“Como se parte da situação atual para a definição de territórios que sejam, efetivamente, de todas e de todos? Que promovam a equidade e combatam as desigualdades? Como se utiliza o território para criar espaços que permitam o cruzamento de pessoas de todas as proveniências socioeconómicas? A criação, enfim, de um verdadeiro espaço público, de comunhão, destinado à plenitude dos diferentes seres individuais que constituem as nossas sociedades.”
Foi assim que terminei a crónica anterior. Estas perguntas, que para os leitores transitaram apenas de um mês para o outro, habitam em mim há demasiado tempo. E as respostas levam invariavelmente a novas perguntas, tantas que talvez só acabem num (ou vários) etecetera. Para efeitos de maior eficácia, a pergunta que fica é se podemos melhorar a qualidade e a participação da nossa democracia através de alterações na conceção do espaço público. E, se sim, como?
Passando o olhar pela maioria, se não a totalidade, das nossas cidades, facilmente identificamos os vários atentados urbanísticos que se foram realizando ao longo de várias décadas, com especial incidência para as atrocidades cometidas nos idos de ’80 e de ’90. As cidades planearam-se para os carros, não para as pessoas. Isto vê-se facilmente pelas distâncias de percursos, em particular os pendulares – casa-trabalho-casa – mas também os elementares e de lazer – sobretudo com a abertura de centros comerciais nos arredores da cidade que deslocalizaram os centros de interesse, por um lado, e destruíram os anteriormente existentes, por outro. Mas há outros fenómenos que se podem constatar deste “desplaneamento” urbanístico das nossas cidades, com particular incidência nas grandes áreas metropolitanas.
A criação de um sentimento de pertença a um lugar, o enraizamento, a ligação afetiva a sítios e pessoas necessita de tempo e espaço. Ou espaços, na verdade. Quando o tempo despendido em movimentos pendulares diários perfaz um total de duas a três horas, como é frequente na rotina de quem habita nos arredores de grandes centros urbanos, num dia de trabalho que, para efeitos legais, afirmamos ser de oito horas, que tempo sobra? Que tempo sobra a uma pessoa - para si, para os mais próximos e para os outros que nos rodeiam e que comungam do nosso espaço? E em que espaço comungamos, pois então? Que espaços existem à nossa disposição para desfrutarmos da riqueza da existência coletiva, quintessência do que somos?
Se eliminássemos a barreira tempo, e o tempo não fosse mais um obstáculo porque tínhamos aprendido as lições do pós-pandemia – semanas de trabalho de quatro dias, modelos híbridos e com redução do número de horas de trabalho, encerramento das atividades comerciais mais cedo e encerramento completo ao domingo, melhoria das infraestruturas de transportes e acessibilidades, uma habitação mais acessível – o que faríamos com o espaço?
Ora, é aqui que acabo sempre a radicalizar a ideia de comunidade, porque ela tem de partir de uma ideia radical de equidade e liberdade.
A transformação do espaço, tal como a idealizo, sobretudo quando dele se pretende aproveitar o melhor para a criação de uma comunidade, tem de partir do espírito de construção coletiva. A criação de assembleias permanentes de cidadãos, que contribuam ativamente na moldagem do ambiente que as circunda, é o ponto de partida. A democracia representativa só funciona se o for verdadeiramente e, para tal, é preciso que haja efectivo diálogo entre eleitos e eleitores. Mas, antes de se chegar ao ponto de partida, ou em simultâneo, para que não caiamos no vórtice fatal do imobilismo, é preciso criar as condições de equidade para que haja verdadeira participação cívica. A vivência do espaço, da comunidade, a sua necessidade de usufruto e consequente transformação, tem de ser feita entre pares. Entre pessoas que veem a sua condição de dignidade assegurada, a sua condição de vida elementar assegurada.
Tem de haver um esforço paralelo entre o público e o individual. Entre as condições elementares de uma existência condigna – saneamento, habitação salubre, infraestruturas e acessibilidades, segurança – e as aspirações individuais de cada coletivo. Talvez a dureza de certos conflitos, a necessidade de luta pelos direitos básicos, ajude a fortalecer e a construir um sentido mais sólido de comunidade. Quem conhece os “bairros” por dentro sabe que é assim, carapaça rija contra a indiferença e a exclusão do exterior. Mas esse não é o ideal que nos deve guiar. O que deve guiar as nossas políticas públicas é a construção de comunidades que emirjam da igualdade de condição entre seres, capazes de afirmarem as suas vontades de forma livre e espontânea, com vista a uma vivência partilhada e verdadeiramente coletiva. É destas vontades coletivas, com espaços amplos e livres de expressão e participação, que devemos partir para projetar os nossos bairros, pilares estruturais da nossa existência comunitária, e repensar os nossos mercados, teatros, cinemas, jardins, coretos, oficinas, comércio, escolas, centros de saúde, forças de segurança, museus, clubes desportivos, etecetera, etecetera, etecetera.
- Sobre o João Duarte Albuquerque -
Barreirense de crescimento, 35 anos, teve um daqueles episódios que mudam uma vida há pouco mais de um ano, de seu nome Manuel. Formado na área da Ciência Política, História e das Relações Internacionais, ao longo dos últimos quinze anos, teve o privilégio viver, estudar e trabalhar por Florença, Helsínquia e Bruxelas, onde reside e trabalha atualmente - algures pelos corredores do Parlamento Europeu. Foi presidente dos Jovens Socialistas Europeus e candidato ao Parlamento Europeu, nas eleições de 2019.