Milhares de livros e leitores voltam a invadir o Parque Eduardo VII, a partir desta quinta-feira, dia em que arranca a 92.ª edição da Feira do Livro de Lisboa. Depois de dois anos marcados pelas restrições que ficaram associadas à crise pandémica, estreia um novo conceito, com a sustentabilidade ambiental no coração, mas mantém-se o objetivo de sempre: levar os livros a cada vez mais leitores, não fosse Portugal um dos países com o índice de leitura mais baixo da Europa, destaca o presidente da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL).
Em entrevista por Zoom, Pedro Sobral fala-nos sobre o que falta para incentivar a leitura em Portugal, das políticas públicas às bibliotecas, mas também sobre o papel das redes sociais nessa missão e ainda sobre o possível diálogo entre as livrarias físicas e o comércio online.
Gerador (G.) – Qual a importância da Feira do Livro para os editores e livreiros nacionais?
Pedro Sobral (P. S.) – A Feira do Livro de Lisboa vem sendo o maior evento cultural do país. É o único momento – ou, pelo menos, um dos poucos momentos – do ano em que os editores e os autores contactam diretamente com os leitores. A feira é relevante também pelo seu programa editorial: temos perto de dois mil eventos em três semanas, e isso dá uma imagem muito clara de qual o propósito que os editores veem na feira, que é a capacidade de os leitores poderem falar e trocar impressões com os autores, seja nos debates, workshops, conversas ou mesmo nas sessões de autógrafos. Há também uma segunda oportunidade muito interessante, que é a possibilidade dos editores poderem vender livros que normalmente não estão nas livrarias. Infelizmente, as livrarias têm um espaço finito e não têm capacidade para ter todos os livros de todos os editores. Por isso, esta é a altura em que os editores vão ao armazém e colocam disponíveis livros [que não estão nas livrarias], permitindo que os leitores consigam descobrir livros que passaram muito rápido pelas livrarias e não tiveram a sorte de ser descobertos, na altura em que foram lançados.
G. – Os estudos indicam que os portugueses leem pouco. Os dados que foram revelados no início do ano mostraram que em 2020 mais de metade da população não leu sequer um livro. Como é que a Feira do Livro convive com essa realidade?
P. S. – O estudo feito pelo ICS [Instituto de Ciências Sociais] para a Fundação Calouste Gulbenkian demonstrou que, em 2020, 61 % portugueses não leram sequer um livro. Podíamos olhar para isso e continuar a chorar. Podíamos olhar para isso e dizer que é um problema estrutural, que é uma expressão muito portuguesa, que permite não fazer nada. Ou, então, podemos olhar para isso como uma oportunidade. Do lado da edição, o que tentamos entender é como é que vamos pôr estes portugueses a ler, o que significa que há uma oportunidade de crescimento, e a Feira do Livro é claramente um espaço que pode alavancar essa oportunidade. Para já, está num local extraordinário. Temos a noção de que muitas pessoas que vão à feira aproveitam para dar um passeio no Parque Eduardo VII. Esperemos que muitas dessas pessoas tropecem num ou outro livro ou num ou outro autor. Já vimos muitos exemplos de pessoas que estavam a passar e não estavam ali para comprar um livro, mas viram um autor, pararam e compraram pelo autógrafo. Estar naquele espaço durante três semanas é uma excelente alavanca para conseguir transformar essa estatística numa oportunidade. Nos últimos dois anos, tivemos provas de que isso é possível. Vimos muita gente nova na feira, o que foi talvez aquilo que mais surpreendeu os editores. Vimos muita gente nova a querer entrar na leitura, sem saber muito bem que livros ou autores comprar. Acredito que muitas dessas pessoas que encontram na Feira um livro acabam por continuar [a ler]. A quantidade de livros que foram vendidos superou muito as expectativas. Perante isso, parece-me que a Feira do Livro é, cada vez mais, uma plataforma que traz muitos dos portugueses [que não leem] à leitura.
G. – Ainda assim, e de um ponto de vista mais global, o que falta para incentivar a leitura entre os portugueses? Faltam políticas públicas mais musculadas?
