é uma fase única, de intensidade e de trabalho, para quem se move na área da produção, da distribuição ou da organização de festivais de cinema. Porque todos eles aconteceram um pouco por “atacado”,. Estivemos parados até ao verão – nós e a maior parte dos países da Europa –, portanto, agora, neste desconfinamento progressivo, acontece tudo ao mesmo tempo.

G. – Nesta altura em que questionamos tantas coisas na nossa vida e no nosso mundo, esta troca de ideias, de reflexões, torna-se essencial…

D. O. – Exatamente. Como dizia há pouco, este debate entre o individual e a comunidade são dois pólos da mesma realidade, em que todos somos forçados a ter uma opinião e a optar. É óbvio que a nossa opção é pela comunidade, é por voltar a ver as pessoas nas salas, a falarem dos filmes, a interpelar os autores que estarão presentes. É criar este circuito informal de encontros espontâneos entre todos, e passar a palavra. Criar este espírito de fórum, de fórum do real, que é uma das secções do festival, mas que é uma grande metáfora daquilo que está a acontecer – e ainda bem –, de novo, depois da pandemia.

G. – Passados quase dois anos de pandemia, em que uma parte da população se foi desabituando de consumir cultura nos espaços físicos habituais, e em que apareceram tantas alternativas, sentiram algum "esforço" em chamar as pessoas novamente a ocuparem os espaços da cidade?

D. O. – É de notar algo muito curioso. Fizemos a edição do ano passado no pico da pandemia, na última semana de novembro. Recordo que, no dia 25 de novembro, estávamos em pleno festival e alguém da minha equipa veio ter comigo e disse-me: “estamos a fazer o festival no pico da pandemia, hoje atingimos um pico de pessoas infetadas”. Foi dramático. Tivemos, alguns dias antes do festival, de adaptar toda a programação, pois havia um recolher obrigatório às 22h. Tivemos de eliminar a programação de dois fins-de-semana. O festival tinha dez dias, tivemos que cortar quatro. O festival teve muito menos público, mas, mesmo assim, teve uma afluência à sala incrível, desde a primeira noite. As pessoas estavam ávidas de sair. E isto é uma memória que vou guardar como um dos momentos altos do festival, que foi constatar que o nosso público, para além de fiel, tinha necessidade de participar. Isso foi revelador daquilo que pode ser agora este período de pós-pandemia. Acredito que as pessoas estejam a voltar às salas. Porque esta forma de olhar para a realidade através das imagens, através do cinema, estar numa sala escura a ver filmes, ou a descobrir novo cinema, é algo que nos está no sangue. Toda a gente gosta de cinema. E vivemos numa época em que a iliteracia visual é algo muito estranho, porque, se há meio século havia um problema de iliteracia num país como Portugal, e sabíamos porquê – fruto de quase meio século de opressão, de fascismo –, hoje em dia, a iliteracia visual faz com que as pessoas sejam vítimas fáceis. É uma ratoeira, tudo o que sejam redes sociais, o entretenimento digital, porque nada é o que parece, e o único objetivo é, sem dúvida, o lucro.

O cinema aparece como uma forma de resistência das imagens, como sempre foi: uma forma popular, democrática, de fácil acesso, para as pessoas entenderem o mundo, vivenciarem-no e olharem para o seu semelhante. Não só olharem ao espelho, mas olharem para aquilo que é a contemporaneidade.

Mas este esforço existe dos dois lados. Existe do lado de quem faz o festival, no sentido de reconvocar as pessoas, de estar próximo delas, mas também existe do lado público. Já no ano passado, tivemos uma versão do festival online. Criámos condições para que, através de uma plataforma, as pessoas pudessem acompanhar o festival a partir de casa e este ano vamos continuar. Não só a partir de casa, mas estando onde estiverem. Isto, para nós, acaba por ser uma forma de chegarmos a outro tipo de público, a mais público com certeza, mas julgo que as pessoas da cidade vão preferir participar nos eventos do festival diariamente. Estamos em mais lugares, estamos num cinema de bairro, recentemente reaberto, o Cine-Estúdio Perpétuo Socorro, no Coliseu, no Passos Manuel, na Reitoria, nas duas salas do Rivoli, portanto, o festival continua com a sua função inicial de estar na Baixa do Porto e afirmar-se como um momento intenso de programação.

