A peça começou – para mim – quando a Joana, a minha colega das Lições de Teatro do Pedro Gil, me veio buscar à porta do teatro. Estranhei ela estar com a mesma roupa que tinha usado na aula dessa mesma manhã. O ensaio estava quase a começar e não sei porquê imaginei que estaria vestida com a roupa de cena.
Entrei pelas traseiras do Dona Maria, nunca tinha feito esse percurso. Perguntei se seria a única pessoa de fora a ver o ensaio e a Joana respondeu que sim. Fiquei um pouco nervosa, mas ao mesmo tempo senti-me privilegiada.
Sentei-me perto da equipa técnica e do assistente de encenação, que após a morte do Jorge (R.I.P) ficou responsável pela peça. No palco estavam os actores, alguns já vestidos com as suas roupas de cena e a maioria de máscara devido ao covid. Conversavam sobre coisas banais à espera que lhes dessem a indicação que o ensaio iria começar. Vi uma ou outra cara conhecida, mas não me atrevi a acenar. O palco transforma-se para mim noutra dimensão, um espaço onde o público não consegue entrar. Se fosse visitar um plateau de cinema e os actores estivessem em pausa, não teria problema em ir falar com eles, mas ali não me parecia possível ou ético.
Houve uma má comunicação qualquer e alguns dos actores não tinham percebido que haveria ensaio nessa noite. Um deles estava ainda em casa à espera do Uber. Além disso, havia também algumas baixas por causa do covid. Nunca vi um assistente de encenação tão calmo com a situação, fazia telefonemas delicadamente e assumia as culpas pelo suposto “caos”. Por momentos passou-me pela cabeça se ele teria a mesma atitude se eu não estivesse ali. Talvez apenas uma pessoa no público também possa impactar o funcionamento de um ensaio.
Fartos de esperar, deram início ao ensaio. O assistente de encenação comprometeu-se a dar as falas do actor que vinha a caminho até ele chegar e alguns dos actores da peça iriam assumir os papéis dos actores que estavam em casa com covid.
Fecharam a cortina, as luzes apagaram-se. Abriram a cortina, as luzes transformaram-se. Acho muito bonito o poder da luz no teatro. Como pode dar a indicação de um novo dia, de um novo local, do passado, do futuro. É como a edição no cinema.
Muitos dos actores não tiraram as máscaras, fiquei um pouco decepcionada com essa atitude mas impressionou-me continuar a perceber tudo o que diziam.
O cenário era bonito e simples. A casa do Caixeiro e da sua família apenas. Depois quando era preciso com ajuda da luz e de alguns artifícios apareciam novos sítios: um café, um escritório, um hotel – Às vezes as coisas simples são as que me impressionam mais.
Estranhei quando o encenador dava as falas do actor que fazia de filho mais velho. Dizia-as do meio da plateia, não funcionava e nem a minha imaginação conseguiu dar sentido àquilo. Mas o actor lá chegou e tomou conta do seu personagem (deve ser estranho sair de um Uber e entrar directamente para dentro de uma história). Outra coisa que me fez confusão e não percebi bem, foi porque é que quando um actor substituía outro não ia para o sítio onde a personagem devia realmente estar. Ficava apenas de lado no palco. Parecia que para eles não era ético tomar completamente o lugar do colega, talvez alguma superstição teatral (não sei… tenho de perguntar à Joana).
O actor que fazia de filho mais novo, era uma das baixas com covid, a maioria das cenas dele foram passadas à frente. Fiquei sem perceber muito bem o que se passava com essa personagem e a sua relevância. Tenho que ler a peça ou esperar por uma nova encenação. Mas gostei muito da personagem do outro irmão, do irmão que chegou atrasado, e que na peça tem uma frase a pedir desculpa por ter chegado atrasado. Ri-me, é uma frase que provavelmente só teve piada naquele ensaio.
Achei curioso as situações tecnológicas acontecerem do mesmo lado do palco, o telefonema da mãe e o gravador do idiota do novo patrão. Uma de uma maneira super irrealista e outra super realista. Gostei das duas. Mas fiquei a pensar porque é que o encenador resolveu fazê-las com linguagens tão diferentes.
O meu momento preferido foi quando o trabalhador do café, devolveu o dinheiro ao Caixeiro sem que ele se apercebesse. Delicadamente põe-lhe de novo no bolso. Apanhei este gesto apenas no fim, foi um pormenor muito bonito. Não sei se numa sala cheia de espectadores se todos estarão atentos a esse momento (espero que sim). No teatro também pode haver gestos pequenos, foi um pensamento que me ocorreu.
A peça é bonita e triste. Só tinha visto uma outra encenação há muitos anos atrás. Não me lembrava de nada, excepto do fim. Do momento em que a mulher do Caixeiro diz que não vai chorar. Na outra encenação que vi a actriz que fazia de mulher, dizia que não ia chorar, enquanto lágrimas escorriam-lhe pela cara. Talvez não esteja errado, muitas vezes dizemos coisas que não sentimos. Mas gostei mais desta versão, quase como se ela não se permitisse chorar, a mim deu-me a sensação que a mulher do Caixeiro não era parva nenhuma e sabia o que ele andava a fazer nas suas viagens, ou melhor do que ele fez com aquela loira no hotel. Acho que a maneira como ela disse aquela frase foi mais forte assim.
Impressionou-me a barra preta a descer – na cena do funeral – tapando todo o cenário. Enquanto tudo ia desaparecendo no meio da escuridão vi o caixão descer na terra. É bonito como o teatro faz-nos sonhar e cada um tira um pouco do seu imaginário para o que está a ver.
Não me lembro se a cortina fechou no fim, ou se foi apenas a barra preta a descer e os actores a saírem do palco. Mas de repente a luz abriu, a cortina ou a barra desapareceram e lá estavam eles outra vez sentados no cenário, desta vez em silêncio à espera de indicações finais do assistente de encenação. Não sei se era porque tinha de ir viajar no dia a seguir às 07h00 e de ainda ter uma mala por fazer ou se porque parecia que aquela parte não era suposto eu ver e ouvir, mas decidi ir-me embora. Senti-me estranha com essa atitude, pareceu que deixei a peça suspensa. Não é comum o público ir embora e deixar os actores no palco.
Mandei uma mensagem à Joana a agradecer. Ela pediu desculpa pela confusão que foi a peça. Mas eu gostei, fez-me sentido aquela confusão. A meio da peça acho que o Caixeiro soltou um foda-se de frustração, não me pareceu mal, imagino o personagem dele a dizer muitos fodasses naquela fase da sua vida. O atraso do actor que fazia de filho também lhe deu um lado mais jovem, o que funcionou bem e a ausência do outro no meu imaginário transformou-o num daqueles filhos que de vez em quando têm uma fase mais complicada e afastam-se um pouco da família.
Não sei qual será o resultado final da peça e talvez seja tudo diferente do que vi, mas eu gostei desta versão.
Ah e esqueci-me de mencionar que a Joana apareceu a meio da peça com a sua roupa de cena, e de repente já não era a Joana. Os seus sapatos vermelhos foram outro pormenor que me ficou na memória.
Se tivesse ficado até ao fim, será que ela se teria despedido de mim com a roupa de cena ou com a roupa da aula de teatro? Nunca vou saber.