P. S. – É uma questão que tende a envolver a maioria dos stakeholders da área. É preciso perceber que a leitura é a ferramenta básica que o ser humano tem para melhorar a sua linguagem e as suas capacidades de comunicação. Começa tudo aí. Se não conseguimos comunicar aquilo que queremos, desejamos ou sentimos, temos uma enorme dificuldade em ter uma vida plena e em compreender o contexto. Se tivermos por base esta definição, se considerarmos que a leitura é tão crítica como a água que bebemos todos os dias, vemos que há quatro pilares fundamentais. O primeiro são as políticas públicas de incentivo à leitura. São necessárias políticas públicas que permitam a leitura, num país como o nosso, com enormes dificuldades financeiras. A APEL apresentou, na Festa do Livro de Belém, a proposta de criação, como noutros países europeus, de um cheque livro, que fosse atribuído a cada cidadão com 18 anos, de forma que se pudesse minorar o embate financeiro, nomeadamente numa idade na qual a dispersão da atenção é muito elevada e em que as famílias têm, geralmente, um orçamento sobrecarregado, com na entrada na faculdade. Os exemplos francês, italiano e espanhol mostraram que isto [o cheque livro] é uma ferramenta que pode ajudar nesse sentido.
G. – E quais são os outros três pilares, na sua opinião?
P. S. – O segundo pilar passa pela capacidade de equipar as bibliotecas com orçamentos, que lhes permitam ter livros como deve ser. Temos hoje felizmente equipamentos bibliotecários muito bons, isto é, houve um esforço por parte do Estado português, nas últimas décadas, para fazer renascer as bibliotecas municipais. Agora é preciso que haja livros [nas bibliotecas], não só para as famílias com restrições económicas, mas também nas zonas onde não há livrarias ou não há pontos de venda de livros – e são muitas em Portugal, porque a maioria dos pontos de venda está concentrada nos grandes centros urbanos. Aí as bibliotecas têm um papel fundamental. Desde sempre as bibliotecas tiveram um papel de intermediação e incentivo à leitura, que foi crítico. O terceiro pilar prende-se com o currículo escolar. É importante que a leitura e os livros que são considerados ao longo da vida escolar de um português estejam adaptados àquilo que é o consumo contemporâneo de conteúdos. No Ministério da Educação, deveria haver uma sensibilidade maior para aquilo que as gerações leem hoje. Não digo que devemos afastar os clássicos. É fundamental que as novas gerações tenham contacto com a grande herança literária portuguesa, mas também é importante ir colocando [na vida escolar] os livros e os autores que hoje são consumidos fora da escola.
G. – Portanto, políticas públicas, bibliotecas e currículo escolar. E qual seria o quarto pilar do incentivo à leitura?
P. S. – É importante que haja por parte dos cidadãos sensibilidade para a criticidade da leitura. Na APEL, não vemos a questão dos baixos índices de leitura como resultante apenas da ausência de políticas públicas, das bibliotecas não estarem equipadas com livros ou da desadequação do currículo [escolar]. [A situação é causada] também por alguma insensibilidade da sociedade portuguesa. É preciso que essa sensibilidade exista e tem de ser criada pelos editores, livreiros e escritores, mas pela comunicação social, onde o livro está completamente ausente, e por outras entidades privadas, como as grandes empresas. É preciso envolver toda a sociedade para que saiamos da cauda da Europa, porque não nos podemos esquecer de que Portugal, neste momento, é o país com o segundo índice de leitura mais baixo na União Europeia. Isso é grave e faz com que o país não saia da estagnação. Há um erro de raciocínio, que é pensarmos que necessitamos de ser um país desenvolvido para ter índices de leitura equiparados à média europeia. O raciocínio deve ser ao contrário. Não podemos construir a casa pelo teto. Temos de começar a construir a casa pela fundação e as fundações são a satisfação das necessidades básicas das famílias portuguesas e aí está, além da habitação e do trabalho, o acesso ao livro.
G. – Há pouco disse que as livrarias, por serem espaços físicos, têm uma capacidade limitada, no que diz respeito ao número de títulos que disponibilizam. O comércio online tem crescido e, nesse âmbito, não há essas limitações. Como é que a Feira do Livro de Lisboa se posiciona face a esse boom do comércio eletrónico, mantendo-se relevante?
P. S. – O comércio eletrónico tem crescido bastante, mas ainda não tem um peso maioritário nas vendas em Portugal. Aliás, são poucos os países europeus em que a maioria da venda de livros passa pelo online. Acredito que, num futuro próximo ou a médio prazo, esse peso [do comércio online] será grande, mas será complementar às livrarias físicas e à Feira do Livro. A Feira do Livro tem algo que o online não tem: o contacto físico com o objeto. A morte do livro vem sendo vaticinada há séculos, mas o livro mantém-se. As pessoas gostam do livro. O livro tem utilidade em si mesmo. Muitas vezes, é apenas estética, infelizmente, mas tem utilidade. O online ainda não consegue replicar essa experiência: tocar e cheirar. O livro é ainda hoje o meio de distribuição tecnológico mais perfeito, porque apela aos cinco sentidos. Por isso, não há um choque [entre o online e as livrarias físicas]. A Feira do Livro permite, além disso, o contacto com os escritores, que é outra coisa que no online é difícil. Por outro lado, online, mesmo tendo muitas vantagens, tem em falta uma coisa que é fundamental, que é a intermediação. Muita gente vai ao Parque Eduardo VII perguntar o que é que deveria ler. Esta intermediação só é possível na Feira do Livro, onde todos os editores estão presentes, assim como nas livrarias.