Temos cem filmes, para além de duas performances audiovisuais e um cine-concerto, e o tema, voltando um pouco atrás, acaba por inundar todas as secções da programação e servir como uma provocação, um convite à reflexão sobre o estado do mundo, ou sobre o estado das ideias, da sociedade e daquilo que acreditamos que são conceitos que vão continuar a ser importantes para todos, mas que têm mudado muito o seu foco e muito rapidamente: os conceitos de pertença, de terra, de identidade, de comunidade, de liberdade. Temos de estar alertas e de ouvir e entender o que está a acontecer. Senão só seremos vítimas da propaganda, da publicidade e das ratoeiras das redes sociais. Nesta altura em que tudo se move tão rápido, em que aconteceram coisas, nomeadamente, na pandemia, que não estão assimiladas, não estão entendidas ou que ainda estão a acontecer, precisamos de mais tempo para tomarmos posição sobre elas. Tudo isto está espelhado na programação deste ano, não só nas "Ideias para Adiar o Fim do Mundo”, mas noutras secções também.

G. – As gerações mais novas, que nasceram já neste mundo tão digitalizado e das redes sociais e que são, talvez, as mais consumidoras deste tipo de conteúdos, têm uma relação diferente com o cinema?

D. O. – Não consigo ter uma única resposta para uma questão como essa, porque acho que não há só um tipo de público jovem, relativamente à oferta de cinema. Os circuitos de cinema alteraram-se muito nas últimas décadas. Os cinemas de bairro fecharam, e abriram os multiplexes dos centros comerciais. A própria oferta de programação de cinema diário, comercial, mudou imenso. A falta de variedade, a falta de opção, criou um certo desânimo de algum público. O papel dos festivais cresceu imenso. A profusão dos festivais, não só em Portugal, mas na Europa, por exemplo, é extraordinária. Nunca houve tantos festivais de cinema, tantas mostras de cinema.

A questão aqui não é a oferta e a procura, é mesmo uma questão de oferta e variedade dessa oferta. O público mais jovem situa-se, relativamente a esta oferta, de formas muito diversas: há o público universitário que consegue estar presente a entender, depois há um desinvestimento de tudo o que são os meios de comunicação, os tradicionais e os mais recentes, que passam muito pelo digital. Há uma atenção cada vez menor à cultura e há um apego, ou um desapego, relativamente ao cinema que também é fruto desta rede que não depende só de nós, programadores. Depende também de quem promove cultura. E esse desinvestimento na cultura é notório. Eu faço festivais há muito tempo – fiz o "Odisseia nas Imagens" no Porto 2001, fiz vinte anos de Curtas Vila do Conde – e a quantidade de jornalistas que têm tempo, liberdade e espaço para publicar esta subcultura é cada vez menor. É simbólico, de facto, estar a dar esta entrevista. Para mim, dá-me um grande prazer, porque não tenho muitas oportunidades de falar sobre o festival, porque esse espaço deixou de existir nos jornais diários, salvo raras exceções. Isto é um trabalho que tem que voltar a ser feito quase a partir do zero. Porque, senão, as novas gerações nem sabem que as coisas existem.

Vivemos numa altura terrível em que o excesso de informação acaba por criar uma dispersão. Portanto, a culpa não é dos jovens que não querem ver cinema. Aliás, a culpa não é de ninguém. É mais uma questão de responsabilidade, dos editores das revistas, dos jornais, dos canais de televisão. Vivemos num país onde aquele conceito de estrela, de reconhecimento público… Não são os artistas que são conhecidos, são os políticos e os jogadores de futebol. É muito triste, mas, mesmo assim, estamos todos a trabalhar e com grande vontade para fazer com que as coisas mudem. E acredito que podem mudar. Mas é um esforço coletivo, não é só dos jovens. A responsabilidade não é só deles, porque há muito a fazer por todos os quadrantes da sociedade: pelos centros decisores, pelos políticos, pelos departamentos de cultura das câmaras, pelos editores dos canais de televisão, rádios, revistas.

