Sem ter tempo para o tempo, o mundo inteiro, com a exceção de um só povo, passa o tempo contando o tempo. Enquanto mais um ano, chamado novo, faz questão de acontecer, o mesmo atravessa as vidas palestinianas sem estas repararem nele. Talvez por estarem sempre “fora do lugar”, onde quer que estejam, estas vidas permanecem eternamente “fora do tempo”. Talvez por estarem numa espera perpétua de um regresso, de uma morte ou de uma liberdade, o “tempo” para as vidas palestinianas não é “tempo”.
Revisito a imagem de uma Penélope palestiniana, sentada com um novelo gigante a tricotar por cima das ruínas de uma casa destruída pela ocupação israelita. Não importa o “tempo” que levar, Penélope tece um regresso a sua casa. O seu tempo não é linear, não se mede nem se pesa, nem se sente. É um tempo parecido só com o tempo palestiniano. Esta Penélope (2010), uma obra da artista Raeda Saadeh, é justamente uma representação perfeita da palavra palestiniana sumud, uma palavra ligada ao tempo, ao não-tempo. Sumud é um tipo de resistência especificamente palestiniana. É “o ficar”. É a resistência fora do tempo, diria eu.
Num outro autorretrato, a mesma artista está em frente de uma porta entreaberta com uma mala pousada para sempre ao seu lado e, ao mesmo tempo, preparada para partir já. A artista está com um pé imobilizado dentro de um bloco de cimento, o outro está livre. O seu corpo está precisamente a dizer como o tempo palestiniano está: “imobilizado em mobilidade”. A artista faz parte da minoria palestiniana que está “exilada em casa”. Pessoas que conseguiram ficar na Palestina histórica em 1948, às quais foi concedida cidadania israelita, embora sejam tratadas como cidadãs de segunda classe. Este grupo permaneceu no lugar, enquanto o lugar já tinha partido, deixando os corpos sem tempo. O título desta obra crossroads (2003) transmite a encruzilhada do tempo palestiniano: é o aqui e agora de um ontem que vai acontecendo.
Ao contrário do tempo palestiniano, num dia e hora dentro da noção hegemónica do tempo, mais precisamente no próximo 12 de janeiro, está marcada em Lisboa a primeira sessão organizada pelo coletivo Muxarabi – do qual faço parte – onde os encontros acontecem à volta de curtas-metragens árabes, comida e conversas informais sobre filmes. Precisamente nesta primeira sessão são exibidos dois filmes que refletem, e ao mesmo tempo desfazem, a distância e o tempo palestiniano.
Um dos filmes é Measures of Distance (1988), de Mona Hatoum, uma obra sobre e a partir do tempo no exílio. A artista reconstrói a sua história, utilizando fotografias da mãe nua no chuveiro com um ‘véu’ transparente, no qual se encontram frases em árabes, retiradas das suas cartas, justapostas à voz de Mona Hatoum, que lê a tradução destas em inglês; ao fundo, ouve-se também uma conversa íntima em árabe, com a mãe, sobre os seus corpos e a sua sexualidade.
A utilização de duas línguas faz com que uma parte da obra permaneça desconhecida para quem não percebe árabe, e igualmente para quem não percebe inglês, como se estivessem dentro da experiência palestiniana que acontece fora do tempo. Quem vê a obra é sempre “outro” e sempre “eu” ao mesmo tempo, incluindo quem – como a artista e eu própria – está ciente das duas línguas, de dois tempos.
A obra começa em silêncio, como se estivesse a traduzir o tempo de espera no exílio palestiniano. A fala interrompe a espera só para anunciar que o tempo palestiniano está sempre a ser interrompido pelos acontecimentos políticos: o tempo de uma vida paradisíaca na Palestina foi interrompido pela ocupação, a reunião da família no exílio foi interrompida pelo segundo exílio. O corpo está numa constante interrupção: a menstruação, a perda da virgindade, a gravidez, a menopausa e a falta do desejo sexual causada pela guerra. Este tempo-sempre-em-rutura acontece também através de uma estrutura artística interruptiva: uma língua interrompe a outra. A conversa gravada é constantemente interrompida pela voz da artista. Até as imagens são interrompidas às vezes por outras imagens, outras vezes por um apagamento. É precisamente assim que se sente o tempo palestiniano: uma fragmentação.
Mona Hatoum nasceu em Beirute, em 1952, como descendente de uma família palestiniana exilada no Líbano. Estava de visita a Londres quando rebentou a guerra civil, em 1975, colocando-a num estado de duplo exílio: um exílio vivido e um exílio herdado. Um lugar e um não-tempo que só pode caber numa obra como Measures of Distance.
O outro filme a exibir no evento acima mencionado é We Began by Measuring Distance (2009), de Basma al-Sharif. Este trabalho é criado através de um conjunto de longos quadros estáticos, textos e números que revelam a narrativa de um grupo anónimo que preenche o seu “tempo” medindo a distância. Esta medição da distância é entrelaçada com uma mensuração impossível de tempo. Nelas os números de quilómetros entre cidades e as datas dos acontecimentos políticos na Palestina se confundem. As horas de filmagens não relacionadas narram, de uma forma ou de outra, a impossibilidade de situar-se no tempo para a própria realizadora. Basma al-Sharif testemunhou a tragédia palestiniana à distância, física e histórica, tendo nascido em 1983, no Kuwait, filha de pais palestinianos, criada entre França e Estados Unidos e mantendo uma ligação com Gaza. Ela é daqui e de parte alguma. Ela é de agora e de nunca. Ela é como todas as pessoas palestinianas.
Parece que o próprio tempo sempre perde a noção quando acontece nas raias das vidas palestinianas. À espera nos checkpoints. À espera de uma autorização. À espera nas fronteiras. À espera na prisão. À espera sob bloqueio. À espera no exílio. À espera do regresso. À espera da liberdade. À espera que aconteça. À espera da morte. Naquele espaço entre uma espera e outra há sempre um novelo gigante de tempo a desfazer-se, tornando-se numa pessoa palestiniana, ignorando mais um ano que passa.
- Sobre Shahd Wadi -
Shahd Wadi é Palestiniana, entre outras possibilidades, mas a liberdade é sobretudo palestiniana. Tenta exercer a sua liberdade também no que faz, viajando entre investigação, tradução, escrita, curadoria e consultorias artísticas. Procurou as suas resistências ao escrever a sua dissertação de Doutoramento em Estudos Feministas pela Universidade de Coimbra que serviu de base ao livro “Corpos na trouxa: histórias-artísticas-de-vida de mulheres palestinianas no exílio” (2017). Foi então seleccionada para a plataforma Best Young Researchers. Obteve o grau de mestre na mesma área pela mesma universidade com uma tese intitulada “Feminismos de corpos ocupados: as mulheres palestinianas entre duas resistências” (2010). Para os respectivos graus académicos, ambas as teses foram as primeiras no país na área dos Estudos Feministas. Na sua investigação aborda as narrativas artísticas no contexto da ocupação israelita da Palestina e considera as artes um testemunho de vidas. Também da sua.