G. – No online, essa intermediação pode ser feita, de certo modo, através das redes sociais. Como é que a APEL vê essas plataformas, no quadro do incentivo à leitura?
P. S. – A APEL é neutra, quanto à forma como as pessoas chegam ao livro. Queremos é que cheguem ao livro, seja através dos amigos, pais ou namorados. Tem havido uma tendência, nos últimos anos, [de incentivo à leitura através das redes sociais]. Começou no Facebook, em que havia muita gente a falar sobre livros. Durante muito tempo, o Facebook foi um instrumento muito importante para renovar, comunicar e promover os livros. Há claramente ainda no Facebook – apesar de já ter perdido alguma relevância – livros [cuja popularidade] acontece ali. Depois, passamos para os bookstagrammers, isto é, o Instagram adquiriu uma preponderância em faixas etárias diferentes daquelas do Facebook, que foram muito importantes para a venda e transformação de livros em best-sellers. E agora temos o Tik Tok, que também apela a outra idade e tem tido um impacto muito grande a nível global na venda de livros. Hoje, olhamos para os dez livros mais vendidos e diria que mais de 50 % são livros de tik tokers, internacionais ou nacionais. Os editores e os autores têm trabalhado muito este canal, porque é muito relevante, não só porque chega a muita gente, mas também pela forma como este tik tokers vão comunicando o livro. São formas de comunicação diferentes daquelas da geração anterior. O tipo de comunicação que se faz no Facebook é muito mais centrado no conteúdo e qualidade literária. Já no Tik Tok, estamos a falar, sobretudo, de experiências. Não se fala muito da qualidade literária ou da narrativa, mas, sim, do livro como objeto que traz uma experiência.
G. – Este ano, a Feira do Livro de Lisboa assume uma preocupação particular com a sustentabilidade ambiental. Que traduções práticas terá essa preocupação?
P. S. – O novo conceito da feira assenta em três grandes pilares. O primeiro é a sustentabilidade. O que fizemos foi construir do zero todos os equipamentos que estarão no Parque Eduardo VII. Todos os expositores, auditórios e praças são feitos com materiais recicláveis. Os equipamentos foram criados em módulos, o que permitiu que os cerca de 80 camiões TIR que entravam e saíam de Lisboa para montar e desmontar a feira fossem reduzidos para 25. Por outro lado, o material sobrante da desmontagem (parafusos, cartão e cartolina), que era muito elevado até o ano passado, foi reduzido em quase 90 %. A isso, aliamos a parceria que fizemos com a EMEL, para ter a plataforma de bicicletas partilhadas como transporte oficial. Achamos, assim, que conseguimos cumprir um dos desafios que a Câmara [de Lisboa] nos tinha colocado, que era trazer um evento mais alinhado com a preocupação [ambiental]. O segundo pilar passa por tornar a feira mais integrada. Os equipamentos foram desenhados para que a integração no espaço seja mais suave. Até ao ano passado, se estivesse virada para o rio, quase não via [a estátua do] Marquês de Pombal, tal era a poluição visual. Agora, a partir de qualquer sítio, vê o rio. Se estiver no topo do parque, vai ver uma integração completa de todos os equipamentos. O terceiro pilar é criar uma experiência muito mais interessante para quem nos visita. Os corredores serão todos mais amplos. O espaço de exposição dos livros será maior. Foram criadas partes muito mais confortáveis para as sessões de autógrafos. Por isso, acho que, nesse aspeto, este conceito é muito feliz e conseguiremos proporcionar uma experiência muito importante e interessante para quem nos visita e para quem lá trabalha.
G. – Tudo somado, que expectativas tem para esta edição da Feira do Livro de Lisboa?
P. S. – É a maior feira de sempre, e acho que vamos conseguir bater o maior programa cultural que tínhamos tido, que foi em 2019, e superar os 2000 eventos, nestas três semanas. Esperamos que os visitantes acompanhem isto. Gostaríamos muito de ultrapassar o quase meio milhão de pessoas que tivemos em 2019. A diversidade cultural e editorial que existe em Portugal é extraordinária e estará presente nesta Feira do Livro. Espero que os leitores apareçam. Dada a fragilidade do setor, seria muito importante que as pessoas viessem.