Há um interesse crescente da parte dos jovens, em procurarem cursos à volta das artes, à volta do pensamento, o que é extraordinário. Acho que, em menos de uma década, este paradigma, esta relação das pessoas com a cultura, com o cinema, em particular, pode mudar. Não sei se vai mudar, mas pode mudar. E ainda bem.

All Voices Are Mine, de Basir Mahmood (2018)
G. – Voltando à programação do Porto/Post/Doc. Na apresentação deste ano, disse que esta edição era “uma ilustração bastante abrangente do que se está a fazer no cinema do real e no documentário contemporâneo, que vai mexer com aquilo que o público acha que é o documentário”. O que as propostas deste ano trazem de novo?

D. O. – Primeiro, uma diversificação de formatos. Temos, por exemplo, um programa que considero extraordinário de artistas emergentes alemães, na área do documentário e do cinema experimental. Temos um trabalho que é apresentado como se estivesse num museu ou numa galeria, mas, por vontade do autor, o Basir Mahmood – um dos focos de autor –, é apresentado num loop, numa sessão contínua durante 12 horas numa das salas do festival, no Passos Manuel. Temos uma performance e instalação audiovisual feita pelo Pedro Costa, realizador, e pelos Músicos do Tejo, um coletivo de música barroca algo inusitado, e que é o último momento de programação do festival.

Temos um foco num jovem americano, realizador de documentários, o Theo Anthony, que explora num dos seus filmes algo que considero extraordinário, que é a importância daquilo a que se chama também o “terceiro olho”. Este “terceiro olho” são as câmaras digitais incorporadas nas fardas dos polícias – algo que nos habituamos a ver nas notícias pelos motivos errados, porque a polícia americana tem sido objeto de grandes críticas, nomeadamente, a morte de alguns cidadãos americanos. É algo que está a chegar a Portugal. O Theo explora esta ideia da capacidade que estas câmaras têm de registar tudo o que acontece. O desenvolvimento tecnológico destas câmaras minúsculas, que controlam os movimentos das sociedades, é algo extremamente perigoso, para as nossas liberdades individuais, para o controlo da comunidade, e pode ser usado de uma forma absolutamente totalitária. [Este tema] é algo que está [presente] neste pequeno foco do Theo Anthony, um realizador com 32 anos, mas que se tem afirmado, de uma forma muito rápida, no circuito de cinema internacional.

O que quero com isto explicar é que, para além dos novos filmes e dos novos autores que aparecem nas competições, há uma vontade do festival de trazer para este campo de discussão e de apresentação áreas que não têm a ver com o documentário tradicional. Quando digo que procuramos surpreender, é porque estamos a falar de um público que está de regresso às salas e que tem de ser surpreendido. Ser surpreendido passa também pelo formato daquilo que mostramos. Aquilo que as pessoas passaram a maior parte do tempo a ver em casa, nos últimos dois anos, foram formatos muito mais televisivos do que cinema de autor. É essa a missão do festival também, mostrar aquilo que há de novo, algo mais que o documentário convencional. É isso que quero dizer quando falo em surpreender o público.

G. – Do programa fazem ainda parte dois espaços de debate. Sobre o “Fórum do Real”, disse que este “não é o ano para falar da pandemia, mas um ano para falar daquilo que podemos fazer no que resta do nosso belo planeta”, um pouco no seguimento do temos aqui falado. O que é que propõem?

D. O. – Avançamos no “Fórum do Real” com a mesma vontade de participação e reflexão conjunta sobre as questões da comunidade e do indivíduo, com três subtemas: a liberdade, a comunidade e a terra (a pertença, as questões identitárias). Convidamos três jornalistas – a Raquel Ribeiro, o Abel Coentrão e o Ricardo Alexandre – para moderarem e para fazerem uma curadoria, convidando pessoas da área do cinema, do pensamento, do urbanismo e do ativismo político. São debates que acontecem nos espaços do festival, mas são debates que também vão acontecer em streaming e ficarão nas redes sociais do festival para futuras consultas. É uma forma também de chegarmos a mais gente e de provocar este interesse, que, cada vez mais, o público do festival tem, e que não se extingue nas sessões de cinema.

Estes temas são trazidos aqui porque são temas que interessam discutir. Desta reflexão do mundo contemporâneo fazem parte estas questões: Como é que é a vida das cidades? Como é que a comunidade se relaciona, ou deixou de se relacionar? Porque vivemos confiantes de que pertencemos a uma comunidade, quando não pertencemos a uma comunidade. Criamos uma comunidade que é uma ilusão e em que a solidão e a precariedade são coisas muito reais, que nos rodeiam e que invadem as nossas vidas. Este conflito do indivíduo com a sociedade, em que a luta de classes foi substituída por uma questão de falta de liberdade, de insegurança ou de segurança ilusória, da falta de certezas relativamente ao futuro. Este limbo em que há uma necessidade de experimentar novas formas de fazer a tal comunidade. Não quero fazer futurologia, mas é preciso falar destas coisas de forma aberta, sem cairmos no discurso radical e da espuma dos dias, dos extremismos, que é o que vemos no discurso político e na esfera de discussão dos media, que é traduzir isto tudo num preto e branco, numa falsa ideologia, em algo muito perigoso. É assustador o que está a acontecer, em que os indivíduos já não têm de ter habilidades sociais para estar na vida, no trabalho, na rua, na comunidade, e acham que esta armadilha das redes sociais é tudo. Este engano de escrever algo contra, ou a favor, de alguém. Eu viveria melhor sem Facebook.

Peace in the Absence of War de Theo Anthony (2015)
G. – Mas tem.

D. O. – Mas tenho, claro. Tenho porque faço um festival, e cada vez mais os projetos culturais precisam de redes sociais para chegarem às pessoas. Portanto, isto é um mal necessário, não é? Este colapso...

G. – Precisamos repensar a nossa relação com estes meios, e o que queremos deles.

D. O. – Exatamente. Porque não há esse espaço nos media tradicionais. Esta é que é uma das verdades que não conseguimos contornar. É horrível, mas é verdade.

G. – Mesmo os media tradicionais fazem uso das redes sociais para conseguirem uma maior difusão dos seus conteúdos. Precisam delas neste momento também para tal. É uma espécie de “pescadinha de rabo na boca”. Mas temos de perceber para que é que precisamos destas redes e o que é que estamos a fazer lá que devíamos estar a fazer fora delas...

D. O. – Conceitos como a identidade – de que as pessoas não querem abrir mão – transformam-se muitas vezes numa identidade tribal, porque esta relação entre aquilo que é a nossa identidade e o que nos rodeia, terminou. Não são só os media tradicionais que, às vezes, parecem que terminaram. O que terminou, o colapso, é muito mais extenso do que parece. Tem mesmo de se repensar esta nossa relação com o outro, que não passa, nem pode passar, pelas redes sociais. O próprio imaginário que vive do medo é uma coisa que a mim me preocupa muito.

G. – Este ano, o Porto/Post/Doc inaugura também o espaço “Call to Action”, um ciclo de conversas para desencadear ações concretas. Neste fórum serão discutidos temas que também têm estado bastante na ordem do dia, como a defesa da natureza, soluções para uma vida saudável, as narrativas ativistas, a liberdade de género, as políticas da identidade, entre outros. De que vontade surge também este novo espaço?

D. O. – O ano passado foi uma situação de exceção, mas, se calhar, devemos voltar a viver algo muito idêntico, sem estarmos à espera. Percebemos que esta capacidade que o festival tem de provocar a reflexão e de trazer, por exemplo, a comunidade estudantil, os jovens de várias faixas etárias ao festival, é cada vez mais ampla. E isso para nós é um motivo de regozijo, porque estamos a falar de um público participante e crítico. Esta formação, que nos propomos fazer com a nossa oferta de filmes, fez com que olhássemos para aquilo que está a acontecer fora do circuito dos festivais. Movimentos como a Greve Climática Estudantil, pequenas associações que começam a crescer próximo das escolas, são muito importantes e são atitudes coletivas que nos interessa trazer para a esfera do festival. Este “Call to Action” não é o “Fórum do Real”, mas é um complemento do “Fórum do Real”. Aqui discute-se, por exemplo, esta vontade que os mais novos têm de participação, de estarem zangados e de quererem reagir.

Posso dar como exemplo as questões de identidade e de género, que aparecem numa destas conversas do “Call to Action”, a partir de um filme que se chama Gabi, entre os 8 e os 13 – um documentário extremamente particular que fala da vida de uma criança que tinha questões com o seu sexo e que, em cinco anos, descobriu que não se sentia bem em nenhum dos géneros, nem no feminino, nem no masculino. Este filme é de uma realizadora que acompanhou este processo de crescimento, desta criança que, de repente, era um adolescente. Estas questões, que estamos habituados a ver discutidas de uma forma, muitas vezes, pouco estruturada e pouco informada, nunca as vi em cinema, nesta faixa etária, na passagem da infância para a adolescência. Este filme vai provocar uma discussão em que várias pessoas estão envolvidas. É este tipo de questões de que é necessário falar, que queremos trazer para o âmbito do festival. Há outras. As questões, por exemplo, da doença mental, que são um grande tabu na nossa sociedade, do comércio verde, da hipocrisia do comércio verde, muito embora seja um mal necessário. Há imensas questões que trazemos para esta nova secção da “Call to Action”, mas sempre a partir daquilo que é a matriz do festival, que são os filmes. E são filmes que, para além da sua exibição no festival, carecem deste espaço de chamar a atenção, de trazer os mais novos. Sem uma secção como a “Call to Action”, muitos filmes passariam despercebidos. Estamos a falar de uma programação intensa. Ao longo de onze dias, temos cem filmes, quase dez sessões, com dez filmes diferentes por dia.

Temos uma grande participação das escolas também e, quando as escolas vêm ao festival, aquilo que oferecemos, para além do filme, é uma conversa com as pessoas que têm uma ligação a determinado tema, área de conhecimento científico ou pensamento artístico. É uma aula aberta que fazemos agora, pela primeira vez, nesta edição. O “Call to Action” é uma experiência social, ainda que num formato muito simples.

G. – Voltando ao tópico da cultura e da importância de investir na cultura, estamos na iminência de, no início do próximo ano, ter uma nova formação governativa. O que consideraria essencial que acontecesse em Portugal ao nível da cultura, não só na área do cinema, mas na cultura em geral?

D. O. – Que todos os políticos, de todas as franjas, da esquerda à direita, tivessem vergonha do parco investimento na cultura que é feita em Portugal. Claro que há exceções e há deputados que têm uma posição muito clara sobre esta vergonha – que é o nome – de investir menos de um 1% na cultura. Todos os anos somos obrigados a aceitar algo que é contraproducente, que é darem-nos números, darem-nos valores, quando depois aquilo que é investido na cultura não são os valores anunciados, porque muitos deles estão relacionados com investimentos na televisão, por exemplo. Falo do cinema em particular, mas da cultura em geral. Num país com uma riqueza, uma variedade cultural e uma percentagem tão grande de artistas, devíamos ter uma atenção à cultura muito mais cuidada. E não tem de ser tudo para os filmes, mas não pode ser tudo para a televisão, porque isso é uma vergonha. É uma vergonha a forma como as contas são apresentadas. Porque é que digo vergonha? Porque os cidadãos portugueses não têm de saber ou entender as mecânicas de apoios à cultura. Essa parte tem de ser feita pelos políticos. Não é por mim. Posso ajudar, posso esclarecer, e muitas vezes o faço, mas os políticos, em vez de esclarecerem, mitigam a informação de tal forma que as pessoas são praticamente enganadas. O que são apoios à cultura? São apoios ao público! Não são apoios às associações. O Porto/Post/Doc é uma associação cultural sem fins lucrativos. Nunca chegámos ao fim do ano com dinheiro. Nem nós, nem ninguém. O dinheiro é investido no público. O festival, de que estivemos até agora aqui a falar, é algo que não é único, e ainda bem. Se todas as capitais de distrito em Portugal tivessem um festival de cinema, seria uma forma de deixar de utilizar a palavra “vergonha”. Mas “vergonha” é aquilo que tenho a dizer, não a todos os políticos, mas à grande parte dos políticos que aprovam o orçamento para a cultura, ano após ano. E quando falo de políticos, falo de ministros, falo de secretários de estado, nomeadamente, aqueles que estão no poder neste momento.

Texto de Flávia Brito
Fotografias da cortesia do Porto/Post/Doc

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